sábado, 21 de novembro de 2020

memoria e narrativa

Um memorial é uma forma de agradecimento às coisas e pessoas que não queremos esquecer, que não queremos que sejam esquecidas pelos que vierem depois de nós: um monumento à assimilação mimética. Comemora a descoberta surpreendente de que estudo a imitação através da imitação; de que sou a soma criativa de várias assimilações miméticas, e que, um dia, certamente também serei assimilado.

Nietsche disse que a felicidade estava no esquecimento. Mas, escrever as próprias memórias é também se esquecer delas e ser feliz. Tirá-las da cabeça e coloca-las no papel para todos. Porém, talvez, essa seja a causa da infelicidade!

Temos memórias inatas (filogenéticas, hereditárias) e memórias adquiridas (ontogenéticas). Somos os animais com a menor memória filogenética de espécie e com a maior memória social do planeta. Perdemos a capacidade de transmitir experiência através do DNA, mas, em compensação, desenvolvemos a habilidade, aparentemente única, de transmissão de experiência em memórias sociais externas para o aprendizado cultural. Os neurocientistas reconhecem três tipos de memória adquirida: a memória operacional ou de curto prazo (semelhante ao microprocessador de um computador), responsável por gerenciar as atividades cognitivas imediatas; a memória de longo prazo (que pode ser comparado a um HD, o disco rígido em que se armazenam programas e arquivos); e a memória externa ou social (análoga à internet para as máquinas).

Lembremos também que as memórias artificiais estão atualmente diminuindo a necessidade da memória biológica de curto-prazo e permitindo a expansão de nossas memórias de longo prazo; e que o presente memorial foi escrito em um período de transição entre dois regimes de registro temporal.

A ciência distingue dois tipos de memória de longo prazo: a memória declarativa (ou explícita) e a não-declarativa (ou implícita). A memória declarativa armazena a informação sobre algo que aconteceu, e a memória não-declarativa como isto aconteceu. E usamos partes diferentes do cérebro para realizar as duas ações.

A memória declarativa se subdivide ainda em: episódica (lembranças de eventos específicos) e semântica (lembranças de fatos, pessoas, lugares, objetos). A memória declarativa equivale a uma ‘gramática’ (um sistema operacional), subdividida em uma memória lexical cronológica e uma memória sintática, que combina as lembranças.


Memória ontogenética

Curto Prazo

Imediata e de trabalho/rotinas

Longo Prazo

Declarativa

Episódica

Semântica

Não Declarativa

De procedimento;

Associativa;

Não associativa; e

de representação perceptual.

Coletiva

Representação cultural, meta memória

Memória filogenética

Inata, hereditária

Fonte: elaborado pelo autor

A memória não declarativa ou implícita, por sua vez, também tem diferentes modalidades: a memória de procedimento (que recorda de habilidades, como tocar um instrumento musical ou andar de bicicleta); a memória associativa (adquirida por condicionamento), a memória não associativa (aprendizado involuntário) e a representação perceptual (os sonhos, a imaginação, a emergência de insights, dicas, soluções lógicas, ‘mensagens’).

A memória não declarativa é aquela que apreendida através de Mimese, da imitação criativa, que interpreta o objeto imitado. Na máquina, ela se dá através da simulação e de emuladores, modeladores da linguagem binária. Emulação é a replica virtual, a duplicação reconfigurada do objeto. Na mimese, há uma consciência interpretante, criativa e crítica; que sutilmente compara o objeto copiado ao seu modo, agregando-lhe outras referências. Assemelha-se ao que Vilém Flusser chama de ‘devoração’, à assimilação antropofágica de conteúdo simbólico e sua reinterpretação.

Somos a soma das pessoas que admiramos e que imitamos criativamente em nossa personalidade, meu texto é uma síntese dos textos que mimetizei. Na cultura, no entanto, há apenas reprodução, mesmo que uma reprodução que planeja e reestrutura seus próprios parâmetros de organização. Há homens mecanicamente emuladores, papagaios de outros; mas não há máquinas criadoras de novos padrões ontológicos.

A analogia entre as memórias artificiais e biológicas termina aqui. Não apenas porque a Mimese difere muito da simulação, mas, sobretudo, porque o acesso às meta-memórias culturais difere da troca de dados através da internet. Há, na verdade, uma grande confusão sobre memórias coletivas, pois alguns pensam na memória filogenética da espécie, outros na memória não-declarativa e outros ainda nas memórias sociais. 

