terça-feira, 6 de dezembro de 2022

dupla consciência

 

IDENTIDADE CULTURAL E DUPLA CONSCIÊNCIA

Marcelo Bolshaw Gomes1


Introdução

A noção de 'dupla consciência' surgiu em um contexto de luta contra o racismo no livro The souls of black folk, de 1903 (DU BOIS, 1970) e até hoje é importante para definir a situação ambígua das pessoas negras nas Américas. Mas, a contribuição é universal e também pode ser aplicada a outras condições de dissociação vida biológica e vida cultural.

Interessa-nos, principalmente, as abordagens que colocam a questão da dupla consciência do ponto de vista da colonização latino-americana, como um conflito psicológico entre o eu-colonizador e o eu-colonizado (GONÇAVES, 2014; 2016).


  1. A dupla consciência negra

Du Bois foi o primeiro doutor em ciências sociais negro, ativista dos direitos civis, militante socialista, sociólogo pan-africanista, autor e editor de vários livros e fundador de uma das mais importantes organizações negras da história americana, a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP)2.

Para ele, a dupla consciência de ser negro e de ser americano é resultante de uma dialética entre a conquista da igualdade e a integração da população negra como cidadã, ponto de vista representado por Martin Luther King; e a ênfase na resgate e na construção de uma identidade cultural própria, defendida por Malcolm X. Luther King enfatizava os direitos civis e a cidadania americana para todos os afrodescendentes, materializada no direito ao acesso de banheiros, escolas, transportes e espaços públicos em pé de igualdade com os americanos brancos. Já Malcolm X defendia a criação de uma comunidade negra americana e a reafricanização simbólica dos negros americanos como identidade cultural.

E a noção de dupla consciência abrange as duas demandas: o direito à igualdade individual e o direito à identidade coletiva própria. O “mundo dos brancos” convive com o “universo negro” como sendo dimensões culturais de uma mesma realidade social.

Hoje, a noção de dupla consciência é aplicada em estudos sobre o Facebbok (OLIVEIRA, 2014), observando a relação entre o 'mundo off-line' e o 'virtual'. Há dupla consciência em Platão (os mundos sensível e intelígivel, o lado de fora e de dentro da caverna), em Aristoteles (a física e a metafísica) e até em Marx (consciência de classe em si na infraestrutura e consciência de classe para si na superestrutura). Há sempre uma consciência-percepção do mundo objetivo e uma consciência simbólica de suas interpretações.

Porém, o trabalho que ajudou a popularizar a noção de dupla consciência duboisiana e a consoliá-la no contexto da desigualdade social da colonização foi O Atlantico Negro – modernidade e dupla consciência (2001) de Paul Gilroy. O livro é uma viagem marítima pelo mundo das populações negras do Atlântico e a formação de uma cultura global mestiça de várias etnias africanas e americanas nativas. A dupla consciência, nesse caso, se refere a formação e a convivência entre culturas tradicionais dominadas e a modernidade ocidental dominadora.


  1. O conceito de identidade cultural

A identidade é o ‘invólucro da consciência’, uma mediação entre a percepção de si mesmo e da relação de si com os outros. Ela funciona como uma máscara, construída através de escolhas recorrentes e preferências automatizadas. Quanto maior a identidade, menor a consciência e a liberdade de decidir ‘sim’ ou ‘não’ no momento presente, sem escolhas antecipadas ancoradas em crenças e/ou na experiência passada. A ideia de Identidade Cultural, seguindo esta lógica, é uma representação de pertencimento a um grupo diante de outros, em que a dupla consciência opera excluindo e incluindo elementos simbólicos. A identidade cultural é a forma externa; a dupla consciência, o conteúdo analógico, o sentido intersubjetivo.

Toda identidade é uma dupla operação de inclusão (de produção de um reflexo singular do mundo universal) e de exclusão (de reprodução de diferenças). Há identidades mais inclusivas em sua forma de ser e outras que se fortalecem naquilo que elas não são. Mas, toda identidade tem, em maior ou menor grau, essa dupla operação simbólica de abertura e fechamento. “A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa a ser devorado ...” (BAUMAN, 2005, p. 83-84).

