quarta-feira, 27 de outubro de 2010

De Profundis

 
Com muita magia e um inebriante clima onírico, De Profundis narra a saga de um pescador cujo barco afunda no oceano, matando toda a tripulação. Menos o nosso herói, que é salvo por uma sereia e passa a explorar o universo submarino ao lado dela. Durante a jornada, o roteiro do galego Miguelanxo Prado (também diretor do filme) leva o espectador a um verdadeiro sonho submarino, repleto de metáforas, viagens surreais e interpretações em aberto que certamente renderão ótimas discussões pós-filme. Para pequenos e grandes.

Sem nenhum diálogo, recheado de poesia, e com uma trilha sonora que ajuda a embalar a fantasia proposta pelo roteiro, De Profundis também passa longe da parafernália tecnológica das produções atuais: sua realização demandou dez mil desenhos pintados a mão, e posteriormente animados através de técnicas tradicionais.

Indicado ao Prêmio Goya (o Oscar Espanhol) de Melhor Animação, De Profundis propõe um viagem poética e diferenciada para corações de todas as idades. E prova que nem só de Disney e Pixar vivem os grandes desenhos animados em longa-metragem
.
 De Profundis será exibido dia 03 de novembro, às 19 horas, no auditório C do CCHLA, na UFRN, dentro do Projeto ANIMA.
FICHA TÉCNICA
Diretor: Miguelanxo Prado
Elenco: - Animação -
Produção: Pancho Casal
Roteiro: Miguelanxo Prado
Trilha Sonora: Nani García
Duração: 80 min.
Ano: 2007
País: Portugal/ Espanha
Gênero: Animação
Cor: Colorido
Distribuidora: Europa Filmes
Estúdio: Continental Producciones / Desembarco Produccións / Zeppelin Filmes
Classificação: Livre.
 