Joel Candau (2018) faz a mais completa revisão dos estudos a respeito da memória. Para ele, memória e identidade formam uma contradição dialética indissociável. A memória é uma reelaboração cognitiva permanente do passado e a identidade é elaborada, definida e redefinida na interação social no contexto presente. A memoria é uma narrativa organizada pela identidade e a identidade, uma imagem formada pela memória. Ambas, no entanto, estão a serviço do futuro, de um projeto, do devir. Da contradição entre a memória e a identidade, nasce um destino. 

Candau estabelece três tipos de memória: a) memória de baixo nível ou protomemória (equivalente às memórias filogenéticas e às memórias não-declarativas); 2) memória de alto nível - constituída por lembranças e/ou por reconhecimentos; e 3) a metamemória – uma representação da memória atrelada à identidade e às noções de semelhança ou pertencimento. 

A rigor, para ele, não existiria uma memória coletiva biológica, mas sim a identidade reforçando os sentimentos de procedência, historicidade e pertencimento. Assim, sua análise não aceita expressões e figuras totalizantes supostos conjuntos estáveis, duráveis e homogêneos de  representações como realidades empíricas, embora os aceite como instrumento analítico ou como “configurações narrativas”. 

No polo oposto ao de Candau, existe também a hipótese dos campos morfogênicos elaborada por Rupert Sheldrake de que há memórias atemporais (espíritos, situações, arquétipos) armazenadas em um campo elétrico-magnético embutido na realidade. Nesse caso, a ‘mente mamífera’ (formada pelas memórias não declarativas de representação perceptual) funcionaria telepaticamente como uma internet biológica, uma ‘telenet’.

Não há, no momento de transição desse memorial, como saber sobre o impacto que as memórias artificiais (e a internet) terão sobre as biológicas. Tanto podemos desenvolver um ‘chip cerebral’ criando uma prótese telepática (aumentando nossa distancia da memória filogenética) como, ao contrário, readquirir e ampliar nossa capacidade de lembrança hereditária, diminuindo a necessidade de aprendizado e treinamento: o sonho do esquecimento feliz que Nietzsche desejou. Seja como for, esse memorial deseja descrever a riqueza de seu momento para que não seja esquecido.

Descrever o presente (sempre) para narrar (novamente) o passado e (re) imaginar o futuro.

Agostinho faz uma reflexão sobre o tempo e o ser. O tempo já foi (não existe mais) e será (ainda vai existir). Apenas no presente ele é no momento fugaz de sua captura pela consciência. Por outro lado, o tempo contínuo ‘só existe’ em sua representação na linguagem, através de relógios, tabelas lunares, calendários ou marcações arquitetônicas. Embora só exista no presente, o tempo precisa ser representado para ser medido.

Aliás, o primeiro memorial que se tenha notícia é o livro Confissões, de Santo Agostinho. Escrito de forma autobiográfica e teológica, contando sua vida de pecador e sua conversão ao cristianismo, o livro também tinha uma dimensão política, ajudando ao então padre a tornar-se bispo de Hipona. Hoje, o memorial (descritivo) é um documento em que se relata a história acadêmica e profissional, exigido em concursos públicos. Para Agostinho, há a lembrança das coisas dos homens, referente à consciência individual; e a lembrança das coisas de Deus, a memória do Inconsciente coletivo. Os dois lados da caverna de Platão, os hemisférios cerebrais.

Escrever por aforismos é estabelecer uma arqueologia da própria memória em módulos, um inventário de arquivos que nos caracterizam. E essa é nossa proposta aqui: descrever memórias através de aforismos sobre contextos de formação. A ideia foi organizar uma arqueologia de memórias históricas de forma fragmentada. Embora os aforismos pareçam desconexos, não guardando relação causal de continuidade entre si, na verdade, eles formam um mosaico de meu percurso biográfico e intelectual.

