sábado, 27 de julho de 2019

o bom combate

Quando chegamos a este mundo, já encontramos tudo pronto. Temos, portanto, uma dívida para tudo com que contribuiu de alguma forma para nossa existência, não como a culpa cristã que constrange constantemente cada um à submissão, mas como uma exigência coletiva para liberdade. Trabalhamos para saldar nossa dívida com a sociedade, com os antepassados e com a natureza. 

Só assim seremos livres.

É claro que muitos dirão: não fomos nós que fizemos esse mundo, não é justo que sejamos responsáveis por ele. No entanto, tal atitude, apenas aumenta a dívida de todos, a ser paga por poucos que entendem que não há alternativa e lutam. E lutam. 

Quando chegamos a este mundo, os homens já lutavam pela dívida. Alguns se exploram tão intensa e profundamente que criam asas e voam para as dimensões internas do tempo.

A Ascensão é uma dádiva, o presente da Águia. É a transformação da dívida em dádiva. Gratidão generosa que abre as Portas do Sem Fim. 

quarta-feira, 24 de julho de 2019

O Monstro


A monstruosidade vem ao mundo como uma libertação do que foi recalcado. Para ser colonizado, inibiu-se o lado selvagem. Para sermos modernos, ocultamos no inconsciente nosso escravismo. O monstro que hora emerge é o retorno desses recalques, uma explosão do lixo emocional represado por décadas. uma pulsão de morte, de destruição do moderno e do civilizado, o neo fascismo.

Mas, o monstro traz o passado de volta por pouco tempo, é apenas um contratempo para um vigoroso movimento contrário no futuro, é somente o estrebuchar final do patriarcalismo de muitos séculos. O monstro desperta e une seus adversários, fortalecendo e ampliando as tendências históricas de um tempo progressista porvir.

Quem viver, verá.

sexta-feira, 19 de julho de 2019

o amor suficiente


Há uma antiga estória que conta um casal muito pobre iria comemorar o Natal. O rapaz, trabalhador, incansável desejava levar algo para ceia e um presente para sua amada, mas não tinha o suficiente. A moça, por sua vez, também queria dar um presente para seu dedicado esposo, embora não tivesse como. Seu único bem era um relógio de bolso, herança de seu avô, que carregava sempre nas calças. O jovem, então, decidiu vender o relógio para comprar um panetone, cidra e um belo pente artesanal para sua esposa pentear seu longo cabelo preto. Ela, do outro lado, para comprar uma corrente para relógio do marido vendeu sua cabeleira a um peruqueiro.

Naquela noite de natal, quando descobriu que cada um havia dado o que tinha de mais valioso para si em troca de algo que não mais seria útil para o outro, o casal descobriu que o amor verdadeiro, a dádiva, era o mais importante dos presentes. E que aquilo era suficiente.


Resumo da estória contada por ESTES, Clarissa Pinkola. O dom da história – uma fábula sobre o que é suficiente. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. Pág.s 19-27

Bal Shem Tov



O amado Bal Shem Tov estava à morte e mandou chamar seus discípulos.

- Sempre fui o intermediário de vocês e agora, quando eu me for, vocês terão de fazer isso sozinhos. Vocês conhecem o lugar da floresta onde eu invoco a Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do mesmo modo. Vocês sabem tudo isso, e Deus virá.

Depois que o Bal Shem Tov morreu, a primeira geração obedeceu exatamente às suas instruções, e Deus sempre veio. Na segunda geração, porém, as pessoas já se haviam esquecido de como se acendia a fogueira do jeito que o Bal Shem Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas ficavam paradas no local especial da floresta, diziam a oração, e Deus vinha.

Na terceira geração, as pessoas já não se lembravam de como acender a fogueira, nem do local na floresta. Mas diziam a oração assim mesmo, e Deus ainda vinha.

Na quarta geração, ninguém se lembrava de como se acendia a fogueira, ninguém sabia mais em que local exatamente da floresta deveriam ficar e, finalmente, não conseguiam se recordar nem da própria oração. Mas uma pessoa ainda se lembrava da história sobre tudo aquilo e a relatou em voz alta. E Deus ainda veio.

ESTES, Clarissa Pinkola. O dom da história – uma fábula sobre o que é suficiente. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. Pág.s 08-09

a porta aberta


Há ainda um conhecida anedota sufi sobre um jovem casal, que, chegando em sua casa nova, logo após o casamento, para passar a primeira noite da lua de mel, se esqueceu de fechar a porta de entrada. Quando já iam em beijos, a noiva lembrou:

- Meu amor, a porta está aberta.
- Pois é, meu bem, a porta está aberta.
- Vá fechar.
- Eu não. vá você.
- Eu não. vá você.
- Eu não. vá você.
- Eu não. vá você.

Combinaram, então, que o primeiro a se mexer teria que fechar a porta e ficaram parados, qual duas estátuas, imóveis no centro da sala de estar.

Acontece que passavam por ali alguns ladrões e vendo aquela casa nova, cheia de presentes, completamente aberta e com tudo acesso; decidiram levar algumas coisas.