Há um grande número de teóricos que definem ‘Identidade’. Existem duas concepções distintas do conceito: a identidade social e a auto identidade. A primeira se refere às características atribuídas a um indivíduo pelos outros, em vários níveis (a nacionalidade, a classe social, a profissão). A identidade aqui é compreendida como um sistema de representação das relações entre indivíduos e grupos, que envolve a partilha de bens simbólicos (a língua, a religião, as artes, o trabalho, os esportes, as festas) e a exclusão de outras características.

A identidade social é o social refletido em cada indivíduo ou o conjunto de coerções e restrições modeladoras da subjetividade. Este conceito é utilizado pela sociologia durkheiniana e pelo estruturalismo. Já a auto identidade (ou identidade pessoal) é uma imagem que atribuímos a nós mesmos e à nossa relação individual com a sociedade e com meio ambiente. E esse diálogo do mundo interior com o exterior molda o sujeito que se forma a partir de suas escolhas no decorrer da vida. A sociologia compreensiva weberiana e seus diferentes seguidores (Schult, Goffman, Giddens, entre outros) é a principal adepta dessa definição.

A ‘identidade cultural’ é resultante de uma dialética entre a identidade social imposta e a auto identidade criativa, entre as estruturas objetivas e a imaginação. Há também um consenso de que as identidades eram mais espaciais e fixas; porém, com a globalização, as regiões passaram a interagir mais e as identidades parcialmente se desterritorializaram. Bauman (2005, 30) afirma que a questão da identidade só se coloca a partir do aumento do intercâmbio cultural e do declínio da identidade geográfica. O auto reconhecimento só faz sentido frente ao diferenciado. Até os anos 70, o imperialismo cultural e a destruição das identidades locais foram amplamente denunciadas por autores marxistas simpáticos a noção de cultura popular. Bourdieu (2007) afirma que os meios de comunicação, principalmente a TV, está promovendo uma padronização cultural em massa, num ato expresso de violência simbólica. Nos anos 80 e 90, Stuart Hall (2002) contesta essa tese de que a globalização promova a padronização cultural em massa, ressaltando que os indivíduos não são consumidores passivos e que é preciso considerar os usos e apropriações que eles fazem dos bens culturais. E a proatividade dos consumidores teria como consequência um mundo de culturas heterogêneas e híbridas (CANCLINI, 2000).

Assim, a globalização não é uma mera homogeneização das representações culturais e identitárias locais. O que está em curso é um redimensionamento, ou fragmentação dessas identidades, até então tidas como fechadas e homogêneas. Uma cultura será mais ou menos homogênea em função da proatividade de seus adeptos. Uma cultura de pessoas passivas será facilmente uniformizada pela globalização cultural, enquanto uma cultura de pessoas participativas preserva suas tradições. Porém, na prática, todas as culturas são ‘glocais’, isto é híbridas em diferentes graus de combinação (GOMES, 2018).


  1. A dupla consciência latino-americana

Gonçalves (2014, 2016) estuda a dupla consciência latino-americana resultante do “tensionamento estrutural entre colonialidade do poder e mestiçagem crítica”. Colonialidade do poder (QUIJANO, 2005) é “a matriz do pensamento e das práticas sociais próprias ao mundo do colonizador: o racialismo, controle do trabalho, dominação de gênero, colonização da natureza e pensamento eurocêntrico”. E a matriz do colonizado é, para Gonçalves, “a mestiçagem crítica”.

A partir da estrutura cindida entre as duas matrizes de pensamento – colonizador e colonizado – a formação latino-americana estabelece uma dupla consciência histórica. Desde o início da colonização – momento de convulsão extrema que deu origem à modernidade – já está presente a oposição entre, de um lado, a colonialidade do poder – matriz de pensamento do colonizador – e, de outro, a mestiçagem crítica, matriz de pensamento que caracteriza os processos de resistência dos povos colonizados. Essa duplicidade, o tensionamento e o conflito entre essas duas matrizes, é a estrutura dinâmica que caracteriza a formação das populações do continente em sua reprodução social e em sua intersubjetividade. Está presente nas relações, nos afetos e no pensamento da população do continente.