Escrever através de aforismos (ou pensar 'por marteladas' como disse Nietzsche) nos torna assistemáticos, deixando várias lacunas e pontas soltas. Os aforismos tornam-se densos, desconexos e sua sequência, aparentemente fragmentada; mas com um fio condutor que se torna visível durante a leitura: a produção dos transgressores pelas regras e a assimilação dos contrários – pelo sistema como negação da negação. Mais do que um sentimento de perda (do que nunca me pertenceu), essa constatação é libertadora, trazendo a leveza alegre da vida sem a responsabilidade de resolver os problemas do mundo. 

Dedico esses trabalhos a todos de quem assimilei conhecimentos (vocês vivem em mim) e aos futuros leitores que entenderem e assimilarem de alguma forma a experiência de vida oferecida por este memorial. E, por tudo isso, só me resta agradecer a oportunidade de reconhecer a liberdade deste exercício.

Fragmentos de um tempo presente - memorial acadêmico

Autobiografia teórica de um intelectual autista - memórias completas


Referências bibliográficas

BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. RJ: Jorge Zahar, 2005.

CANDAU, Jöel. Memória e Identidade. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2018.

domingo, 1 de novembro de 2020

O SEQUESTRO DA FALA

MÉTODO TRÍPLICE DE ANÁLISE DOS SÍMBOLOS DA MÍDIA 

A mídia, na modernidade, sequestrou o 'lugar da fala' da autoridade pública e religiosa. Nas culturas pré-modernas, a informação era distribuída unicamente a partir dos estados e das igrejas. Ao se estabelecerem instituições de mediação com autonomia relativa, o 'monopólio da fala' foi terceirizado. Assim, a mídia é, ao mesmo tempo, um campo aberto para o diálogo direto entre os atores políticos e o público; e também mais um ator político com interesses próprios em um contexto social mais amplo. Ela é simultaneamente um campo para os agentes políticos e um agente social invisível que seleciona, hierarquiza e dá visibilidade aos acontecimentos. 

Thompson prescreve uma metodologia hermenêutica não como uma alternativa aos outros métodos de análise já existentes, mas sim como um referencial metodológico geral, dentro do qual alguns desses métodos e técnicas específicas podem ser correlacionadas entre si. 

Por entender que os processos de compreensão e de interpretação devem ser vistos não como uma dimensão metodológica que exclua radicalmente uma análise subjetiva, mas antes como uma dimensão que está no início e no final do conhecimento ao mesmo tempo, Thompson: a) parte da compreensão imediata que se tem de uma determinada forma simbólica na vida cotidiana, b) analisa objetivamente esta interpretação preliminar (consorciando vários métodos), e c) reinterpreta o significado da forma simbólica. A esta metodologia geral de interpretação dos discursos dos meios de comunicação, chama-se “enfoque tríplice” (THOMPSON, 1995: 355).


Emissor

Mensagem

Receptor

OBJETO

Análise sócio-histórica da produção e transmissão

Análise Formal ou Discursiva

Análise sócio-histórica da apropriação

METODOS

Situações espaço-temporais

Campos de interação

Instituições Sociais

Estrutura Social

Meios técnicos de transmissão

Análise semiótica

Análise de conversação

Análise sintática

Análise narrativa

Análise argumentativa

Interpretação das Mensagens

Mapa das diferentes interpretações

Re-interpretação da interpretação

RESULTADO

Síntese Hermenêutica


Inicialmente (1995, 366), o objetivo da análise sócio histórica é reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação e difusão das formas simbólicas. As maneiras como essas condições influenciam podem variar de acordo com a situação e o objeto pesquisado. Thompson propõe alguns níveis de análise: as situações de tempo/espaço em que as formas simbólicas são produzidas; os campos de interação (face a face, interação mediada); as instituições sociais; a estrutura social (as classes sociais, as relações entre gêneros e outros fatores sociais permanentes) e os meios técnicos de transmissão de mensagens (a fixação material e a reprodução técnica dos sinais). Em um segundo momento (1995: 369), toma-se a forma simbólica como um texto, isto é, uma estrutura narrativa relativamente autônoma de sua produção e de seu consumo. Neste sentido, a análise simbólica implica em uma abstração metodológica das condições sócio históricas de produção e recepção das formas simbólicas. Thompson adota vários métodos de análise discursiva: semiótica, sintática, narrativa, argumentativa, etc.

