segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

regulamentar para regular

 


REGULAMENTAR A MÍDIA

Jornalismo, radiodifusão e internet


Marcelo Bolshaw Gomes1


Introdução

Toda vida que se fala em regulamentação da mídia, os meios de comunicação e os jornalistas se declaram ameaçados de censura, gritam que o poder quer silenciá-los. Mas, a verdade é que a mídia já é regulamentada aqui (veja a legislação completa no anexo 1) e em outros países (veja no anexo 2). E também é preciso deixar claro que quando se fala de regulamentação da comunicação, não se trata apenas de controle de conteúdo, mas, sobretudo de regras mais eficazes para concessão de serviço público, o que pode parecer ameaçador para algumas empresas e instituições.

Temos, na verdade, regulamentação demais. Ao todo são quase três dezenas de diferentes tipos de regulamentação fragmentada e desconexa. Toda essa legislação precisa ser revista, integrada e subdividida em quatro áreas distintas: telecomunicações, radiofusão, internet e controle de conteúdo.

Durante os governos petistas, vários esforços foram feitos no sentido de regulamentar a Constituição Federal de 1988, cujo capítulo V do título VIII trata da área de comunicação. A criação do Conselho Nacional de Comunicação com atribuições estruturais e formado por representantes corporativos, por exemplo, prevista na Carta Magna, serviu mais para impedir a regulamentação do que para promovê-la. Já a criação de outros organismos necessários - como uma agência de regulação (ou a ampliação dos poderes da Anatel para receber queixas de conteúdo) ou de um conselho de ética jornalística (uma vez que a ABI e a Fenaj não são capazes de julgar a própria prática profissional) – continuam sendo rechaçadas como censura.

Outro ponto relevante é a internet e suas consequências. Os governos petistas lograram aprovar o marco civil da internet, mas não foi possível prever seus desdobramentos comunicacionais e sociais. A internet está promovendo a convergência da mídia do ponto de vista tecnológico e empresarial, está modificando a relação entre produção e distribuição audiovisual, está datificando o consumidor e alterando o mercado publicitário. Ela também acabou com o monopólio editorial da imprensa, gerando um novo ambiente comunicacional.

Os especialistas acreditam que o governo Lula deva se seguir o mesmo modelo adotado pela União Europeia. O Digital Services Act e o Digital Markets Act trazem uma série de disposições sobre relatórios de transparência, restrições sobre uso de dados, além de um olhar sobre práticas de moderação de conteúdo e análise de riscos.

Porém, sabendo-se de tudo que meios de comunicação brasileiros já fizeram e ainda fazem no campo da política, é esperada por uma ação para descentralizar a concentração privada de meios de comunicação no Brasil, a concentração económica verticalizada e com caráter eminentemente oligopolista".

Não tenho certeza de que essa 'concentração' de várias mídias em redes nacionais seja o cerne do problema. A diversidade e a pluralidade de pontos de vista de forma desordenada e caótica não é democrática e acabaria apenas por partidarizar ainda mais a comunicação. Haveria uma imprensa de direita e outra de esquerda, uma comunicação hegemônica e várias contra. Mais importante (do ponto de vista do serviço público) seria uma desconcentração horizontal dessas 'redes' nacionais de distribuição de produção centralizada. Por exemplo, se a regionalização das concessões das repetidoras de rádio e TV fossem feitas por Assembleias Legislativas e não pelo Congresso, haveria uma mídia mais próxima das comunidades, dos anunciantes locais e das prefeituras.


As três esferas

A comunicação cobre várias áreas institucionais. Pode-se representa essas três áreas existentes como esferas de um mesmo conjunto de regras e leis, cujo o núcleo é formado pela regulamentação da imprensa; a camada intermediária complexa, que reúne leis de telecomunicação, de radiodifusão de massa (rádios e tvs), produção de conteúdo, etc; e a face externa, formada pelas novas leis envolvendo uma segunda onda de midiatização (as redes sociais, os celulares e a internet em geral). Essas esferas ou áreas institucionais, apesar de obedecerem a conjuntos de regras diferentes, estão em interação social permanente.

