segunda-feira, 25 de outubro de 2021

o mito do orientador



 Num dia lindo e ensolarado o coelho saiu de sua toca, com o "notebook" e pôs-se a trabalhar, bem concentrado. Pouco depois passou por ali uma raposa, e viu aquele suculento coelhinho tão distraído, que chegou a salivar. No entanto, ela ficou intrigada com a atividade do coelho e aproximou-se, curiosa:

-Coelhinho, o que você está fazendo aí, tão concentrado?
-Estou redigindo a minha tese de doutorado - disse o coelho, sem tirar os olhos do trabalho.
-Hummmm... e qual é o tema da sua tese?
Ah, é uma teoria provando que os coelhos são os verdadeiros predadores naturais das raposas. A raposa ficou indignada:
-Ora!!! Isso é ridículo!!! Nós é que somos os predadores dos coelhos!
-Absolutamente! Venha comigo à minha toca que eu te mostro minha prova experimental.
O coelho e a raposa entram na toca. Poucos instantes depois ouvem-se alguns ruídos indecifráveis, alguns poucos grunhidos e depois... silêncio. Em seguida, o coelho volta, sozinho, e mais uma vez retoma aos trabalhos de sua tese, como se nada tivesse acontecido. Meia hora depois passa um lobo. Ao ver o apetitoso coelhinho tão distraído, agradece mentalmente à cadeia alimentar por estar com o seu jantar garantido. No entanto, o lobo também acha muito curioso um coelho trabalhando naquela concentração toda e resolve então saber do que se trata aquilo tudo, antes de devorar o coelhinho:
-Olá, jovem coelhinho. O que o faz trabalhar tão arduamente?
- Minha tese de doutorado, seu lobo. É uma teoria que venho desenvolvendo há algum tempo e que prova que nós, coelhos, somos os grandes predadores naturais de vários animais carnívoros, inclusive dos lobos.
O lobo não se conteve com a petulância do coelho:
-Ah! Ah! Ah! Ah! Coelhinho! Apetitoso coelhinho!
Isto é um despropósito. Nós, os lobos, é que somos os genuínos predadores naturais dos coelhos. Aliás, chega de conversa...
-Desculpe-me, mas se você quiser eu posso apresentar a minha prova experimental. Você gostaria de acompanhar-me a minha toca? O lobo não consegue
acreditar na sua boa sorte. Ambos desaparecem toca adentro. Alguns instantes depois ouvem-se uivos desesperados, ruídos de mastigação e... silêncio.
Mais uma vez o coelho retorna sozinho, impassível e volta ao trabalho de redação da sua tese, como se nada tivesse acontecido. Dentro da toca do coelho vê-se uma enorme pilha de ossos ensangüentados e pelancas de diversas ex-raposas e, ao lado desta, outra pilha ainda maior de ossos e restos mortais daquilo que um dia foram lobos. Ao centro das duas pilhas de ossos, um enorme LEÃO, satisfeito, bem alimentado, palitando os dentes.
MORAL DA HISTÓRIA
1.Não importa quão absurdo seja o tema de sua tese;
2.Não importa se você não tem o mínimo fundamento científico;
3.Não importa se os seus experimentos nunca cheguem a provar sua teoria;
4.Não importa nem mesmo se suas ideias vão contra o mais óbvio dos conceitos lógicos;
5.O que importa é QUEM É SEU ORIENTADOR
(de autoria de Milhor Fernandes)

sábado, 2 de outubro de 2021

LUHMANN

 


Autopoesis & as três mídias

Máquina Mimética e Teoria Sistêmica da Comunicação


Marcelo Bolshaw GOMES1

Introdução

Mimese, mímesis ou mimésis é uma noção crítica e filosófica com uma grande variedade de significados, incluindo a reprodução teatral, a representação, a mímica - essencialmente a imitação do gesto, voz e palavras de outrem. Platão e Aristoteles definiam 'arte' como a “mimese da natureza”. Porém, eles entendiam essa simetria entre cultura e universo de modo diferente. Para Platão, o mundo sensível era uma imitação do mundo inteligível. Já Aristóteles entendia a arte como sendo uma representação significativa da realidade. A Mimese, nesse caso, é interpretativa.