Os vizinhos avisaram a polícia, que quando chegou só encontrou a casa vazia, ou melhor, com o jovem casal parado imóvel no centro da sala vazia. O policial, então, perguntou:
- O que houve aqui?

Como não obteve resposta, o oficial ia levar o noivo quando então a mulher falou:
- Por favor, seu policial, não leve meu noivo.

Foi então que esse disse com cara de vitorioso:
- Você falou primeiro, agora feche a porta!

Kokyang Wuhti

No início dos tempos, uma faísca de consciência se incendiou na grande noite do espaço infinito. Esta luz era o espírito do Sol. 

O Espírito Solar criou o Primeiro Mundo: uma enorme caverna povoada apenas por insetos e governada pela Avó Aranha – a tecelã dos destinos, velha como o tempo e jovem como a eternidade, mãe de tudo na terra com quem se ela se funde e se confunde. 

Observando como se viviam os insetos, o espírito achou sua criação pouco inteligente, incapaz de Lhe compreender e dar louvor. 

Então a Avó Aranha disse aos insetos:

- O espírito do Sol que nos criou, está descontente com vocês, porque não vocês não entendem o sentido da vida. Assim, me foi ordenado que os mandem ao Segundo Mundo, que está acima do teto da caverna.

Os insetos então começaram a escalar as paredes da caverna em direção ao Segundo Mundo. A subida era tão alta e tão penosa que, antes de chegarem ao Segundo Mundo, muitos dos insetos já haviam se transformado em animais serpentes, lagartos e dragões.

O Espírito do Sol, então, os contemplou e disse:

- Esses répteis são tão estúpidos quanto os insetos. Também não são capazes de compreender o sentido da vida.

Novamente pediu a Avó Aranha para que os conduzisse para o Terceiro Mundo – em um nível acima na caverna. E no transcurso desta nova viagem, alguns animais se transformaram em homens. 

No Terceiro Mundo, a Avó Aranha ensinou aos homens a tecerem e as mulheres a fazerem potes. Ela também instruiu a todos a louvar ao sol e na cabeça dos homens e mulheres começou a despontar o sentido da vida. 

Entretanto, bruxos malvados, extinguiram a luz e cegaram os humanos. As crianças choravam, os homens guerreavam e se lastimavam, haviam perdido o sentido da vida.

A Avó Aranha voltou e lhes disse:

- O espírito do Sol, está muito triste com vocês, porque perderam a centelha de luz que havia brotado em suas cabeças. Agora, vão ter que subir ao Quarto Mundo. Mas desta vez, deverão encontrar o caminho sozinhos.

Os homens, perplexos, se perguntavam como poderiam subir sozinhos para o Quarto Mundo. Enfim, um ancião tomou a palavra:

- Vamos enviar nosso amigo Sapo como mensageiro para explorar o Quarto Superior e nos contar o que há por lá.

O Sapo pulou até o alto da caverna e encontrou no centro de um grande deserto, uma mulher vestida de preto. Era a Morte.

- Venho da parte dos homens que habitam o mundo debaixo deste – disse o Sapo. - Eles desejam compartilhar contigo este país. Isso é possível?

A Morte refletiu por alguns momentos.

- Se os homens querem vir, que venham! Mas, como comigo tudo é passageiro, eles só durante algum tempo. Depois, só os que se desenvolverem, vão poder voltar ao Terceiro Mundo, os demais serão dados como alimento aos lagartos do plano debaixo e voltarão a ser insetos.

O Sapo voltou ao Terceiro Mundo e contou aos homens o que ouvido.

- A Morte aceita compartilhar com vocês o Quarto Mundo, comunicou, mas depois de um tempo apenas os que se desenvolverem a luz interior poderão voltar para casa. Os que não conseguirem, voltarão aos mundos inferiores.

Então os homens escalaram a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, que havia no centro do Terceiro Mundo. Nada levavam consigo, estavam nus, alegres como crianças, tão desprovidos como nos primeiros dias de vida.

- Sejam prudentes e corajosos para voltarem quando chegar o dia! E não se esqueçam de que sou sua Mãe e que o Espírito do Sol, é seu pai!

Entretanto os homens já não mais a escutavam, pois já tinham alcançado às alturas. Ao chegarem ao Quarto Mundo, construíram povoados, plantaram mandioca, milho, melões, fizeram jardins e hortas. 

E desta vez, para dar sentido às suas vidas, se lembrarem de quem eles eram, de onde vieram e para onde estão indo – os homens inventaram as lendas e estórias sagradas, em homenagem a grande tecelã dos destinos.

Kirtimukha

Shiva, o destruidor de mundos, passeava com sua esposa Parvarti, quando de repente surgiu um monstro e disse:

- Quero que sua esposa seja minha mulher!

Ultrajado com aquele insulto, o deus Shiva cria então um monstro dez vezes maior e mais ameaçador que o primeiro, forçando este a lhe pedir clemência.

Shiva, então, poupa a vida do primeiro monstro, que passou a ser seu devoto.

- "Kirtimukha" (que o mal consuma a si mesmo)

E os monstros se auto devoram.