O importante é entender que há uma sobreposição histórica de agentes e de tecnologia, fazendo na comunicação um sistema complexo e multifacetado, com vários níveis de abrangência. Primeiro vem a imprensa, os jornais e os jornalistas. Havia uma legislação específica na época da ditadura militar, com prisão para jornalistas e sem multas para empresas de comunicação. A Lei de Imprensa foi substituída pelo conceito de danos morais e pelo código penal nos casos de injúria, calúnia e difamação.

Depois, em segundo lugar, a Constituinte brasileira separa o marco legal das telecomunicações (satélites, fibra ótica, redes sem fio, etc) do marco legal da radiodifusão (e da produção de conteúdo audiovisual). E isso impede a convergência institucional entre os dois setores, separando o negócio do acesso das empresas de conteúdo. Essa oposição se reproduz em diferentes níveis, mas principalmente entre produção audiovisual (indústria fabrica produtos) e distribuição audiovisual (comércio presta serviços).

O mercado de comunicação tem, em sua economia-política própria, três tipos de empresas: as produtoras, os veículos e as agência de publicidade. Jornalismo impresso é indústria (o conteúdo é vendido como produto); rádio e TV são comércio, prestam um serviço público e faturam através da publicidade. Teoricamente, as televisões e rádios não podem produzir nem comercializar conteúdo audiovisual – os únicos produtos permitidos são os tele e rádio jornais. Digo 'teoricamente' porque as rádios e tvs sempre venderam seu tempo por baixo dos panos. Hoje, porém, além da convergência das mídias e a miniaturização dos equipamentos terem diminuído drasticamente a distância entre produção e distribuição (qualquer celular faz ambos), a publicidade perdeu sua eficácia social e simbólica em virtude do marketing digital e datificação do consumo. Aqui também vale lembrar que cada setor (publicidade, produção audiovisual e jornalismo) tem sua própria regulamentação profissional dissociada das demais.

Os serviços de streaming (Netflix, por exemplo) colocam todo esse sistema em xeque, uma vez que reúne produção e distribuição audiovisual através da internet, diminuindo drasticamente os custos e aproximando e segmentando públicos cada vez mais interativos. A TV sob demanda coloca em risco não apenas os modelos tradicionais da TV Aberta e da TV a Cabo, mas também ao cinema. O impacto da internet sobre o sistema de rádio não é menor do que no audiovisual. Qualquer um pode reproduzir canais da rede e novos gêneros, como o podcast, estão surgindo associados a outras mídias. Há centenas, senão milhares, de pesquisas sobre essa transformação em curso e suas consequências ainda são imprevisíveis. E, há também um ponto cego: é melhor manter a diferença econômica estrutural entre produção e distribuição audiovisual ou não?

No atual modelo superconcentrado, a produção audiovisual é centralizada no sudeste e a distribuição é feita pelas TVs a cabo e aberta, e pelas redes nacionais de FMs via satélite, reproduzindo uma programação nacional. É verdade que houve nas últimas décadas um esforço do sentido de regionalizar a produção audiovisual, principalmente como o advento da TV a cabo.

Chega agora o streaming e a globalização do regional, abrindo novos horizontes. Mas, o viés permanece sempre o mesmo: o local repete o regional, o nacional, o internacional. Está na hora de inverter essa ordem e sair do regime das 'grandes redes' franquiadas. Coloquei entre parênteses porque os conglomerados de comunicação não são realmente redes federativas, são 'distribuidores/produtores' de conteúdo.

Além da primazia do local sobre o geral, uma regulamentação democrática dos meios de comunicação implica em sua autonomia em relação ao estado e ao mercado. A radiodifusão é uma instituição da sociedade civil (semelhante à escola, ao hospital, ao clube) – e não apenas uma concessão pública à empresas privadas. É preciso pensar uma legislação que dê ênfase a uma produção audiovisual local e a uma radiodifusão comunitária, com autonomia do estado e do mercado. Para tanto, é preciso de agência de regulação em cada local, com representantes da sociedade civil, para mediar as relações entre o estado, o mercado e o público.