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

o mago de Northampton

Alan Moore e Lost Girls
Marcelo Bolshaw Gomes1
Resumo: O presente artigo resume o conjunto trabalho do roteirista Alan Moore e pretende caracterizar o discurso erótico feminino, através da análise interpretativa da história em quadrinhos Lost Girls (2007).
O mago de Northampton
Que me desculpem Neil Gaiman e Frank Miller; mas o melhor roteirista de histórias em quadrinhos de todos os tempos – tanto em quantidade como em qualidade e diversidade – é mesmo Alan Moore, o bruxo de Northampton. Na verdade, ele é o grande responsável pela reinvenção do gênero, que passou a se chamar Grafic Novels. A partir de Moore, a importância de quem escreve as histórias passou a ser maior do que a de quem faz os desenhos.
Profissionalmente, não é um exagero dizer que Moore inventou sua própria história, trabalhando nas duas grandes editoras - DC Comics e Marvel Comics - e brigando com ambas por um sistema mais justo de reconhecimento e de remuneração de direitos autorais. Moore escreveu estórias sofisticadas tanto para heróis tradicionais e criados por outros autores (Batman2, Superman3, Monstro do Pântano4, entre outros5) como também criando narrativas completamente novas com seus próprios personagens.
Aliás, como também criando suas próprias estórias com personagens de outras narrativas, oriundos da literatura, como é o caso da Liga de Cavaleiros Extraordinários. No final do século XIX a rainha Vitória nomeia, para combater um perigoso inimigo, um gênio do crime que deseja conquistar o planeta uma legião de grandes nomes da época: Allan Quatermain (As Minas do Rei Salomão, de H. Rider Haggard), Mina Harker (Drácula, de Brain Stoker), Henry Jekyll e Edward Hyde (Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson), Rodney Skinner (O Homem Invisível, de H.G. Wells), Capitão Nemo (20.000 Léguas Submarinas, de Julio Verne), Dorian Gray (O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde), Tom Sawyer (As Aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain) e professor James Moriarty (The Final Problem, de Arthur Conan Doyle).
Mas, a adaptação da estória para o cinema (direção: Stephen Norrington e roteiro: James Robinson) foi um fracasso de crítica e de público. Motivo: os detalhes de época, as citações de outras narrativas, a disposição gráfico-visual da narrativa como um todo se perderam no tempo contínuo e linear da sétima arte. O próprio Moore detesta, declaradamente, a idéia de adaptarem suas obras para o cinema e nunca se envolveu nenhuma das produções.
O mesmo aconteceu com a adaptação de From Hell (Do Inferno, 2005a) para o cinema pelos Irmãos Hughes, em 2001, com participações de Johnny Depp, Heather Graham e Ian Holm. From Hell é um romance gráfico escrito por Alan Moore e ilustrado por Eddie Campbell que especula sobre a identidade e as motivações de Jack o Estripador.
Apesar de ser confessadamente um trabalho ficcional, Moore faz uma rigorosa investigação sobre todas as fontes do caso, não só para garantir plausibilidade e verossimilhança da narrativa, mas como uma forma de pesquisa e revisão das interpretações anteriores. From Hell apresenta mais de 40 páginas de informações e referências, indicando quais partes são baseadas na imaginação de Moore e quais são tiradas de fontes específicas. As opiniões de Moore sobre as informações referenciais também são listadas. Além disso, a verdadeira aula sobre a história e a arquitetura de Londres – bem como sobre a época e os costumes em que o Estripador fez suas vítimas. A obra é densa, cheia de camadas e imensamente detalhada; a edição em coletânea tem aproximadamente 570 páginas - que foram severamente amputadas pela versão cinematográfica. E, mesmo assim, o filme ficou monótono e complexo, sendo elogiado pela crítica, ignorado pelo público e detestado por Moore.
Em 2005, foi a vez de Constantine. Constantine é uma adaptação do personagem das histórias em quadrinhos John Constantine6, protagonista da revista Hellblazer, para o cinema, dirigido por Francis Lawrence. Embora possa ser considerado um sucesso de bilheteria, é muito criticado pelos fãs dos quadrinhos pela falta de fidelidade ao original. No filme, John Constantine (Keanu Reeves) é um ocultista e exorcista, que ajuda Angela Dodson (Rachel Weisz), uma policial cética, a investigar o misterioso suicídio de sua irmã gêmea, Isabel. O filme é inspirado numa história antiga de Hellblazer, Hábitos perigosos, em que Constantine descobre que têm câncer de pulmão e já em estado terminal. O mago então tenta bolar um plano para escapar da morte, lidando com demônios legais e anjos malvados.
E para desespero de Moore (e dos que compreende a especialidade das narrativas gráfico-visuais), também houve adaptações para cinema de dois dos principais trabalhos: V de Vingança (2006a)7 e Watchmen (2005)8.
V de Vingança (versão em português para V for Vendetta) é uma série desenhada por David Lloyd em preto e branco em 1983 e relançada em cores em 1988. A história, que se passa em um distópico futuro de 1997 no Reino Unido, conta a história de Ivi, salva da morte por um vigilante mascarado, conhecido apenas por ‘V’. À medida que Ivi descobre a verdade sobre o misterioso V, ela descobre também algumas verdades sobre si própria e assim emerge uma inesperada aliada no plano para trazer liberdade e justiça a uma sociedade marcada pela crueldade e corrupção.