Existem, na teoria, dois extremos.

Há lugares que fomos completamente colonizados, em que não temos nenhuma caraterística cultural que nos defina e diferencie dos outros. Mas, há um preço: o complexo de viralata, ver o mundo e a si próprio através dos olhos do outro-colonizador, varrendo para o inconsciente seu 'eu colonizado' e sua submissão servil ao exterior. Esse ponto de vista, equivale ao “etnocentrismo epistemológico”, em que a ciência ocidental se sobrepõem aos saberes de outras culturas, que a modernidade global se sobrepõe às tradições locais.

Como também há lugares em que, ao contrário, o 'eu colonizador' é que é escondido (e demonizado), e o 'eu colonizado' é exaltado, através do nacionalismo e do regionalismo. Na maioria desses casos, a defesa radical da identidade territorial colide com valores universais de idosos, mulheres e crianças. A identidade cultural fechada gerou o fenômeno do populismo3 e da manipulação das identidades populares. E hoje gera o fenômeno das 'bolhas ideológicas' das redes sociais. Esse é o “relativismo identitário”, celebrado pelo slogan “Cada um no seu quadrado”.

Na prática, há uma luta entre a identidade imposta e a auto definida, com resultados em diferentes graus, arranjos (de inclusão e exclusão de elementos simbólicos) entre o imposto e o exposto, entre o social e o pessoal, entre o arbitrário e o subversivo.

Mas, há também um terceiro termo produzido pela dupla consciência: “a mestiçagem crítica”, a resistência criativa à aculturação colonizadora.


  1. Dupla consciência à brasileira

Em O povo brasileiro, Darcy Ribeiro (1996) afirma que identidade brasileira é singular em relação a de outros povos colonizados; tanto em relação aos povos testemunhais (andinos e mexicanos), que guardam os traços distintivos de antigas civilizações Inca e Asteca; como também em relação aos povos em que as características culturais dos colonizadores passaram a ser dominantes, como os canadenses. Nos povos em que a identidade étnica nativa é forte (como na Bolívia, por exemplo), há uma rejeição popular da cultura colonizadora. Já nas culturas em que a identidade nativa é fraca, todos se consideram descendentes dos colonizadores.

No primeiro caso, há uma rejeição da cultura colonizadora e uma adesão à identidade local; no segundo, há não apenas uma aceitação, mas, sobretudo, uma identificação cultural da população nativa com a cultura colonizadora racista, misógena e violenta.

A cultura brasileira, nessa concepção, nem rejeita (fechando-se em uma cultura de resistência popular) nem se identifica (reproduzindo os valores externos) com o colonizador. Há uma identidade cultural ‘não definida’, permitindo que o povo brasileiro se reinvente com dois resultados: o bricoleur das elites e a ninguendade das massas. Por um lado, as elites 'devoram antropofagicamente' o colonizador. Mas, por outro, há também uma massa amorfa de bastardos sem rosto, em um estado permanente de apatia indiferenciada: uma multidão de anônimos sem rostos formada por pardos, morenos, mulatos, cafusos e mais cinquenta e tantos tons de cinza.

O preço da criatividade rebelde das elites é pago com a descaracterização cultural das massas, com o apagamento da identidade local e a uniformização do consumo. A essa qualidade de assimilação e reinvenção cultural, Darcy Ribeiro dá o nome de ‘ninguendade’ – a identidade da não-identidade, a cultura do zé ninguém, aquele que não se reconhece na imagem do outro, nem também ousa elaborar uma imagem própria.

A cultura brasileira é um projeto aberto ao que está por vir e não uma referência simbólica do passado sobre à atualidade. ‘Um povo sem memória, mas com grande esperança’. Assim, miscigenação não nos torna iguais nem nos faz um mix de qualidade culturais e defeitos étnicos. Ela é uma apenas identidade vazia ou quase: “o país do futuro” e um eterno “gigante adormecido em berço esplêndido”.