Sem isso, não haverá mídia democrática.

Imprensa

Outro assunto é a formação profissional dos diferentes tipos de comunicadores.
“Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique; todo o resto é publicidade” - frase atribuída a George Orwell, mas que na verdade pertence William Randolph Hearst – define jornalismo em oposição à publicidade. O jornalismo está para promotor, assim como, a publicidade está para o advogado. Os dois primeiros defendem o interesse público, enquanto os últimos defendem os interesses de seus clientes. E, por essa definição, o jornalista só é jornalista quando trabalha em veículos.

Do ponto de vista específico da regulamentação do jornalismo e da imprensa, há várias pontas soltas: o que caracteriza o discurso jornalístico em relação a outras formas de comunicação; quem pode exercê-lo e como pode ser moderado (quem observa aos observadores?).

Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique; todo o resto é publicidade” - frase atribuída a George Orwell, mas que na verdade pertence William Randolph Hearst – define jornalismo em oposição à publicidade. O jornalismo está para promotor, assim como, a publicidade está para o advogado. Os dois primeiros defendem o interesse público, enquanto os últimos defendem os interesses de seus clientes. E, por essa definição, o jornalista só é jornalista quando trabalha em um veículo.

Mas, no Brasil, ao contrário de outros países, a maioria dos jornalistas trabalha como assessor de imprensa em flagrante um conflito de interesses. Há inclusive várias monografias, dissertações e teses sobre o assunto. A ausência de cursos (e consequentemente de profissionais capacitados) em comunicação organizacional no Brasil propicia que jornalistas ocupem o espaço dos profissionais de Relações Públicas e a descaracterizem o jornalismo do ponto de vista ético. A criação de cursos de comunicação organizacional, assim, atende tanto a uma demanda social quantitativa enorme (empresas, sindicatos, igrejas, escolas), como também a uma demanda qualitativa relevante: a correção de um sério desequilíbrio estrutural na economia política do mercado de comunicação.

O primeiro passo em uma regulamentação da comunicação voltada para democracia é o aperfeiçoamento dos critérios para o exercício do jornalismo como profissão: fim das assessorias de imprensa; diploma de educação superior; prova semelhante a da OAB para advogados; penas educativas em função da parcialidade.

Um dos critérios mais utilizados é o "de dar voz aos dois lados" da notícia, apresentando sempre polarizações. “Se não tiver duas fontes contrárias, não é jornalismo, é publicidade.” O jornalismo não é ser informativo, objetivo ou neutro. Pode dar opinião, mas tem que escutar e colocar as opiniões diferentes. Esse é o critério jurídico adotado (pela Suprema Corte norte americana, por exemplo) para caracterizar o que é jornalismo e o que utiliza sua linguagem e meios para defender opiniões parciais.

Mentir ou noticiar informações sabidamente falsas, por desconhecimento ou má vontade se constitui como crime no código penal. Porém, esse mesmo critério da liberdade de imprensa pode ser aplicado à radiodifusão e ao direito de expressão da grade de programação? Como saber o que é falso ou enganoso em uma novela, em filme ou em uma propaganda? E, com o advento das redes sociais, a questão se exponencializa ainda mais: será que os critérios da liberdade de imprensa também se aplicam à liberdade de opinião dos internautas?

A nova ordem midiática

A internet segmenta e torna interativos públicos diferenciados. E, se por um lado, esse fato democratiza a mídia tradicional acostumada a forjar consensos ideológicos de forma monolítica e hegemônica, por outro, entra em choque com o modelo institucional de democracia representativa. A capilaridade instantânea da intenet democratiza a comunicação, mas também ameaça a democracia e suas vagarosas instituições.

A verdade é que a própria natureza dos meios de comunicação é democrática e anti democrática ao mesmo tempo. A mídia dá visibilidade a alguns acontecimentos em detrimento de milhares de outros. Ela produz a invisibilidade, silenciando o que não é relevante. A promessa de que a mídia pode promover um regime de transparência total, sem o 'governo invisível' para usar a expressão de Bobbio, nunca será cumprida justamente porque o maior poder da mídia é o de invisibilizar.

