sábado, 8 de janeiro de 2022

LACAN ELEVADO AO QUADRADO

Preâmbulo

O quadro ao lado, Ludas Matyi újság, de autoria do cartunista sérvio contemporâneo Gradimir Smudja, é uma duplicação ampliada da obra “As Meninas” (1656) do pintor espanhol Diego Velázquez. O quadro original espelha questões sobre a realidade e a ilusão, entre o observador, os personagens representados e já foi objeto de várias reflexão filosóficas (Foucault, Quinet, Lacan e Duek Marques). 

E essa duplicação contemporânea da imagem de Velázquez por Smudja, assimila e responde a essas reflexões filosóficas indo mais adiante, sem se utilizar da palavra, deslocando o local do observador e ampliando o horizonte das interpretações.

Senão, vejamos ...


Interpretações não filosóficas

A pintura original tem elementos renascentistas (ponto de fuga, realismo figurativo, etc) e também elementos barrocos, como os vários significados e interpretações embutidos nos elementos representados. Na verdade, pode-se dizer que o quadro tem três motivos distintos conectados como um 'quebra-cabeça': 1) um retrato familiar oculto (visto através de um espelho no fundo) do rei Filipe IV e da rainha Mariana no Real Alcázar de Madrid; 2) o retrato da jovem infanta Margarida Teresa, em uma posição central, cercada por damas de companhia, guarda-costa, duas anãs e um cão; e 3) o auto-retrato metalinguistico do próprio Velázquez pintando os reis. 

Cada um desses elementos nos remete às histórias biográficas dos personagens e do seu envolvimento com a cena; há elementos simbólicos e interpretações herméticas renascentistas, mas, sobretudo, é preciso entender o significado mais geral do conjunto e sua importância histórica. Esses elementos estão organizados de modo a apresentar três pontos de vista do espectador e três representações do pintor no quadro. Do ponto de vista da mímese do receptor: 1) o casal real que é olhado pelo espectador; 2) o espectador é um observador externo; e 3) o espectador está na superfície de um espelho. E do ponto de vista da mimese do emissor, também existem três possibilidades de representação: 1) o pintor representa a casal real, que está na área não visível, mas cujo reflexo vemos através do espelho, mimese da linguagem; 2) o pintor representa a infanta, a mimese do observador externo; 3) o pintor representa-se a si mesmo, a mimese do emissor (GREUB, 2001, pág. 11-13).  

Todo esse relativismo barroco, sintetizado no seu conjunto renascentista, em um momento fotográfico instantaneo, rendeu uma admiração impar. Théophile Gautier, à vista da pintura, exclamou: “Onde está o quadro?” A pintura inspirou inúmeros pintores - Manet, Salvador Dali e Picasso, entre outros; se tornou literatura com Oscar Wilde e teatro com o Antonio Buero Vallejo (MENGARELLI, 1998).

Também na modalidade filosófica encontram-se várias contribuições importantes a partir dAs Meninas. Ortega y Gasset enaltece a instantaneidade da cena. Foucault usa o quadro para repensar a epistemologia. Lacan e Quinet interpretam a cena dentro do campo da clínica psicanalítica. 

Leituras filosóficas

Na introdução do livro As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas (2007), Foucault coloca o quadro de Velázquez em uma posição intermediária entre dois regimes distintos de visibilidade, a época clássica (séculos XVI e XVII) e a época moderna (séculos XVIII e XIX). O quadro seria uma representação moderna (metalinguística, o pintor pinta a si mesmo e aos reis) da representação clássica (ocultamento do observador, o pintor pinta a infanta). O que Foucault analisa na obra de é a relação de olhares no quadro e a relação entre visível e invisível que os olhares instauram. 

Em primeiro lugar, ele nota a inversão de papeis entre espectador e modelo, entre sujeito e objeto, que a cena representada no quadro instaura: o espectador se vê sendo visto, na posição ocupada pelo modelo suposto pela cena, o modelo que o pintor representado no quadro observa (RIBEIRO, 2016).

No final do livro, Foucault anuncia a 'morte do Sujeito', a abolição do eu descartiano que centralizava os saberes, como imagem e semelhança do universo. Os reis de espanha (no quadro de As Meninas) seriam então o poder invisível, 

A ausência do rei nesse quadro é um artifício que encobre e, ao mesmo tempo, designa esse vazio. Para Foucault, esse quadro de Velázquez é a representação da representação clássica, na medida em que nela a representação se apresenta com todos os seus elementos, havendo, porém, um vazio essencial que é, justamente, o sujeito (QUINET, p. 156).

Lacan (1998) vai re-introduzir o sujeito no lugar onde Foucault o assassinou. O sujeito do conhecimento morreu? Viva o sujeito do desejo! Ou ainda: o sujeito não morreu, apenas está escondido no inconsciente, na representação da representação, nos pensamentos ocultos por detrás da linguagem.