Lançada em 1985, Watchmen tornou-se um extraordinário sucesso e é considerado um marco na evolução dos quadrinhos, introduzindo temas e linguagens antes utilizadas apenas por quadrinhos alternativos. O sucesso crítico e de público que a série teve ajudou a popularizar o formato conhecido como Graphic Novel, até então pouco explorado pelo mercado.
Na trama de Watchmen, situada nos EUA de 1985, existem superheróis mascarados reais. O país estaria em vias de declarar uma guerra nuclear contra a União Soviética. A estória envolve os episódios vividos por um grupo de super-heróis no passado e no presente e o misterioso assassinato de um deles. Watchmen retrata os super-heróis como indivíduos verossímeis, que enfrentam problemas éticos e psicológicos, lutando contra neuroses e defeitos. E com vários problemas de relacionamento entre eles. Pode-se dizer que Moore entrou assim na 3ª geração de grupos de heróis: primeiro na Liga da Justiça, ele dá profundidade psicológica e narrativas sofisticadas aos superheróis tradicionais; com a Liga dos Cavaleiros Extraordinária, amplia ainda mais a façanha, elegendo sua própria legião de heróis literários; com Watchmen, no entanto, Moore desconstrue a própria noção de superherói e de grupo de superheróis.
Nos últimos anos, Moore está trabalhando em várias séries, retomando alguns projetos inacabados (A Liga de Cavalheiros Extraordinários II e III e Supremo9) bem como começando outros (As Aventuras de Tom Strong10 e Promethea11).
Mas certamente o projeto mais incomum deste novo período de Moore é a série Lost Girls(2007), ilustrada por sua esposa, Melinda Gebbie. O lançamento nos EUA foi alvo dos críticos mais radicais e moralistas por causa do conteúdo sexual da história envolvendo personagens de livros infantis e até mesmo alguns lojistas recusaram-se a revendê-la com medo de represálias contra as cenas fortes envolvendo pedofilia, fetichismo e sexo grupal.
Erotismo Feminino
A série conta o inusitado encontro de três conhecidas personagens femininasWendy, de Peter Pan; Alice, de Alice no País das Maravilhas; e Dorothy, de O Mágico de Oz - todas adultas, mas com idades diferentes, em hotel austríaco no início da 1ª Guerra Mundial. Lá, elas confessam entre si as suas preferências e vivências sexuais.
No primeiro volume da série, Meninas Crescidas, as protagonistas se conhecem no hotel: Lady Alice Fairchild, aristocrata inglesa, escritora, rica, lésbica e viciada em ópio; srta. Dorothy Gale, jovem norte-americana, criada em uma fazenda no interior do Kansas; e a sra Wendy Potter, dona de casa, acompanhada de seu marido, um enfadonho engenheiro naval. Após vários jogos de sedução, as protagonistas contam, para se excitar mutuamente, como foram suas primeiras experiências sexuais.
Nos outros dois volumes da série, as narrativas sobre o passado das protagonistas continuam e se alternam. Após ser molestada por um amigo de seu pai (o coelho), Alice vai para um orfanato feminino, onde forma um harém (O Jardim de Flores Vivas) e é escolhida para adoção pela Sra Redman (a rainha de copas), que a vicia em ópio e a prostitui de diferentes modos. Alice, cansada da rotina de orgias e drogas, rebela-se e é internada em uma clínica psiquiátrica.
Dorothy conta suas aventuras rurais com os empregados da fazenda do Kansas: o espantalho, com a qual aprende a usar os homens (capítulo XIV); o leão covarde (capítulo XVIII), a quem ensina a ter confiança com as mulheres; e o homem de lata (capítulo XXIV), que a acorrenta e a faz masturbar um jumento enquanto faz sexo anal. Dorothy confessa ainda que transava com o próprio pai biológico, tendo sido expulsa da fazenda pela madrasta.
Wendy narra sua experiência sexual (e dos seus dois irmãos) com Peter, um garoto de rua; os ciúmes e a conquista da incestuosa irmã, Annabel; o medo e o fascínio exercido pelo capitão gancho, um odioso voyeur que prostituía e estuprava as crianças pobres do parque. As lembranças confessadas das três formam narrativas paralelas que desempenham então o mesmo papel das estórias eróticas do livro branco: excitá-las (e excitar-nos também) em suas orgias, cada vez mais obscenas e transgressoras.
No discurso erótico feminino, tudo é simétrico e regular (cada volume tem dez capítulos e cada capítulo tem oito páginas). A regularidade formal, no entanto, apenas enquadra o transbordamento erótico, um crescimento gradativo da obscenidade, em que novos elementos pervertidos e depravados são inseridos progressivamente, sem pressa, obedecendo a um ritmo lento e fatal, a uma cadência calma e inevitável. Como no Bolero de Ravel, ou na Sagração da Primavera de Stravinsky, explicitamente homenageada no capítulo X.
Certa vez uma amiga, também escritora e professora da arte de escrever, me disse: “a escritura masculina é semelhante ao seu desempenho sexual: um eterno introduzir com finais abruptos”. E ainda atribuía essa idéia (de que o corpo dos homens mimetiza o paradigma de máquina do motor a explosão) ao pensador Jean Baudrilard. “Veja este texto: há uma introdução histórica, uma sociológica, outra psicológica e depois vem logo a conclusão”.
Em contraponto, pode-se dizer que a escritura feminina é menos linear, ela não se baseia na lógica do ‘acumula, acumula e gasta’, mas no fluxo interrupto e progressivo do consumo. Em outras palavras: não enfatiza nem começo nem fim da narrativa, é um discurso circular ou elíptico que se inicia onde encerra sua enunciação.