Também foram Platão e Aristóteles que associaram a noção de Mimese ao seu oposto dialético, a diegese. Para a teoria narrativa estruturalista, Mimese é 'mostrar' e Diegese é 'contar'. A mimese muitas vezes foi reduzida à imagem imediata, enquanto a diegese foi generalizada em outros elementos, tais como: o texto do narrador, o pensamento do personagem, a trilha sonora, o universo narrativo. O 'tempo diegético’ e o ‘espaço diegético’ são, nessa perspectiva, o tempo e o espaço dentro da trama, com suas particularidades, limites e coerências próprias.

Mais recentemente Erich Auerbach, Zygmunt Bauman e Paul Ricoeur2 escreveram sobre a Mimese, dando ênfase à repetição cognitiva dos atos práticos da vida. Entre as contribuições mais polêmicas está a de Richard Dawkins (2007), que criou a noção de 'Meme', a unidade mínima da memória. Para ele, o Meme seria uma unidade replicadora de transmissão cultural.

Tal como os genes se propagam no pool gênico saltando de corpo para corpo através dos espermatozoides ou dos óvulos, os memes também se propagam no pool de memes saltando de cérebro para cérebro através de um processo que, num sentido amplo, pode ser chamado de imitação (DAWKINS, 2007, p. 330).

Procurando inserir as ideias de Dawkins em uma 'estrutura', Susan Blackmore redefine 'Meme' como “uma ideia, comportamento, estilo ou uso que se espalha de pessoa para pessoa dentro de uma cultura” (BLACKMORE, 2000, 65). Para ela, somos meros hospedeiros de “máquina memética”, um dispositivo de cognição coletiva que seleciona e destaca os memes, independente da vontade e da consciência humana.

E essa abordagem é criticada por vários pesquisadores, uma vez que trata o comportamento e cultura pelo ótica da Biologia (SHIFMAN, 2013; TOLEDO, 2013), minimizando a ação dos indivíduos nesse processo de replicação.

Para presente perspectiva, no entanto, essa ótica é procedente e inovadora, embora careça de um melhor enquadramento epistemológico e sociológico.

E o objetivo deste artigo é inserir a noção de máquina mimética de Blackmore no contexto sistêmico de Luhmann, uma vez que ambas focam na cognição coletiva e apresentam elementos complementares relevantes. Para tanto, procede-se a uma breve compilação da teoria luhmanniana de sistemas com ênfase na comunicação; e, posteriormente, a sua sobreposição teórica à ideia de uma máquina mimética.

História do conceito de sistema

Sistema – para o funcionalismo - é um conjunto cujos diferentes elementos interagem entre si, desempenhando funções de integração e de manutenção do sistema. A interação dos elementos produzia uma ‘homeostase’ – um equilíbrio interno responsável pela estabilidade do sistema durante o tempo. Para o funcionalismo, a comunicação já era uma mediação dos conflitos sociais (em oposição à teoria de manipulação hipodérmica e à teoria da persuasão de Lasswell).

Para a cibernética, o sistema tende para a entropia e não a homeostase; a disfunção é compreendida como ruído. Os feedbacks promovem a auto organização contra a incerteza. A comunicação passou a ser vista como um fator de aperfeiçoamento sistêmico para diminuição da entropia. A comunicação é o inverso do ruído: a comunicação objetiva a homeostase e auto regulação; o ruído é a própria manifestação da entropia e da dissolução do sistema. O sistema funcionalista era fechado; o sistema cibernético, aberto.