Finalmente (1995: 375), na última fase de sua hermenêutica, Thompson leva em conta a interpretação criativa do significado das formas simbólicas em diferentes contextos de recepção, inclusive no próprio contexto do analista/enunciador da interpretação. A análise dos diferentes contextos de recepção demonstra que por mais rigorosos que sejam os métodos e técnicas, eles não podem abolir a liberdade de interpretação dos públicos e das situações em que se encontram inseridos.

Aliás, temos, dentro da proposta do enfoque tríplice, uma síntese entre três tipos de estudos distintos da área de comunicação: a) A sociologia dos meios de comunicação (os estudos centrados no contexto de transmissão – seja na versão crítica que denuncia a indústria cultural ou na funcionalista que enaltece a comunicação de massa); b) a semiótica (e os vários tipos de estudos em torno da linguagem verbal e visual, retórica, filosofia analítica, analise discursiva e a própria hermenêutica); c) e, finalmente, os diferentes tipos de estudos de recepção (pesquisas de opinião quantitativas e qualitativas, pesquisas de agendamento e de análise bibliográfica especializada).

Thompson considera que em estudos midiáticos, ao contrário da hermenêutica literária tradicional, a “autonomia semântica das mensagens” é secundária diante dos contextos históricos de transmissão e recepção. E com essa ênfase sociológica nos contextos históricos dos interlocutores, Thompson não está apenas ampliando o alcance teórico da hermenêutica para além do discursivo, mas também adaptando a teoria da interpretação para o âmbito da sociologia da comunicação.


LINGUAGEM

EMISSOR

Práticas Sociais

RECEPTOR

Produção de Sentido


Atualmente, chama-se de 'Práticas Sociais' aos estudos envolvendo a relação entre a estrutura e a mensagem; e de 'Produção de Sentido' para os que enfatizam a relação entre linguagem e recepção.



Bibliografia

THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna – teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.


Teoria da Comunicação

 


O MAPA DAS IDÉIAS SOBRE A MÍDIA

Em um primeiro momento, abordaram-se aqui as definições de cultura elaboradas a partir da ênfase nos contextos sócio históricos do emissor (o positivismo, o funcionalismo, o marxismo). Depois, apresentaram-se as definições de cultura que ressaltam a linguagem (o estruturalismo, a semiótica). E, finalmente, chegamos as definições elaboradas a partir dos contextos sócio históricos da recepção (a midiologia e a sociologia da mídia).


EUA

EUROPA

FUNCIONALISMO

(Parsons, Lasswell, Moles e Merton)

ESCOLA DE FRANKFURT

(Benjamim, Adorno, Habermas)

2 Guerra Mundial (1945)

CIBERNÉTICA

(Nobert Wiener) McLuhan

SEMIÓTICA E ESTRUTURALISMO

Contracultura (1968)

MIDIOLOGIA (Debret, Barbero, Flusser) X

SOCIOLOGIA DA COMUNICAÇÃO (Castell, Morin, Thompson)


Na Europa, Houve um longo caminho teórico do estruturalismo até à Pós-modernidade: Lévi-Strauss (a estrutura como grande síntese); Lacan (o inconsciente linguístico); Bourdieu (teoria dos campos); Foucault (análise discursiva e genealogia do poder); Baudrilard (sedução e simulacro) e outras Semióticas (Peirce, Barthes, Eco, Greimas, Bystrina) das quais não falamos.

Elegemos Habermas e a noção de democracia deliberativa como sendo a contribuição mais importante deste percurso. Democracia deliberativa é a democracia representativa ampliada através dos meios de comunicação1.

A noção de democracia deliberativa é baseada na sociedade se estruturar em um tripé entre: a ação instrumental (o campo econômico, a objetividade e a esfera privada); a ação estratégica (o campo político, os sujeitos históricos e a esfera pública); e a ação comunicativa (o campo cultural, a intersubjetividade e a sociedade civil).