Hoje, a máscara do demônio Kirtimukha serve como escudo de proteção nas casas e templos dedicados ao deus Shiva.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Indra


A HUMILHAÇÃO DE INDRA[1]:
Ser insignificante e infinito
Segundo a mitologia Védica[2], um poderoso Dragão chamado Vrtra, rei dos demônios Asuras, represou dentro de si todas as águas do universo e houve, então, uma grande seca cósmica que durou milhares de anos. O rei dos Devas, Indra, Senhor do Céu e dos relâmpagos, então, atirou um raio no Dragão e explodiu Vrtra, e... a água fluiu novamente sobre a Terra e o universo teve sua sede saciada. A vitalidade havia recomeçado a brotar. As águas se libertaram e correram pela terra, circulando mais uma vez pelo corpo do mundo. E o sangue que corria pelas veias do Dragão morto se transformou na seiva dos campos e florestas. Os deuses voltaram para o topo da montanha central da Terra e passaram a reinar lá do alto.
Como recompensa pelo seu feito, Indra se proclamou rei dos deuses da Terra, responsável por toda vida do planeta, fosse mineral, vegetal ou animal. Decidiu, então, fazer da Terra um majestoso palácio, como nenhum outro no universo e convocou o espírito humano, Vishvakarman, o artífice dos deuses.
- Vamos construir uma civilização inteiramente nova aqui – uma que seja merecedora da minha dignidade – disse Indra.
Então, Vishvakarman começa as obras. Porém, Indra sempre volta com novas ideias, exigências absurdas e detalhes grandiosos. O empreiteiro começa a pensar: Meu Deus, ambos somos imortais, então esse trabalho não vai terminar nunca. O que eu posso fazer? Então, decide procurar Brahma, o criador do Universo e queixar-se a ele sobre o trabalho interminável a que está submetido.
Brahman é onipotente, onipresente, onisciente, infinito, além do espaço e do tempo é o Brahman. Ele não tem atributos como a forma, a magnitude e as qualidades e está além do tempo, do espaço e da imaginação por isso não pode ser descrito com palavras. Brahman é o absoluto, supremo, impessoal, infinito, eterno, a fonte pré-cósmica da divindade, a causa de todas as causas, sem começo e sem fim, do qual todo emana e ao qual todo retorna.
Quando Vishvakarman entrou, Brahma estava sentado em um lótus que cresce a partir do umbigo de Víshnu – o mestre dos sonhos, modelador de todas as formas – dormindo e flutuando no espaço cósmico, montado em uma grande serpente. E ao fundo, Shiva, Senhor do Tempo e da Morte, dançava sua dança de espadas com seus seis braços. Brahma é o Criador do Universo; Vishnu, o preservador da vida; e Shiva, o transformador de todas as formas. Eles criavam e destruíam mundos.
Ao ouvir o pedido de Vishvakarman, Brahma diz: “Tudo bem. Eu darei um jeito nisso”.
Na manhã seguinte, logo cedo, chegaram ao portal do palácio de Indra dois brâmanes: um menino de apenas dez anos, vestido em ricas túnicas azuis e um velho ancião, coberto apenas por alguns panos velhos vermelhos. Ambos caminhavam juntos com elegância, exalando sabedoria e graça, tinha um olhar sereno e extático, como se estivessem com os seus pensamentos perdidos no infinito.
O rei dos deuses recebe-os em seu trono, no salão central do palácio, e depois de os cumprimentar formalmente, perguntou aos visitantes santos:
— Ó veneráveis brâmanes, dize-me o propósito de tua vinda.
A bela criança respondeu:
— Ó Indra, rei dos deuses, ouvi falar do majestoso palácio que estás construindo, e vim te fazer algumas perguntas. Quantos anos levará para que fique pronto? Que outras proezas de engenharia o artesão Vishvakarman será solicitado a realizar? Ó Supremo dentre os Deuses, nenhum Indra antes de ti conseguiu terminar um palácio como será o teu e gostaríamos e saber como pretende fazê-lo.
— Indras anteriores a mim? - disse Indra, confuso - Do que você está falando?
— Sim, Indras anteriores a você — diz o jovem — Pare e pense: o lótus cresce do umbigo de Vishnu, então, desabrocha e nele se senta Brahma. Brahma abre os olhos e nasce um novo universo, governado por um Indra. Ele fecha os olhos. Abre-os novamente – outro universo, um novo Indra. Fecha os olhos... e, durante toda sua vida (311.040.000.000.000 anos terrestres), Brahma faz isso – até que chegue o momento da encerrar a grande expansão e começar a grande retração do universo, quando todas as coisas criadas serão absorvidas à unidade primordial.
— Então o lótus murcha e, após uma eternidade, outro lótus desabrocha, aparece Brahma, abre os olhos, fecha os olhos. . . Indras, Indras e mais Indras — completou o visitante mais velho — cada galáxia do universo um lótus, todas com seu Brahma. Vários homens levariam várias vidas para contar as gotas d'água do oceano e os grãos de areia das praias do mundo; mas quem contaria esses Brahmas, sem falar nos Indras? Quem será capaz de contar os universos que desapareceram, ou as criações que brotaram de novo do abismo amorfo das águas? Quem saberá contar as eras que passam no mundo? E quem irá vasculhar as vastas infinitudes do espaço para contar os universos lado a lado, cada qual com seu Brahma e seu Vishnu? Quem há de contar todos os Indras, ascendendo um a um ao reinado divino, e um após outro desaparecendo?
Enquanto falavam, um formigueiro gigantesco, marchando em milhares de colunas perfeitas, aproximou-se pelo teto, paredes e piso do palácio de Indra. Os visitantes as olham e riem entre si.
— Do que você está rindo?
— Preferimos não te contar — disseram ambos, rindo ainda mais.
— Ó veneráveis visitantes — Ó criança, suplicou Indra, com uma nova e visível humildade — Não sei quem sois. Revela-me esse segredo de todas as eras, essa luz que dissipa a escuridão. 
— Cada uma dessas formigas já foi um Indra um dia — disse o menino, completando em seguida — Como você, cada uma matou o dragão Vrtra e ascendeu à categoria de deus planetário. Agora, porém, através de muitos renascimentos e reencarnações, cada um voltou a se transformar em formiga. — concluiu o menino, olhando serenamente para seu anfitrião humilhado.
O rei dos deuses da terra, do mar e do céu, apesar de todo seu esplendor, tornara-se insignificante diante de seus próprios olhos.
— Quem são vocês? Quais os seus nomes? Onde moram?  — perguntou Indra.
— Não temos família, nem casa – respondeu o mais velho — A vida é curta. Toda vez que morre um Indra, cai um fio de cabelo. Metade deles já caiu. Logo, logo, todos vão cair. Quando todos caírem, o atual Brahma irá morrer e eu também morrerei – por isso não temos casa ou família, nem trabalho ou divertimento que não seja a tarefa de gerar e destruir universos dentro do breve intervalo de tempo em que vivemos.
Nesse momento, os dois visitantes misteriosos se transformaram nos deuses Vishnu e Shiva, se despediram e foram-se embora. Indra sentiu-se totalmente arrasado e se perguntou se aquilo teria sido um sonho. Mas já não sentiu mais nenhum desejo de ampliar o esplendor celestial de seus domínios. Mandou chamar Vishvakarman, cobriu-o de presentes e mandou o artesão descansar. Porém, seu coração não estava feliz, amargando sua humilhação. Resolveu então renunciar a sua posição de deus planetário, se refugiar na floresta e se tornar um eremita em uma vida de ascetismo e meditação.
Mas sua bela rainha Indrani implorou ao conselheiro espiritual do rei, Brihaspati, senhor da Sabedoria Mágica, que afastasse da mente de seu marido essa decisão radical. O hábil Brihaspati falou com Indra sobre as virtudes da vida espiritual, mas falou também das virtudes da vida secular, e deu a cada uma seu valor.
– Você está no trono do universo e representa a virtude e o dever – o dharma – e encarna o espírito divino em seu papel terreno – disse o sábio, acrescentando – O que acha de representar nesta vida terrena a imanência desse mistério da eternidade?
Indra cedeu e cumpriu o papel que lhe fora destinado no universo transitório do qual era parte, e não mais teve despeito do desfile das formigas - e dos diversos Indras que haviam existido antes, e que tornariam a existir repetidamente por toda a eternidade.