O estruturalismo não dá nenhum sentido especial a ideia de comunicação e a noção de estrutura toma parte das características do conceito de sistema (totalidade, unicidade), que fica então reduzido a espaços de sincronia, áreas de simultaneidade dentro de um conjunto de regras estruturais. Lévi-Strauss considera que a Estrutura Social é formada pelos sistemas de parentesco, de bens e de linguagem – por exemplo. A estrutura é invisível e está por trás dos sistemas, sendo formada por relações e conexões recorrentes, que, com o tempo, se tornam regras estruturais “ocultas”, responsáveis pela reprodução social dos sistemas.

O biólogo chileno Umberto Maturana vai redefinir a ideia de Sistema através da noção de auto referência sistêmica (o sistema que observa a si próprio) e de autopoiesis (o sistema que produz e reproduz a si mesmo). Nessa definição, o importante não é a interação dos elementos internos, mas sim a relação entre a auto-organização do sistema e seu entorno, ou ambiente externo. O novo conceito de Sistema implica também em um lado de dentro que observa um lado de fora, isto é, na noção de auto referência. A observação de si também é uma operação sistêmica com consequências no sistema/ambiente observado.

Sem diferença com relação ao entorno, não haveria auto referência. Todo o sistema que se autoproduz, que se faz unidade de diferença, se singulariza e passa a se constituir numa identidade. O sistema também ganha autonomia, uma vez que diversifica seus acoplamentos de entrada e saída do ambiente, diminuindo sua dependência estrutural do exterior3.

O sistema como redução da complexidade

Luhmann assimila e aperfeiçoa ainda mais o conceito de sistema autopoiético e autorreferente de Maturana, afirmando que o sistema é uma simplificação da complexidade exterior. E essa redefinição/desenvolvimento do conceito de Sistema tem um significado avassalador para a tradição do pensamento sociológico. O Sistema não é uma categoria analítica, mas uma forma de descrição concreta, que leva em conta a complexidade da realidade.

O sociólogo distingue quatro tipos de sistemas: o inorgânico, o biológico (a célula, o cérebro, o corpo, o meio ambiente, etc), o psíquico e social. Esses tipos de sistemas são interpenetrados uns aos outros. O inorgânico é ambiente externo para o sistema biológico, que por sua vez é ambiente para os sistemas psíquico e social. Somos sistemas biológicos, com suporte inorgânico, que se observam através de um sistema psíquico condicionado por um sistema social. Os quatro sistemas tem interseções e entornos próprios, incluindo/excluindo parte dos outros dois sistemas. Nesse modelo sistêmico não existe nem ação nem estrutura, nem sujeito nem objetividade, apenas o sistema/entorno, em seu crescimento através de operações de diferenciação voltadas para dentro, reduzindo a complexidade externa através da auto-organização. Os sistemas se assemelham a filtros da complexidade. A autopoiesis ou auto-organização é assim uma conquista de autonomia do sistema em relação às incertezas do ambiente externo.

Luhmann assimila e supera várias etapas da reflexão sociológica: a sociologia das representações coletivas (Durkheim), as sociologias da ação social (Weber, interacionismo simbólico, etnometodologia), a sociologia da estrutura (derivada de Lévi-Strauss), as sociologias que combinam função e estrutura (Parsons, Habermas) e a sociologia das práticas sociais (Bourdieu, Giddens).

Habermas desenvolve uma concepção de sociedade que leva em conta a centralidade das ações comunicativas. Mas, Habermas acredita no intercâmbio simbólico entre as consciências, pressupõe, uma base consensual partilhada entre os sujeitos: a intersubjetividade.

Para Luhmann, no entanto, a sociedade não é formada pelas relações entre os seres humanos, a intersubjetividade não existe de fato. As pessoas estão no entorno do sistema social. Elas estão fora do sistema e o sistema está parcialmente dentro delas. Luhmann nos fornece outra forma de pensar e de descrever a sociedade.

Comunicação

A comunicação, para Luhmann, é a permuta (de energia, informação, recursos) entre sistemas sociais e não entre pessoas. Não há transferência de informação ou de conteúdos semânticos entre emissor e receptor. A Comunicação é produção de redundância instantânea (uma Mimese entre sistemas). Luhmann considera que a comunicação como unidade discreta de análise sociológica é mais precisa do que a Ação Social ou a Ação Comunicativa (RODRIGUES, NEVES, 2017, 86).