Em uma perspectiva histórica mais ampla, existem também vários autores que sugerem que a modernização cultural brasileira não foi autêntica, mas “para inglês ver” como se diz popularmente. Por detrás de uma identidade de fachada moderna, continuamos ‘índios’ afetuosos e idiotas: “cordiais” (BUARQUE DE HOLANDA, 1987); culturalmente corruptos, que não distinguem entre a esfera pública e a vida privada de sua família (FAORO, 1979); ou ainda pessoas sem igualdade individual, que dão um ‘jeitinho’ para se colocar acima de todas as regras (DAMATTA, 1997). Para esses autores, o colono português no Brasil foi mais promiscuo, sentimental, já era mestiço de várias etnias, católico por conveniência, preguiçoso, socialmente irresponsável e outras tantas características responsáveis por nossa desgraça cultural: a inautenticidade moderna.

O sociólogo Jesse Souza (2000) é o principal crítico desta forma de pensar, a que chama “sociologia da inautenticidade”. Ela está enraizada no senso comum e é polinizada através da própria cultura brasileira, de forma ideológica, para perpetuar sutilmente nossa submissão e inferioridade em relação à modernidade ocidental, o nosso tão propalado “complexo de vira-lata”, de identidade com os colonizadores sem se perceber colonizado.

Em sua crítica à sociologia da inautenticidade, Souza se aproxima de Gilberto Freire e Darcy Ribeiro. Enquanto Freyre coloca a miscigenação étnica como fator central da cultura brasileira; Ribeiro sugere a dupla consciência como produto histórico desta miscigenação. Souza se aproxima desses autores por eles não priorizarem o papel da herança ibérica maldita e entenderem a miscigenação como um fator positivo da singularidade brasileira, mas deles se distancia em função de seu foco fechado sobre a questão escravista e da desigualdade social como questão central.

A crítica de Souza contra a inautenticidade de nossa modernidade ajuda a entender o Brasil a partir de suas particularidades, como resultado de um processo histórico singular e seletivo de desenvolvimento encoberto e naturalizado por nós mesmos no senso comum. Por outro lado, não há um diálogo com a mestiçagem crítica e com seus autores. O próprio Souza carece não assimila (como poderia) os autores que critica, subentendendo um ponto de vista identitário-marxista.


  1. Tradição e modernidade

A dupla consciência colonial expressa um conflito entre modernidade e culturas tradicionais. Para quem é colonizado, a identidade moderna exclui o que é pessoal, antigo, tradicional; e deseja incluir tudo que for novo, urbano, tecnológico, sempre de modo uniformizado e universal. Ser moderno mais do que ser progressista e laico, significa ter uma visão objetiva de si como produto da sociedade industrial; é acreditar que a natureza e o corpo são máquinas biológicas; é viver em um universo mecânico formado por coisas e objetos, é acreditar que vive em um bola de pedra que gira em torno de uma bola de fogo.

As identidades culturais modernas são domesticações simbólicas das antigas identidades tradicionais, colonizações cívicas das mitologias locais. A identidade nacional, ancorada no estado territorial, é expressão principal deste auto reconhecimento de modernidade. Geralmente, as identidades nacionais modernas são permeáveis a elementos simbólicos distantes e rejeita os elementos culturais próximos de seus vizinhos.

Ser moderno é viver voltado para o futuro, enquanto as tradições são identidades voltadas para o passado. A identidade moderna implica no risco de escrever a própria história, na dúvida sistemática, no ‘universal-cosmopolita’ dos grandes centros urbanos, a identidade indefinida das massas culturalmente industrializadas.

Para Giddens (2003), a tradição é uma reflexibilidade entre o passado e o presente, em que a memória formata o acontecimento que confirma a lembrança passada. A modernidade é uma reflexibilidade entre o presente e o futuro simulado, levando ao desencanto simbólico das relações sociais e à indução ao risco (e à aventura – acrescento). A dupla consciência é percepção das duas reflexibilidades, do futuro moderno e do passado tradicional.

Giddens não acredita na secularização absoluta das tradições e sim que a modernidade convive com o poder simbólico de modo diferente. Ao contrário, o que agora chamamos de tradição é algo inventado a pouco tempo pela própria modernidade. A reflexividade moderna funciona em conjunto com bolsões da reflexividade tradicional.