[1] Adaptado de CAMPBELL, Joseph. Mitos de Luz: Metáforas Orientais do eterno. São Paulo: Editora Madras, 2006. pp. 22-25
[2] Extrato do Brahmavaivarta Purâna, resumida e adaptada para o ocidente por Heinrich Zimmer, em Myths and Symbols in Indian Art and Civilization, APUD ELIADE, 1991, 56.Os Puranas são textos sagrados hindus que datam de aproximadamente 400 d.C.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Star Wars


GUERRA NAS ESTRELAS ACABA
Resumo: o presente texto descreve e analisa o universo narrativo Star Wars e discute seu papel tanto dentro do gênero de ficção científica audiovisual quanto para o campo dos Estudos Narrativos.

1.      Introdução
Star Wars (Guerra nas Estrelas) é uma franquia criada pelo cineasta George Lucas, estruturada em um esqueleto narrativo de doze filmes de longa-metragem: três trilogias de filmes épicos de ficção científica ‘opera soap’, um filme de animação e dois de estórias derivadas. Com A ascensão do Skywalker, programado para dezembro de 2019, Lucas pretende finalizar a narrativa principal, após 42 anos.  
O primeiro filme foi lançado em 1977 e se tornou um fenômeno inesperado de cultura midiática internacional, dando início à "blockbusters age" – período de superproduções cinematográficas que viram franquias com brinquedos, jogos, livros e outras mídias. Além disso, recebeu sete Oscar’s, teve a maior bilheteria de sua época e popularizou a ficção científica ‘opera soap’ como gênero, permitindo que outras franquias (como Star Treak e Galactica) surgirem e se desenvolvessem. 
O filme teve duas sequências - O Império Contra-ataca (1980) e Retorno do Jedi (1983) -  formando a trilogia original, em que Luke Skywalker, Han Solo e Princesa Leia lutam pela Aliança Rebelde contra o Império Galáctico e a luta contra Darth Vader, um ex-Jedi que sucumbiu ao Lado Sombrio da Força. O vilão é pai dos irmãos protagonistas Luke e Leia. Eles se recusam a matar o próprio pai e acabam fazendo com que o vilão retribua o favor, quebrando o círculo negativo de reprodução da força.
Dezesseis anos depois, surge uma segunda trilogia de filmes, chamada de ‘prequela’ - A Ameaça Fantasma (1999), Ataque dos Clones (2002) e A Vingança dos Sith (2005) - desta vez contando como foi o período anterior, como o jovem Jedi Anakin Skywalker se transformou em Darth Vader e da República substituída pelo Império.
Em 2008 foi lançado o longa-metragem de animação Star Wars: The Clone Wars, um spin-off piloto para série de animação de televisão do mesmo título, narrando os acontecimentos entre os filmes Ataque dos Clones e A Vingança dos Sith.
A Disney comprou a franquia em 2012, e anunciou uma última trilogia, que retoma a linha do tempo narrativo no futuro, composta por O Despertar da Força (2015), Os Últimos Jedi (2017) e A ascensão do Skywalker (2019). Trinta anos após a queda do Império (descrito no Retorno do Jedi, terceiro filme da primeira trilogia), Luke Skywalker está desaparecido e conflito agora é entre Nova República e a Primeira Ordem, do lado sombrio. Han e Leia tiveram um filho, Kylo, que foi para o lado sombrio e desejar ser como seu avô Darth Vader. Há também um novo personagem feminino Rey, a aspirante à cavaleira Jedi e ao protagonismo positivo da força. Esses dois personagens encarnam os polos da narrativa nos dois primeiros filmes, enquanto para o personagem de Luke Skywalker – considerado o ‘escolhido’ para unificar a força – coloca-se a questão da ‘ascensão’, a tradição Jedi de se manter consciente após a morte.
Além da nova trilogia e de uma reorganização do universo narrativo da franquia[2], a Disney também produziu dois filmes ‘spin-offs’, isto é, histórias de personagens secundários derivadas da macro narrativa[3]: Rogue One (2016) e Solo (2018). Rogue One narra a história de um grupo da Aliança Rebelde que se une em torno da destruição da Estrela da Morte; e acontece entre os eventos narrados nos filmes A Vingança dos Sith (o terceiro da segunda trilogia) e Uma Nova Esperança (o primeiro filme da trilogia original). E Solo é um história que se passa dez anos antes e explora as primeiras aventuras de Han Solo e Chewbacca.
2.      Autocrítica
O livro Universos Sci Fic (GOMES, 2016) descreve cinco universos narrativos de ficção científica audiovisual: Star Trek, Stargates, Baylon 5, Galactica e Alien versus Predator. Vincula-se ali a narrativa de ficção científica ao impacto imaginado da tecnologia sobre a vida; e o universo Star Wars nesse contexto era apenas um ‘capa espada’ futurista, importante para popularização do gênero como público midiático, mas sem muito significado no desenvolvimento intertextual do gênero narrativo.
Outro motivo de antipatia foi o documentário Dune, de Alejandro Jodorowsky que mostra, não apenas a influência decisiva dos cinco livros de Frank Hebert mas também a apropriação temática, estética e de design de vários elementos reinterpretados por Jodorowsky/Moebius pela franquia Star Wars. Em relação aos romances de Hebert havia a mistura de futurismo tecnológico com uma nobreza medieval, o tema das duas gerações de escolhidos, a narrativa épica atravessando gerações. E em relação a proposta de Jodorowsky, havia a concepção visual, dos figurinos, das naves e até alguns efeitos especiais. A estrutura mitológica e simbólica de Star Wars veio de Duna. Escrevi um artigo para o blog.[4]