Há três tipos de comunicação segundo a duração: a interação, a organização e a sociedade. A interação é a relação imediata; a organização é menos breve e serve para tomar decisões; e a própria sociedade, formada por interações e organizações, também pode ser considerada uma comunicação na perspectiva histórica. Assim, o sistema social (imbricado aos sistemas biológico e cognitivo) é formado por comunicações (trocas sistêmicas).

Nos sistemas sociais mais evoluídos, Luhmann identifica quatro subsistemas funcionais: adaptação (economia), realização de metas (política), integração (sistema legal), manutenção de padrões latentes (instituições culturais como a escola, a igreja e … os meios de comunicação).

Segundo Luhmann, "a função dos meios de comunicação consiste em orquestrar a auto-observação do sistema social" (2005, 158). Para ele, os meios de comunicação não buscam a integração social como pensa funcionalismo ou a manipulação da realidade como imagina a teoria crítica. Sua função é “observar os observadores”, criando uma “memória sistêmica”, um "background" para as futuras comunicações da sociedade. É através dessa memória sistêmica de fundo que a realidade é contantemente reconstruída.

As mudanças do paradigma científico no século passado, tem como ponto central a questão do observador. A visão do universo depende do local em que se está. Enquanto para sociologia clássica existe um sujeito-observador e um objeto observado em uma realidade empiricamente dada; para Luhmann, o que há são sistemas formando uma realidade. O que chamamos de indivíduo, ator ou agente; Luhmann chama de sistema psíquico (a sede da auto referência). É uma perspectiva complexa e um construtivismo radical.

A ciência tradicional oscila entre o empirismo e o racionalismo, entre o indutivo e o dedutivo. Na sociologia de Luhmann, a (auto) observação é uma operação de diferenciação sistêmica. Os sistemas se observam através da observação direta e das observações de segunda ordem. Luhmann pode parecer relativista e subjetivista à primeira vista, mas não é. Ele é evolucionista, mas não de uma forma redutora; pois não se trata de seleção externa, mas sim de auto-organização interno. O sistema evolui na medida em que conquista autonomia. Sua teoria parece bastante abstrata, mas é voltada para observação e descrição de sistemas e ambientes concretos.

A máquina trimidiática

Para teoria das mídias de Harry Pross (APUD BAITTELLO JR, 2010: 63), a mídia primária é o corpo e a comunicação presencial (sons, ruídos, gestos, aparência, odores e, principalmente, a fala). A mídia secundária são as marcas sobre outros suportes (pedras, ossos, metal, couro, madeira e, principalmente, papel). A escrita, expressão maior da mídia secundária, amplia a memória, possibilitando a comunicação através do tempo/espaço e a história. E a mídia terciária, surge com a eletricidade e marca o retorno da imagem e da simultaneidade do tempo.

Ricoeur associa o aspecto prescritivo da linguagem à função poética e ao futuro; o aspecto narrativo, à função metalinguística e ao passado; e o aspecto descritivo, à função referencial e ao presente. O aspecto prescritivo é reduzido a uma dimensão 'moral' do presente – e não como uma projeção do futuro, como o exercício da imaginação no horizonte dos possíveis (GOMES, 2012).

Na perspectiva sistêmica contemporânea, o sistema social é englobado pelo sistema cognitivo, que por sua vez é englobado pelo sistema orgânico (meio ambiente do carbono, que tem o inorgânico como lado de fora). A mídia começa e acaba no corpo (que somos nós no sistema orgânico) e é transversal aos sistemas cognitivo (mídia secundária) e social (mídia elétrica).

Nesse novo modelo, o aspecto descritivo da linguagem corresponde à mídia primária e ao corpo; o aspecto narrativo, à mídia secundária e à memória; e o aspecto prescritivo, à mídia terciária e à simulação virtual do tempo.