No Brasil, nos anos 20, surgiram dois projetos de identidade moderna: a antropofágica e a nacional-popular. A modernidade do ponto de vista cultural, o movimento modernismo, primeira forma de expressão da classe média urbana republicana, pode ser subdividido em dois comportamentos distintos em relação à produção de bens simbólicos: o antropofágico e o nacional-popular.

O antropofágico, formalizado por Oswald de Andrade, ou a vertente da vanguarda estética brasileira de produzir uma cultura de exportação a várias outras manifestações culturais (Hélio Oiticica, a Bossa Nova, a poesia concreta, o cinema novo, o tropicalismo) mais preocupadas em se sincronizar ao cenário cultural internacional do que produzir uma identidade nacional-popular. Em oposição a esta vertente oswaldiana da modernidade brasileira, coloca-se o projeto iniciado por Mario de Andrade e pelos artistas inspirados pelas temáticas regionais e sociais (Graciliano Ramos, Jorge Amado, entre tantos). Entretanto, tanto os dois projetos de produção simbólica das classes médias urbanas (o antropofágico mais voltado para as elites e o nacional-popular mais voltado para os trabalhadores) acabaram absorvidos pela industrialização cultural das massas, ou melhor, através da segmentação em públicos alvos específicos (o cult, o diet, o pop, o popular) a partir da contracultura.

Thompson (1998) também considera equivocada tanto a tese de que a cultura moderna e a ciência superaram definitivamente as tradições como a ideia de que a modernidade e a ciência são apenas tradições contemporâneas que não se reconhecem enquanto tal. Há um terceiro ponto de vista, em que o saber tradicional se modificou com a comunicação mediada, mas que ainda sobrevive na vida moderna através de várias formas simbólicas.

Para demonstrar seu ponto de vista, Thompson faz uma distinção operacional em quatro aspectos indissociáveis da tradição: hermenêutico, normativo do cotidiano, legitimador do poder e identificador cultural.

  • No aspecto normativo, a tradição é um sistema de normas que orienta a Ação Social segundo o passado. De forma que as rotinas reproduzem a memória e a memória produz as rotinas cotidianas.

  • No aspecto legitimador, a tradição é também ideologia que autoriza o exercício do poder. Thompson, nesse ponto, segue Weber, que crê no declínio da legitimidade tradicional e o predomínio da legitimidade legal (através de leis e regras) e da nova legitimidade carismática (através da personalidade e do magnetismo pessoal) gerada pela mídia.

  • No aspecto hermenêutico, a tradição é uma estrutura de interpretação. Assim, pode-se dizer que a ciência é uma tradição de interpretar os acontecimentos como fatos objetivos.

  • E no aspecto de identificador, a tradição é ainda um fator de auto formação cultural de identidade coletiva e individual, do ‘Self’ de um determinado grupo ou população. E a identidade de pertencimento territorial, profissional e/ou religioso.

Segundo Thompson, a modernidade global acabou com os aspectos Normativo e Legitimador das tradições, mas os aspectos Hermenêutico e Identificador Cultural permanecem vivos ideologicamente na cultura moderna (THOMPSON: 1998, 165).

O simbólico tradicional não normatiza mais o cotidiano nem legitima autoridades impostas pela força, mas continua vivo como sistema de interpretação (a mídia) e formação cultural (a escola). Thompson dá destaque, principalmente, à mudança do aspecto identificador e ao fato de que a nova experiência do Eu (Self) em um mundo mediado apontar para uma nova ancoragem das tradições: a cidadania global. A comunicação mediada globalizada torna o processo de auto formação dos indivíduos muito mais aberto e reflexivo que na relação face a face. Por outro lado, ela troca da experiência vivida pela experiência mediada, gerando uma situação antes inexistente, um ambiente artificial de agentes e públicos não-presenciais. A dupla consciência está agora se 'glocalizando': se tornando planetária (consciência de espécie em relação ao meio ambiente) e comunitária (consciência de grupo superando o comportamento de rebanho).