Porém, não há como negar o enorme impacto social do universo narrativo Star Wars na cultura contemporânea. É a maior franquia da história do cinema, com a soma dos filmes e produtos equivalente a mais que 30 bilhões de dólares.
Por preconceito contra o sucesso comercial, costuma-se subestimar o universo Star Wars em relação a vários outros aspectos importantes da franquia. Um dos aspectos relevantes frequentemente negligenciado é a importância deste universo nas práticas de transmediação narrativa – justamente um dos eixos centrais da investigação sobre ficção científica audiovisual. Antes da Disney, as narrativas do universo expandido (hoje descanonizadas e postas como ‘lendas’) eram secundárias em relação a narrativa cinematográfica. Atualmente, existem projetos multimídia integrados[5].
Há diversas séries de animação para TV[6], vários jogos de tabuleiro[7], brinquedos (a série Lego é um clássico), jogos eletrônicos[8], romances[9], histórias em quadrinhos[10] e inúmeros eventos de fãs são realizadas anualmente para festejar o universo, como Star Wars Celebration.
Existe até um mapa celeste da franquia em que as histórias da saga são referenciadas no céu astronômico. Assim, da mesma forma que os nativos aprendem a olhar as estrelas através de suas narrativas míticas (a etnoastronomia); as crianças atuais conhecem o céu através das narrativas de ficção científica de Star Wars. O que à primeira vista parece um enredo ‘capa espada futurista’ é uma forma contemporânea de mitologia, uma narrativa simbólica complexa de nossa realidade.
3.      Temas míticos, transmídia e estudos narrativos
Não é nenhuma novidade que Lucas, associou temas mitológicos clássicos à intertextualidade da ficção científica, através do uso de arquétipos universais (formas transculturais identificadas por C. G. Jung) e do monomito - a jornada do herói proposta de Joseph Campbell (1990; 1995). O herói decaído (Anakin\Ben Solo), os conflitos edipianos entre pai e filho (Anakin\Obi-Wan, Luke\Vader e Kylo Ren\Han Solo), o protagonismo feminino através de mulheres fortes (Padmé\Leia\Rey), entre outros temas mitológicos clássicos reinterpretados em um contexto de ficção científica.  
Um dos elementos narrativos originais da saga, que não se encontra em nenhuma outra história mítica ou ficcional, é a "Força" - um "campo de energia criado por todas os seres vivos, que nos cerca, nos permeia e mantém a galáxia unida". Essa energia onipresente pode ser utilizada tanto para o bem como para o mal, o lado sombrio, que pode possuir seus detentores, preenchendo-os de ódio, agressão e maldade. Coloca-se assim um tema moral dos contos de fadas (a luta do bem contra o mal) dentro do contexto ‘realista’ da ficção científica.
O que é mais notável, no entanto, é que a utilização de temas mitológicos dentro de uma lógica de produção narrativa audiovisual contemporânea teve como efeito imediato o aparecimento de estudos narrativos mais complexos, associando pensadores de histórias clássicas como Campbell a pesquisadores contemporâneos de narrativas multimídia como Henry Jenkins (2008)[11].
No Brasil, há, com efeito, estudos mais poéticos e estéticos, como Serialidade e tessitura da intriga (SEGUNDO, 2010), e estudos mais técnicos em relação à transmediação, como Comunicação, consumo e entretenimento (MASTROCOLA, 2011). Há também trabalhos sob aspectos específicos, como A cultura da convergência e os fãs de Star Wars (SILVEIRA, 2010), um estudo do comportamento dos fãs organizados em um coletivo (o “Conselho Jedi”) como fator determinante da cultura da convergência. Ou ainda estudos voltados para os jogos eletrônicos da franquia para múltiplos usuários – MMORPG, como A Galáxia de Lucas (ANDRADE, 2007).
Alguns estudos, no entanto, apresentam um equilíbrio entre os aspectos simbólico-narrativo e técnico-midiático. Este é o caso de A saga Star Wars como produto midiático: o consumo como experiência (MASSUTO, 2019) analisa como a construção de um mito midiático se tornou objeto de consumo de experiências memoráveis e como esse produto simbólico se transformou em uma marca Disney.
Outro estudo importante nesse sentido é Uma Análise do Storyworld de Star Wars (VIEIRA, 2017) que faz uma análise comparativa entre as estruturas do primeiro filme (Uma nova esperança, 1977) e o terceiro da segunda trilogia (O Despertar da Força, 2015), o primeiro dentro do cânone Disney.
Esses estudos apontam para uma grande diferença entre a narrativa original da saga e sua industrialização pelos novos detentores da franquia, atestando tanto o descontentamento do público e dos fãs com o novo conteúdo como também o aperfeiçoamento das estratégias em torno da coerência do universo narrativo.
4.      Conclusão
Ao longo deste breve artigo, descreveu-se sumariamente o universo narrativo Star Wars, não apenas em seus filmes principais, mas também nas narrativas veiculadas em outras mídias. Também destacou-se aqui as principais críticas e equívocos em torno da análise da saga, ressaltando o avanço provocado por suas histórias não apenas no desenvolvimento intertextual do gênero de ficção científica audiovisual, mas, sobretudo, no campo dos estudos narrativos, aliando análises mitológicas a descrições de estratégias transmídia.