Com a internet, o governo invisível se tornou uma causa das teorias de conspiração e, com a cultura de fãs, das 'bolhas' identitárias. Uma vez que a função estrutural da mídia é silenciar seletivamente e hierarquizar a visibilidade, e que a transparência total é uma impossibilidade, então, o correto seria escolher conscientemente os temas de silenciamento, como discursos de ódio, proibir a propaganda infantil direta, impedir a divulgação de informações que causem pânico, garantir o sigilo de justiça em processos criminais, evitar os discursos de ódio, inibir a pornografia (a depreciação feminino), etc. A regulamentação de conteúdo é muito combatida por ser considerada uma 'censura', mas, na verdade, é uma prática social comum mesmo quando não é explícita. Uma parte do conteúdo é sempre invisibilizado e mesmo o que é visível, é hierarquizado segundo critérios involuntários. O controle de conteúdo não é censura e sim uma prática institucional. Daí a importância da regulamentação dessa prática de seleção e classificação dos acontecimentos pela mídia e sua supervisão pela comunidade.

E quem vigia os vigilantes? Uma regulamentação democrática dos meios de comunicação implica em sua autonomia em relação ao estado e ao mercado. A Mídia é uma instituição da sociedade civil e não apenas uma concessão pública à empresas privadas. Do ponto de vista ideal, ela não é nem pública nem privada, mas comunitária, uma cooperação entre famílias e instituições civis; mediadora das relações políticas e econômicas. E não sua refem.

Conclusão

A convergência das mídas está complexificando cada vez mais as possibilidades de regulamentação dos meios de comunicação. A ampliação da capacidade de expressão por parte de grande parte da população através das redes sociais e a incapacidade de distinguir o real do ficcional são alguns dos fatores desta complexidade. Aqui destacamos quatro 'gargalos' dessa transformação: a) a convergência tecnológica e empresarial da mídia; b) a necessidade de regionalização das concessões das repetidoras (feitas por Assembleias Legislativas e não pelo Congresso); c) o controle de conteúdo de várias práticas como a publicidade infantil e a pornografia; e, finalmente, d) a redefinição da atividade jornalística.

O ex-presidente Lula andou falando em pluralidade e concorrência, prometendo regulamentar a comunicação no Brasil, que é imparcial e manipuladora. Porém, aumentar o número dos meios de comunicação e permitir a permanência de grandes cartéis apenas aumenta sua crescente deslegitimazação. Não precisamos de uma mídia petista combatendo outra mídia bolsonarista. Os meios de comunicação destinam-se a despolarização da sociedade e não ao reforço emocional binário. Antes de aumentar o número de concessões de veículos, a democratização dos meios de comunicação implica em uma regulamentação estrutural, que leve em conta: a formação dos profissionais de imprensa, uma produção descentralizada de conteúdo audiovisual e uma internet voltada para o fortalecimento dos diferentes tipos de comunidade que habitamos.

A regulamentação da constituição através de leis ordinárias já seria um grande avanço em relação a descentralização da produção, a participação comunitária e as regras de concessão (o documento do PT lista os artigos constitucionais específicos).

Idealmente, a verdadeira democratização dos meios de comunicação significa dar o máximo de transparência à democracia, o que significa que a imprensa e o jornalismo (e a partir deles, o rádio e a televisão) devem se considerar agentes sociais que observam os agentes políticos de fora do jogo político. Ou ainda: a mídia deve tentar representar os dois lados de todos os conflitos apresentados. Pode e deve ter opinião, mas cuidando para não manipular para um dos lados, sempre comentando com elegância e deixando a palavra final com seu leitor. Esse é o verdadeiro problema! Todos são parciais e manipulam. Democratizar para que mais grupos, de diferentes pontos de vista, cometam os mesmos erros pode criar um inferno midiático!

1Jornalista, doutor em sociologia e professor titular em Estudos da Mídia da UFRN.

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