Entre o sistema social e o cognitivo, está a linguagem (o software da máquina) e as operações de memória e simulação. A memória é uma mimese sistêmica que vem do corpo e a simulação é uma mímese de retorno do sistema social. A simulação é interior ao sistema social é feita por aparelhos elétricos. A mímese terciária é social; a mimese secundária é linguística; e a mimese primária é corporal, presencial e imediata (está sempre no aqui e agora).

A Máquina Mimética é formada pela alternância recorrente entre as operações de memória e de simulação (Mimese e Diegese sistêmicas) através das três mídias, transversais aos aos sistemas biológico, cognitivo e social.

As três mimesis e a escala de abstração

Para detalhar ainda mais a dinâmica desta máquina transsistêmica, é possível observar como as mídias primária, secundária e terciária interagem com a dupla Mimese e Diagese – observando sua tendência para simplificação e para subjetivação.

Por exemplo, na comunicação primária, o pensamento de Platão funciona bem: a Mimese é corporal, espontânea e presencial. A Diegesis é o conteúdo comunicado, a ‘ideia’. Na comunicação secundária, há uma inversão e os conceitos de Aristóteles são mais aplicáveis: a Mimese é uma representação mental codificada da realidade; e a Diegesis corresponde à duração e as intensidades do discurso. No contexto da comunicação terciária, há uma duplicação da polaridade. Mimetiza-se o corpo e a representação do mundo descontextualizada; e a Diegesis produz ao mesmo tempo o sentido e o tempo da narrativa (GOMES, 2019).

Pensando o tempo de forma simultânea, há a dialética entre passado e presente, a máquina do pensamento (a Língua, o sistema de codificação linguística), que produz informação e cujo objetivo principal é a organização da memória social. O passado invocado pelas mídias secundárias alimenta a mídia primária, o corpo contextualizado no presente. Há também a dialética entre o presente e o futuro, a máquina da imaginação (na verdade, um conjunto aberto de mecanismos de triagem, associação e analogia de conteúdos simbólicos), que registra a experiência audiovisual e não informação, com o objetivo de antecipar e simular situações possíveis de se configurar. Aqui são as simulações dos futuros possíveis que fornecem probabilidades para o presente se organizar. Essas duas máquinas ou dialéticas inciendem sobre o corpo no presente, formando assim uma terceira máquina, a máquina trimidiática enraizada no corpo, extendida através da linguagem e de ferramentas tecnológicas.

Tabela 1 – mídia x mimesis


MIMESE

DIEGESE

Mídia primária

Memória do corpo

Ideia, arquétipos

Mídia secundária

Representações Mentais

História, Intriga narrativa

Mídia terciária

Luz e Som

Emoções, valores, sentimentos

Elaborada pelo autor

No paradigma presencial da mídia primária, a Mimese é a memória do corpo, a imitação de gestos, sons, palavras. E a Diegese é o conteúdo do que transmitido: lendas, preces, conceitos. Segue-se assim o modelo de Platão em que o corpo mimetiza o universo arquetípico universal. A Mimese é corporal, espontânea e presencial. A Diegese é o conteúdo comunicado, a ‘ideia’.

Na comunicação secundária, há uma inversão e os conceitos de Aristóteles são mais aplicáveis: a Mimese é uma representação mental foneticamente codificada da realidade; e a Diegese corresponde à duração e as intensidades do discurso no texto. Com o aparecimento da mídia secundária, surge também a Máquina Social de Pensamento. Agora, a Mimese é a memória social objetiva, descontextualizada e mimetizada através de representações mentais codificadas; e a Diegese, por sua vez, corresponde à noção de História e/ou estrutura narrativa. A mídia secundária não anula a primária, mas se sobrepõe a ela. Assim, a Mimese e Diegese primárias continuam ativas nos processos de Mimese e Diegese secundários.