6. Dupla consciência pós-moderna

Einstein elaborou as teorias da relatividade, postulando a ‘posição relativa do observador em relação a uma referência comum’ do ponto de vista epistemológico. O tempo contínuo tal qual percebemos, por exemplo, só é percebido como tal dentro da órbita da terra. Se o observador estiver na lua, perceberá que o tempo cronológico é resultante do movimento de rotação da terra. Para Einstein o tempo só é contínuo na velocidade da luz, tudo abaixo da velocidade da luz é simultâneo e relativo à posição do observador dentro do universo. A luz não é só uma velocidade constante, é também uma medida de tempo espaço (tal planeta está a tantos anos-luz daqui). 

Maturana (2001) adaptou essa noção (de observador relativo) para ciências biológicas, afirmando que há ‘objetividades entre parêntesis’ (indicando a consciência de que existem outros pontos de vista) e a ‘objetividade sem parêntesis’ (que não percebe os outros, apresenta sua percepção como universal e absoluta). 

Deleuze & Guattarri (1995-97) adotaram a simultaneidade e a relatividade da física teórica, negando a história como o desenvolvimento dos acontecimentos e a universalidade do projeto científico do ocidente. Para ele, toda totalidade é totalitária, porque espelha um único ponto de vista, mil platôs não formam uma montanha e o mundo é um conjunto de partes sem o todo. No esteio dessa crítica radical ao etnocentrismo científico ocidental, várias formas de pensar relativistas surgiram, não apenas saberes tradicionais midiatizados, mas também os que reivindicam um olhar científico de gênero e de etnia e não da identidade imposta.  

Outros autores contemporâneos, como Edgar Morin (2001) e Pierre Levy (1999), compreendem o legado de Einstein de modo não relativista. Levy recorre ao termo ‘Universal sem totalidade’ para definir a essência da cibercultura. Morin diz que universo não forma uma totalidade (uma unicidade objetiva), mas sim uma complexidade (um conjunto sempre incompleto de realidades relativas). Cada um tem sua cultura, mas a natureza é universal. A cultura global é formada por fragmentos que espelham dentro de si uma totalidade inexistente no exterior. 

Temos, assim: o 'eu-colonizador', representanta a ciência etnocentrica/cultura moderna; o 'eu-colonizado', correspondendo ao identitarismo relativista em suas diversas formas; e o diálogo/dialética formador da mestiçagem crítica e do pensamento complexo. 

Se negamos nosso eu-colonizado, nos tornamos uma caricatura dos verdadeiros colonizadores (daí a inaltenticidade moderna); se negarmos nosso eu-colonizador, nos tornamos uma caricatura fanatizada dos verdadeiros colonizados, construindo identidades artificiais para esconder as relações de poder. O comportamento adequado em relação a dupla consciência desses eus (ou dessas condições) é a mestiçagem crítica. Esse terceiro termo, nasce do conflito entre os dois primeiros, da transformação do choque das identidades pela dupla consciência. 

A ciência, nesse terceira posição, não é nem objetiva como quer o etnocentrismo nem subjetiva como pensa identitarismo relativista, e sim baseada na observação intersubjetiva aberta, no consenso circunstancial das interpretações. Essa nova ciência não se preocupa em validar ou refutar saberes tradicionais ou identitários, mas sim em explicar como e porque esses saberes funcionam. A questão é ter uma cosmovisão mais abrangente e interdisciplinar possível ao invés de tentar forçar o universo a se enquadrar as nossas teorias, sejam coloniais ou não. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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WEBER, M. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1970.



1 Jornalista, sociólogo e professor titular em Estudos da Mídia (UFRN).


2 Apesar de sua sociologia engajada e de seu ativismo, Du Bois, no entanto, não nunca foi comunista nem marxista. Era admirador (e admirado por Max Weber) e é possível que a categoria de 'dupla consciência' seja derivada da distinção entre juízos de fato e de valor e que sua conduta como sociológo e militante seja inspirada pelo livro Ciência e Política, duas vocações (WEBER, 1970).

3 'Populismo' não apenas no sentido histórico (dos governos Vargas e Peron), mas também no sentido do conceito no varejo: um 'discurso demagogo de esquerda, sustentado em uma atitude carismática'.

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