Nos EUA, também houve um longo percurso de desenvolvimento teórico: a Teoria hipodérmica é a primeira tentativa de explicar o comportamento condicionado pela mídia e acreditava na manipulação completa das massas através dos meios de comunicação. Em seguida, veio a Teoria da Persuasão, abordagem psicológico experimental baseada na retórica de Aristóteles: Harold Lasswell e a análise de conteúdo (quem diz o quê por meio de qual meio a quem com que efeito?) Surge, então, a abordagem funcionalista. Robert Merton, Abraham Moles, Paul Lazarsfeld. A questão de fundo já não são os efeitos mas as funções exercidas pela comunicação de massa na sociedade. Estudo da comunicação a partir do problema do equilíbrio e do conflito sociais. A cibernética, o sistema tende a entropia e não a homeostase; a disfunção é compreendida como ruído. Os feedbacks promovem auto organização contra a incerteza.

A cibernética e McLuhan (a midiologia) são aperfeiçoamentos da sociologia funcionalista. Como também são as novas abordagens (Agenda-setting, Gatekeeper, Newsmaking, Espiral do silêncio) sobre os receptores, os processos produtivos nas comunicações ou sobre os fatores internos e externos à organização do trabalho comunicativo.

Elegemos Marshall McLuhan e o conceito de mediação como os mais importantes deste segundo percurso.

E mediação não é o mesmo que midiatização2. Mediação com ‘e’ é um agenciamento que transforma conflitos em diálogos simbólicos. Já ‘midiatização’ (com ‘i’) significa um regime em que as relações entre diferentes agentes são mediadas (com ‘e’) pelos meios de comunicação. Diz-se que algo foi ‘midiatizado’ quando sua existência virtual se torna mais importante do que sua materialidade.

Da mesma forma que uma sociedade não formula problemas que não seja capaz de responder, também podemos dizer que as diferentes definições da noção de cultura refletem diferentes tempos e etapas de nossa vida social recente. Vivemos em um tempo midiático. Nada mais normal que nossa definição de cultura ser baseada nas ideias de mediação e de midiatização da sociedade.

Mas, o que exatamente significa ‘mídia’? E quais as mudanças ela coloca na prática de contar estórias? Pode-se entender o conceito de mídia em três sentidos diferentes: o sociológico (a mídia é o conjunto dos meios de comunicação); o midiológico (a mídia é o suporte de uma mediação, por exemplo: o relógio de pulso (mídia) é uma mediação entre o batimento cardíaco e o tempo social); e a teoria das três mídias de Pross (1997).

No primeira definição, a mídia é uma instituição de poder simbólico, ao lado de outras instituições de poder simbólico (como a igreja, a escola); em uma sociedade formada ainda por instituições de poder econômico (fábricas, empresas), de poder político (governos, parlamentos, tribunais) e de poder coercitivo (polícia, exército). A centralidade da mídia sobre as outras instituições, deste ponto de vista, se dá pela sua capacidade de circulação e distribuição de imagens e informações de forma simultânea para um grande número de pessoas.

O conceito de mídia como suporte de mediação foi criado por McLuhan (1964) e seguido de diferentes modos por Kerckhove (1997), Debret (1993), Martin-Barbero (1997), Levy (1993), entre outros. Este grupo tende a ver o mundo como um conjunto de mediações simultâneas. A escrita é uma tecnologia de reforço e ampliação do tempo histórico (da memória social e do pensamento científico objetivo) em um universo de eventos simultâneos. Para eles, a TV (e a internet) apenas nos torna conscientes da simultaneidade temporal do universo – da qual estávamos parcialmente esquecidos.

E há também a teoria das três mídias de Harry Pross (1997) - adotada por Bystrina (1995), Flusser (2007, 2008), Baittello Jr. (2010), entre outros - uma sofisticada interpretação culturalista dos processos de comunicação atual. A teoria que combina aspectos das definições anteriores e ainda insere o corpo como suporte comunicativo, propondo um modelo ternário semelhante ao das ‘tecnologias da inteligência’ de Levy. Por "mídia primária" entende-se toda comunicação presencial, em que os interlocutores partilham de um mesmo contexto, sediada no corpo, principalmente na fala (PROSS, 1997). Levy (1993) chama-a de modo de interação um-um. Neste contexto, a comunicação é sempre oral e a recepção é a memória do corpo, a imitação de gestos, sons, palavras. E o consumo é coletivo e se confunde a produção econômica de bens materiais e simbólicos. Na mídia primária, o consumo e a recepção são presenciais e espontâneos, ancorados no corpo como suporte em um contexto único de interlocução. O que é produzido comunitariamente; é consumido pelo grupo.