A leitura clínica coloca a discussão em um campo interpessoal: após a leitura de Lacan, os reis não são mais concebíveis como 'o poder invisível' ou o 'lado de fora', mas sim como o Pai e a Mãe, ocultos e presentes no jogo da linguagem. 

Além disso, para Foucault, os reis, em pessoa, estão refletidos no espelho e servem de modelo no lugar ocupado pelo observador externo. Enquanto, para Lacan, esse espelho reflete a tela virada de costas para nós, na qual os reis estão sendo retratados, e não os reis em pessoa. Lacan conclue que, se o rei e a rainha estivessem no “nosso lugar” (de observadores do quadro), suas imagens deveriam ser duas vezes menores, em razão da distância. 

Duek Marques (2013) faz uma síntese das ideias de Foucault, Lacan e Quinet a partir de suas Reflexões sobre As Meninas de Velázquez.

Além disso, no nosso entender, a imagem no espelho sugere uma pintura inacabada, principalmente pelos esboços nela contidos e pela falta de definição, inclusive das vestes do rei. Os reis, então, poderiam ou não estar em nosso lugar, observando o grupo como nós ou até servindo de modelo; poderiam, também, sequer estar naquele local. Sobre isso, jamais teremos a resposta precisa. 

Todavia, pelos motivos apontados, temos convicção de que os reis não estão refletidos em pessoa no espelho, principalmente porque nós, espectadores, estamos justamente no lugar atribuído ao casal real e em nenhum momento vemos nossas imagens refletidas no espelho. Podemos, contudo, concluir que Velázquez, assim como vários personagens no quadro, observam-nos e são por nós observados. Dessa forma, parece-nos demonstrada a intenção primordial de Velázquez, de ver-se sendo visto eternamente em sua obra magnífica, acompanhado da família real.

Conclusões

Para nós aqui o importante é observar como a releitura do cartunista Gradimir Smudja reinterpreta a trama visual dAs Meninas, principalmente através de duas alterações pontuais: 

a) deslocando a posição do enquadramento do observador externo para o outro lado da sala e para cima, para um ponto em que a cena possa ser vista pelo ângulo inverso superior; 

b) a colocação de um espelho gigante do fundo oposto ao quadro original. Há uma inversão de perspectivas e um fundo que reflete o lado oposto, com algum declive, ao novo observador externo. 

Colocar um segundo espelho no local em que está o espectador do quadro é uma sugestão humorística de Miller (1998, p. 78), “sem o qual seria difícil que Velázquez pudesse pintar a ele próprio, auto-retratando-se”. Essa duplicação ampliada em conjunto com a ampliação do fogo e o deslocamento do enquadramento (para o outro lado da sala e para cima, de forma perpendicular ao espelho, impedindo que o novo observador seja refletido e revelado) descobre tudo que a imagem original ocultava, permitindo olhar o conjunto completo da cena. 

Se pensarmos no discurso arqueológico de Foucault podemos dizer que esse novo quadro representa o regime de visibilidade dos meios de comunicação eletrônica, que eles são dois artificios tecnológicos (o espelho e o enquadramento ótico) voltados para reduzir os símbolos a ícones quadruplicados. O virtual amplia a visibilidade do real, simulando o que não vê, imaginando o design simétrico e acabando com o encantamento da linguagem. Já se pensarmos no discurso clínico - em que o analista é o sujeito-pintor e o analisado, o objeto representado (a infanta, seu séquito e seis pais ocultos) – a inversão de perspectiva e o espelho são estratégias discursivas terapêuticas para que se chegue a uma visão de conjunto não apenas dos relacionamentos objetais, mas também das relações transferência e contra-transferência entre o pintor, sua obra e seu público. 


REFERÊNCIAS

DUEK MARQUES, Oswaldo Henrique. Reflexão sobra As Meninas - Uma análise do quadro As Meninas, do artista espanhol Diego Velázquez, a partir do pensamento de autores como Foucault, Lacan e Quinet. Posted on 10 de September de 2016 by PhotoAtelier: < https://photoatelier.org/2016/09/10/reflexao-sobra-as-meninas/ >

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9ª ed. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

GREUB, Thierry,(Hrsg.) Las Meninas im Spiegel der Deutungen. Eine Einführung in die Methoden der Kunstgeschichte, Berlim: 2001.

QUINET, Antonio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

LACAN, Jacques. As meninas. Comentários de Lacan sobre o quadro “As Meninas” extraídos do Seminário (inédito) XIII – O Objeto da Psicanálise – 1965/66. Transcrição e tradução de Lucy da Silva Prado. Palavração. Curitiba, ano III, nº 3, p. 18. Nov. de 1998.

MENGARELLI, Hugo. As Meninas Atravessam o Espelho. Palavração. Curitiba, ano III, nº 3, p. 18. Nov. De 1998.

MILLER, Jonathan. On reflection. National Gallery Publications Limited, Londres: 1998.

RIBEIRO, Marcelo. Las Meninas segundo Foucault. Blog Incinerrante, Salvador: 2016. < https://incinerrante.com/textos/las-meninas-segundo-foucault/ >