Referências Bibliográficas
ANDRADE, Luiz Adolfo de Paiva. A Galáxia de Lucas - Sociabilidade e Narrativa nos Jogos eletrônicos. Mestrado em Comunicação, Universidade Federal Fluminense, Niterói: 01/05/2007 123 f. Disponível em: <https://www.academia.edu/7307460/A_Gal%C3%A1xia_de_Lucas_Sociabilidade_e_Narrativa_nos_Jogos_Eletr%C3%B4nicos> último acesso em 27/02/2019.
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo, Editora Cultrix/Pensamento, 1995.
_________ O Poder do Mito. Editora Palas Athena, São Paulo, 1990.
JENKINS, Henry, Cultura da Convergência, trad. de Susana Alexandria, 1ª edição. São Paulo: Editora Aleph, 2008.
JUNIOR, Claudio Ferraraz. Star Wars: um estudo sobre o universo da franquia cinematográfica. Mestrado em Imagem e Som, Universidade Federal de São Carlos, 01/12/2012 106 f. Disponível em: <https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/5607> último acesso em 27/02/2019.
GOMES, Marcelo Bolshaw. Universos sci-fi audiovisuais: estudos narrativos transmídia II. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2016a, v.1. p.102. Disponível em: <https://www.academia.edu/29845416/universos_Sci-fi> último acesso em 27/02/2019.
MASSUTO, Homero Odisseus. A saga Star Wars como produto midiático: o consumo como experiência. Mestrado em Comunicação, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo: 30/08/2017 93 f. Disponível em: <https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2017/11/HOMEROODISSEUSMASSUTO.pdf> último acesso em 27/02/2019.
MASTROCOLA, Vicente Martin. Comunicação, consumo e entretenimento: o interator na ficção seriada Star Wars. Mestrado em Comunicação e práticas de consumo, Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo: 01/03/2011 100 f. Disponível em: <http://tede2.espm.br/bitstream/tede/99/1/VicenteMartinMastrocola.pdf> último acesso em 27/02/2019.
SEGUNDO, João de Deus Barreto. Serialidade e tessitura da intriga: as atualizações poéticas em Star Wars (1977, 1980, 1983, 1999, 2002, 2005). Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporânea, Universidade Federal da Bahia, Salvador: 01/07/2010 144 f. Disponível em: <http://poscom.tempsite.ws/wp-content/uploads/2011/05/Jo%C3%A3o-Barreto.pdf> último acesso em 27/02/2019.
SILVEIRA, Stefanie Carlan da. A cultura da convergência e os fãs de Star Wars: um estudo sobre o conselho Jedi. Mestrado em Comunicação e informação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 01/03/2010 205 f. Disponível em: <https://lume.ufrgs.br/handle/10183/25129 > último acesso em 27/02/2019.
VIEIRA, Antônio Henrique Garcia. Uma Análise do Storyworld de Star Wars: A New Hope e Star Wars The Force Awakens. Mestrado em Imagem e Som, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos 05/03/2017 125 f. Disponível em: <https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9588 > último acesso em 27/02/2019.