E com o advento da mídia terciária e da Máquina Social da Imaginação, a Mimese tornou-se uma experiência do corpo recontextualizada por imagens e sons mediados por tecnologia; e a Diegese se tornou uma estrutura narrativa, a intriga. A diferença fundamental entre Diegese secundária e terciária, é que a intriga histórica não tem consciência de que é uma construção poética e se acredita científica, objetiva e absoluta; enquanto a intriga narrativa sabe aonde quer chegar e se percebe como sendo uma estrutura metalinguística.

No contexto da comunicação terciária, também há uma nova duplicação das polaridades. Mimetiza-se o corpo (ou a Imagem) e a representação do mundo descontextualizada (Palavra). E a Diegese, nesse cenário convergente, agora corresponde à segunda realidade, aos universos narrativos paralelos que criamos para compreender nosso mundo. Nele, não mimetizamos apenas comportamentos, atitudes e conceitos, mas sobretudo emoções, sentimentos, intenções, subjetividade. Os sistemas se comunicam, não através de Memes ou unidades de sentido, mas sim sinais replicados cada vez mais simples na escala de abstração de Flusser (2008, 40-45), sempre tentando se organizar mais para diminuir o próprio ruído e a complexidade do ambiente e dos outros sistemas a eles externos.

Conclusão

Em outros textos, comparou-se essa teoria das três mídias ao conjunto das três funções cognitivas midiáticas – a memória do passado, a percepção do presente e a simulação do futuro e ao mito das moiras.

Nessa analogia, as tecelãs do destino são o antagonista estrutural do herói contemporâneo, o protagonista que luta contra as estruturas narrativas do tempo. A tripla estrutura narrativa das três mídias (primária, secundária e terciária) forma uma máquina social de fabricação do tempo.

As moiras são, na mitologia grega, as três irmãs que determinam o destino tanto dos deuses quanto dos seres humanos: Cloto (que significa ‘fiar’) que segura o fuso e tece o fio da vida; Láquesis (ou ‘sortear’) que puxa e enrola o fio tecido; Átropos (‘afastar’) que corta o fio da vida. O tear é a Roda da Fortuna: as voltas da roda posicionam os fios ora no topo, ora no fundo, explicando assim os períodos de azar ou sorte de todos. Elas não podem ser manipuladas e nada se pode fazer para detê-las ou ganhar-lhes o favor. As três Moiras representam a existência inflexível do tempo.

As moiras também representam as diferentes dimensões de ‘efeito de sentido’ das narrativas. As narrativas têm uma dimensão emocional (causam alegria, medo, raiva, amor) que funciona a partir da noção de pertencimento, da ampliação e/ou reafirmação da identidade. Essa dimensão corresponde à bruxa do presente. Também têm uma dimensão psicológica em que se associa e compara as estórias simbólicas à história biográfica, representando a bruxa do passado. E as narrativas possuem ainda uma dimensão universal e sagrada em que nosso espírito sonha seus destinos – é a bruxa do futuro. Além das emoções e das tradições, essa é a dimensão que, através da imaginação, nos faz reavaliar a vida.

E esses três princípios – a narração do passado, a descrição do presente e a previsão do futuro – formam a imagem das 'tecelãs da intriga' – as moiras do destino, representando essa máquina social de fabricação do tempo formado pelas três mídias (GOMES, 2013).

Traduzindo esses três principios narrativos para a linguagem da teoria de sistemas luhmanniana, pode-se falar em três operações sistêmicas: memória, auto observação descritiva e simulação de possibilidades. Essas três operações formam o mecanismo de autopoesis, de criatividade sistêmica.

As narrativas de ficção científica entendam essa máquina social como um inimigo ficcional a ser vencido. Mas, essa máquina mimética é também um dispositivo sistêmico real em nossa vidas. A sociedade distópica, em que a tecnologia aumenta as desigualdades, é uma simulação projetada (um meme) pela própria máquina trimidiática para nos alertar sobre um futuro possível. A utopia social tecnológia, por outro lado, é um meme que sugere o uso da máquina mimética para um aprendizado individualizado e uma relação ecológica com o meio ambiente.