"Mídia secundária" aqui é entendida como a comunicação em que os contextos de transmissão e de recepção se dissociaram. Segundo Pross, é formada por suportes extra corporais em que a mensagem fica fixa no tempo e no espaço. A mídia primária do ponto de vista social e cognitivo é um fator determinante para o aparecimento da história, da memória social, do pensamento científico objetivo. Para Levy, é o modo de interação um-muitos, em que um emite e os outros recebem passivamente.

Neste cenário, a recepção é formada por representações mentais foneticamente codificadas da realidade - a memória social objetiva, descontextualizada e mimetizada através de representações mentais codificadas. Com a escrita, surge a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, entre a produção de bens materiais e a produção de bens simbólicos. E o consumo passa a ser dissociado da produção. A equivalência econômica do modo de interação um-muitos é o modelo industrial em que alguns poucos produzem e muitos consomem. O consumo deixa assim de ser grupal e se individualiza: o leitor como receptor da escrita é análogo ao consumidor individual.

Assim, na mídia secundária, surge à recepção do signo, a representação mental descontextualizada e codificada em marcas fonetizadas; e com ela: a práxis histórica, a memória social e a percepção objetiva do tempo.

Em contrapartida, o consumo torna-se pouco a pouco individual e se divorcia da produção social. E a própria produção material aparentemente se dissocia da produção de bens simbólicos. A sociedade se industrializa economicamente e se desencanta culturalmente. A reprodução social (os esquemas subjetivos) modifica as condições objetivas de produção social.

A mídia secundária não anula a primária, mas se sobrepõe a ela. Assim, a recepção e o consumo primários continuam ativos nos contextos dos processos secundários de industrialização cultural. Mas, também é importante observar que gradativamente, no decorrer dos últimos séculos, a comunicação secundária tornou-se dominante culturalmente.

E mídia terciária ou elétrica, segundo Pross, implica na existência de suportes tecnológicos nos dois polos da comunicação. Há dois momentos aqui: a televisão, quando a mídia terciária funciona ainda de forma unilateral; e as redes sociais interativas, que funcionam em um modelo descentralizado, que Pierre Levy entende como o modo de interação muitos-muitos.

Com o advento da mídia terciária, a recepção tornou-se uma experiência do corpo recontextualizada por imagens e sons mediados por tecnologia. Com a televisão, a própria cultura se industrializa: irrompe a recepção fragmentada das narrativas seriadas e o comportamento de consumo de massa. Consumo, além de padronizado e uniforme, posto em universo cultural de repetição mecânica, de acumulação e gasto em intervalos regulares e constantes. As rotinas de consumo são retroalimentadas pelas narrativas seriadas que as representam.

No entanto, é preciso observar que ela também representa um aperfeiçoamento progressivo do termo e de suas definições anteriores. Para compreendermos que há uma mediação externa e uma mediação interna às relações sociais foi necessário entender as definições antropológica e sociológica de Cultura.

Também podemos dizer que para explicarmos a mediação interna da cultura foi necessário estudar as definições voltadas para a crítica do papel dissimulador da cultura (freudiana, marxista e estruturalista); enquanto para definir a mediação externa da cultura com o meio ambiente foi preciso revisar as definições que enfatizam a consciência coletiva, a identidade social, a memória e a ciência (positivistas, funcionalista e cibernéticas).

A cultura como dupla mediação social combina do conceito de Meio de McLuhan com a noção de democracia deliberativa de Habermas. Ação comunicativa é o cimento e o combustível das relações sociais (ambientais e culturais).

LEIA MAIS EM: A cultura como dupla mediação social


NOTAS

1 Habermas foi associado a Gramsci pelo eurocomunismo, fundamentando uma estratégia de chegar ao poder pela via eleitoral (e através da organização política da sociedade civil ampliando a esfera pública).

2 Há extensas discussões sobre os termos ‘mídia’ e ‘média’ como traduções do conceito de ‘Meio’ do inglês e do latim. A ideia de que a sociedade é um conjunto de mediações e que existem três meios fundamentais (a fala, a escrita e o vídeo) é o que faz de McLuhan um pioneiro e que caracteriza a midiologia como movimento teórico, incluindo não apenas Martin Jesus Barbero e Regis Debret, mas pensadores como Flusser e Pross.