[1] Professor de Comunicação da UFRN. marcelobolshaw@gmail.com
[2] Todas narrativas associadas aos filmes anteriores foram descanonizadas pela Disney e lançadas como ‘lendas’, ou narrativas alternativas, para não entrar em contradição com as versões recentes
[3] Embora os filmes A Caravana da Coragem (1984) e Ewoks - A Batalha de Endor (1985), também criados por George Lucas, não sejam considerados oficialmente como parte da franquia Star Wars, pode-se dizer que ele faz parte de mesmo universo narrativo – que inclui ainda várias narrativas criadas por fãs.
[5] Shadows of the Empire (1996) foi um projeto multimídia ambientado entre The Empire Strikes Back e Return of the Jedi, que incluiu um romance de Steve Perry, uma série de quadrinhos, um videogame e action figures. The Force Unleashed (2008–2010) foi um projeto similar entre Revenge of the Sith e A New Hope, que incluiu um romance, um videogame de 2008 e sua sequência de 2010, uma graphic novel, um suplemento de RPG e brinquedos.
[6] Existem cinco séries de animação Star Wars: Droids (as aventuras dos robôs D2-R2 e C-3PO nos anos 80), Guerras Clónicas (2003-2005), A Guerra dos Clones (2008-2014), Rebels (2014-2018) e Resistance (2018). Apenas as duas últimas são canônicas para Disney.
[7] Star Wars: Escape from the Death Star (1977 e 1990); Monopoly e Trivial Pursuit and Battleship (1997 e nos anos seguintes); The Clone Wars Edition (2005); Original Trilogy Edition (2006); e RPGs: West End Games (1980 e 1990), Wizards of the Coast (2000) e Fantasy Flight Games (2010). Há ainda várias séries de ‘cards’ colecionáveis.
[10] A Marvel publicou os quadrinhos de Star Wars de 1977 a 1986. Nos anos 90, a editora Dark Horse Comics publicou as séries Dark Empire (1991-1995), Tales of the Jedi (1993-1998), X-wing Rogue Squadron (1995-1998), Star Wars: Republic (1998-2006), Star Wars Tales (1999–2005), Star Wars: Empire (2002–2006) e Star Wars: Knights of the Old Republic (2006–2010). Após a aquisição da Lucasfilm pela Disney, em 2015, a licença de quadrinhos da franquia voltou para a Marvel.
[11] Várias universidades internacionais desenvolvem estudos nesse sentido: https://www.thoughtco.com/top-universities-for-star-wars-fans-788268

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Coloniza-me!


O PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO e O ENCANTAMENTO OCIDENTAL
Para Bruno Latour (2009), a modernidade é um duplo artifício de simulação entre a Natureza e a Sociedade, de forma que, através de uma série de falsas oposições, elas sejam diferenciadas. A este dispositivo, Latour denomina "o duplo artifício do laboratório (ou a força epistemológica do empírico e do experimental) e do Leviatã (ou a força hermenêutica do pensamento por modelos e da intersubjetividade)". No laboratório há uma natureza transcendente, parcialmente construída, mas que nos ultrapassa em sua totalidade, e uma sociedade imanente, sempre presente em todos os nossos atos triviais; no âmbito do pensamento social, ou na metáfora do Leviatã, há, inversamente, uma natureza imanente aos homens e uma sociedade que é mais do que a soma de seus elementos.
Mas, ao separar as relações políticas das científicas – mas sempre apoiando a razão sobre a força e a força sobre a razão chega-se a uma natureza selvagem e inútil (sem sociedade) e uma sociedade artificial e morta (sem natureza).
A modernidade é uma dupla representação em que a natureza explica o que é verdadeiro e a sociedade, o falso; em que o poder científico representa apenas as coisas (o mundo objetivado) e o poder político representa somente os homens. Aprendemos, na escola, que enquanto a verdade científica é objetiva e natural; e que a verdade política é essencialmente social, subjetiva e relativa. E nos sentimentos superiores aos povos arcaicos porque separamos a natureza da sociedade.
Com base na crítica radical ao etnocentrismo proposta por Latour, Viveiro de Castro (1996; 2002) enunciou a noção de ‘perspectivismo ameríndio’ – uma contribuição brasileira à antropologia – a inversão filosófica da ótica selvagem sobre o pensamento científico. E desde então o ‘perspectivismo’ se tornou um exercício paradigmático obrigatório e o mundo moderno passou a ser visto com olhos pré-coloniais. Surgiram pensadores selvagens como Airton Krenakc e mesmo os antropólogos críticos ao perspectivismo de Viveiros, como Turner (2009), reconhecem o mérito epistemológico de seu modelo interpretativo.
Mas, o que o saber ocidental tem de interessante para um selvagem? Em que a racionalidade universalista dos gregos que forma o pensamento científico 'encanta' os povos de saber selvagem enraizados em suas realidades específica?
A beleza, por exemplo, é definida pelo número PHI (1,618), pela proporção matemática universal que existe na natureza. A beleza, assim, tem um lado cultural, relativo ao lugar e ao tempo em que se situa, mas, sobretudo, reside nessa proporção universal. A própria matemática, e depois dela, a física, são expressões sofisticadas dessa cultura que deseja assimilar todas as outras dentro de si. A lei da gravidade é válida para ambos os gêneros, para todas as etnias, para todos os credos.
Os selvagens também acreditam que seus saberes são universais e absolutos. Mas, eles não são. Eles não são aplicáveis fora do contexto em que foram concebidos.
Para Rousseau, democracia não é para os homens, pois somos violentos, passionais e mentirosos. A democracia é um governo para os deuses. A verdadeira relação da democracia com os jogos olímpicos não é que essa forma de governo se assemelhe a um jogo cuja regra os jogadores devem respeitar, mas sim o fato que em ambos exigem de seus participantes a superação de seus limites em um constante aperfeiçoamento, porque em ambos os homens aspiram a se tornar deuses. E essa é a grande originalidade da cultura grega, herança dos povos ocidentais: o desejo de se libertar dos deuses através da tecnologia e da astúcia. O herói Odisseu é aquele que afirma a liberdade humana diante do Olimpo. Em todas as outras culturas tradicionais e religiões, a liberdade é vista como negativa.
Eles acreditam em um deus morto” – disse rindo um dos selvagens, quando finalmente entendeu o que o padre lhes dizia. “Pior: eles acreditam que foram eles que O mataram” – disse o outro entre gargalhadas.
A anedota perspectivista, além da crítica ao cristianismo, mostra o espanto dos ameríndios com a liberdade subjetiva dos colonizadores. Liberdade e culpa, expressa em um comportamento obsessivo, repressivo e subversivo ao mesmo tempo do próprio corpo e de sua animalidade. 
Também é preciso dizer que não existe apenas um perspectivismo, mas vários. Caso a anedota fosse entre nativos da cultura maia e asteca, conhecidas pela auto flagelação espiritual e pelo sacrifícios masoquistas, o Deus morto teria um significado desconcertante e especial. E o que perguntariam as tribos tupis de cultura guerreira, como os Potiguaras ou os Tupinambás? “Com que arma os homens ocidentais mataram Deus? Certamente com sua ciência e a tecnologia dela derivada” – concluiriam os nativos. 
Latour sustenta que, ao contrário do que afirma Nietzsche, Deus não morreu na modernidade. Ele não está mais presente nem na natureza e nem na sociedade, mas “continua vivo nos corações aflitos”. A dissociação entre corpo e alma teve como resíduo colateral uma tristeza de superioridade. E foi essa 'composição estranha' entre loucura e violência, entre tecnologia e estupidez, esse encantamento ocidental de uma única universalidade absoluta, que seduziu os ameríndios a imitar os corpos europeus. Aceitar não apenas a colonização das almas, mas, sobretudo, a ‘disciplinarização’ dos corpos, das rotinas da industrialização da vida moderna.
Referência:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jamais_Fomos_Modernos?