Talvez seja necessário lembrar que nós somos essa máquina e que, o que está em jogo, é o final de nossa história enquanto espécie. Tudo depende do que mimetizarmos a partir de agora e da replicação desses memes através dos sistemas bio/psico/sociais.



Referências

BLACKMORE, Susan. The Meme Machine. Oxford: Oxford University Press, 2000

BAITELLO JR., Norval. A serpente, a maçã e o holograma – esboços para uma teoria da mídia. São Paulo: Paulus, 2010.

BYSTRINA, I. Tópicos de Semiótica da Cultura. São Paulo: PUC/SP, 1995.

DAWKINS, Richard. O gene egoísta. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

FLUSSER, V. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.

GOMES, Marcelo Bolshaw. O Hermeneuta - uma introdução ao estudo de Si. 262 p. Dissertação (mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Departamento de Ciências Sociais. Natal: Edfurn 1996. <https://www.academia.edu/34061443/O_HERMENEUTA.pdf >

___ O mestre dos sonhos contra as tecelda intriga. Revista Imaginário n. 05. p.78-96. João Pessoa (PB): Editora Marca de Fantasia, 2013. <https://www.academia.edu/8783978/O_mestre_dos_sonhos_contra_as_tecelans_da_intriga >

___ Comunicação e Hermenêutica - apontamentos para uma teoria narrativa da mídia. Revista Comunicação Midiática, v.7, n.2, p.26-46, maio/ago. 2012. <http://www.mundodigital.unesp.br/revista/index.php/comunicacaomidiatica/article/viewFile/181/128 > último acesso em 16/07/2015.

___ Imagem, palavra e música - mimese e diegesis nas narrativas audiovisuais. Revista Estética n°18. São Paulo: USP, 2019. http://estetica.webhostusp.sti.usp.br/index.php/estetica/article/view/42

LUHMANN, N. A Realidade dos Meios de Comunicação. São Paulo: Paulus, 2005.

PROSS, Harry. A Sociedade do Protesto. São Paulo: Annablume, 1997.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrrativa – tomos I, II e III (1983; 1984; 1985); tradução: Constança Marcondes Cezar; Marina Appenzeller; Roberto Leal Ferreira. Campinas, Papyrus: 1994; 1995; 1997.

RODRIGUES, Léo Peixoto; NEVES, Fabrício. A sociologia de Niklas Luhmann. Petrópolis: Vozes, 2017.

TOLEDO, G. L. Uma crítica à memética de Susan Blackmore. Curitiba: Revista Filosofia Aurora, v. 25, n. 36, p. 179-195, jan./jun. 2013.

SHIFMAN, Limor. Memes In Digital Culture. Cambridge: MIT Press, 2013.


1 Doutor em Ciências Sociais, professor-pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. marcelobolshaw@gmail.com

2 Segundo Ricoeur (1994, 1995, 1997), por exemplo, Mimese não é uma cópia, réplica do idêntico, porque a Diegese produz sentido através da interpretação (1994, 60). Para Ricoeur, Mimese é a imitação criativa ou representação interpretativa da ação, através do qual aprendemos atitudes, comportamentos e nos comunicamos; e Diegese (ou Intriga) é o agenciamento de fatos, sujeitos e cenários – elementos estruturantes das narrativas e da vida – segundo o desfecho desejado. Ricoeur também estabelece (1994, 85-132) três mimeses indissociáveis: a mimese criativa do enunciador; a auto configuração estrutural das narrativas; e a repetição cognitiva de cada leitor. A Diegese (ou Intriga) seria essa tríplice estrutura de Mimesis narrativas.

3 O sistema é algo que estabelece relações consigo mesmo e se diferencia dessas relações frente às de seu entorno. Há quatro formas de diferenciação: segmentação (horizontal), estratificação (vertical), centro-periférica e diferenciação de sistemas funcionais.