O discurso erótico feminino, além de circular, é também reflexivo, tem prazer em se observar.
Em Lost Girls, a narrativa como começa e termina com o espelho de Alice. Aliás, a moldura do espelho enquadra os Capítulos I e XXX, sugerindo que toda narrativa é contada indiretamente pelos reflexos do Espelho. E há diversas menções a essa dupla representação em vários momentos da narrativa. Na sexta página do primeiro capítulo, por exemplo, quando Monsieur Rougeur comenta a qualidade da literatura erótica atribuída à Lady Fairchild, sob o codinome de Hippolyte.
- “De fato, como perito em tal literatura, posso dizer que nas suas nobres mãos, a ficção o próprio espelho da realidade ... onde memoráveis personagens idealizadas refletem nossas verdadeiras personalidades.”
Humm, estou lisonjeada, Monsieur Rougeur” – responde Alice – “embora não aprove sua concepção de ficção. Eu prefiro a concepção de Platão ... o ideal é a questão; o mundo além do espelho da ficção, esse é o mundo real ... e somos apenas a mais tênue das reflexões que empalidece sob o vidro.”
O Espelho está presente também no final, no capítulo XXX (O espelho: reprise & crescendo ou quem sonhou isso?), quando as três protagonistas finalmente vão fugir do hotel antes da chegada dos soldados alemães e Alice decide deixar o seu espelho. Compara-se o espelho à imaginação, que aprisiona e liberta, que será destruída pela violência dos homens.
Minha querida, coisas bonitas e originais podem ser destruídas. A beleza e a imaginação, não. Elas florescem até em tempos de guerra. Quanto ao meu espelho ... Eu outrora pensava que parte de mim estava presa nele, mas agora nós a resgatamos. Hoje ele é apenas uma estimada antiguidade. Deixe-me dizer adeus. Depois vamos embora.” (e beija o espelho)
De fato, os soldados alemães invadem o hotel e destroem o espelho de Alice e a narrativa (a imaginação) continua por mais três páginas completas sem o enquadramento da moldura, dando a entender que os autores preferiram não terminar a estória com ato de violência, mas sim com sua crítica dentro do enredo principal. A violência destrói apenas a representação duplicada.
Também há tripla representação ou dupla representação interna à narrativa através da presença de um livro branco de contos eróticos escrito anonimamente por Monsieur Rougeur (e assinado por diferentes autores, cujo estilo pretende imitar) do qual há um exemplar em cada quarto – semelhante à Bíblia.
Aliás, essa é uma das características clássicas do discurso erótico, a presença de breves estórias eróticas no interior da narrativa principal com o objetivo de excitar seus personagens, e, consequentemente, excitar os leitores finais em uma dupla pedagogia sexual. Nas histórias em quadrinhos, cuja linguagem permite o desenvolvimento de duas ou mais narrativas em paralelo ao mesmo tempo, esse recurso é particularmente possível. E Moore o explora bastante. No Capítulo III, Sombras Ausentes, enquanto Sra. Wendy Potter lê um conto – Vênus e Tannahauser – em que os personagens se masturbam com velas, gerando desejos inconfessáveis e fantasias visíveis através das sombras. Ou ainda, no Capítulo XXII, em que Monsieur Rougeur lê um conto erótico em que uma família completa (pai, mãe, filho e filha) faz sexo entre si, embalando uma verdadeira orgia entre os hospedes devassos do hotel. Ele, inclusive, enfatiza de que o livro trata de incestos imaginários, cuja função é apenas os de excitar seus leitores.
Além do livro branco, que aparece em vários capítulos, outro recurso erótico narrativo é o do contraponto entre texto e imagem, entre a voz que seduz e a imaginação seduzida. No Capítulo IV, enquanto Alice seduz Dorothy e a inicia no ópio, Wendy e o marido escutam o acontecido no quarto vizinho. E no capítulo seguinte, descobrimos o que aconteceu na imaginação de Wendy no outro quarto. Outra característica bem feminina de Lost Girls é o estilo Art Nouveau da ilustradora, uma “tolice caprichosa”, definida pelo Sr Potter na própria narrativa, oposta ao figurativo da perspectiva realista, surge também de forma decorativa, nos detalhes ilustrativos e no acabamento caro.
Tudo é tão decorado que é como viver dentro de uma pintura ou de um conto infantil ilustrado. Um desses contos onde tudo gira em círculos” – protesta novamente Potter (no Cap. 11, p. 08).
Mas, se há características diferenciadas para os discursos masculino e feminino, também há erotismos bem diferentes segundo o gênero. O erotismo masculino (presente nos trabalhos de Quadrinhos de Guido Crepax e Milo Manara, para citar os clássicos) é misógino e sádico. Se ‘poder’ é “a capacidade de impor sua vontade aos outros”. Pode-se dizer que há o poder de coação, em que a vontade é imposta através da força; o poder de persuasão, em que há o convencimento racional (incluindo aí a chantagem e o aliciamento por dinheiro e drogas); e o poder da sedução, em que o desejo domina o outro, submetendo-o.
No erotismo patriarcal, há um forte apelo pela submissão pela força; no erotismo feminino, é a sedução que força os sujeitos desejantes a realizarem a vontade do dominador. Mesmo quando há violência e submissão, elas são alegóricas e teatrais. “Você gosta que eu o obrigue” – sussurra o Capitão Rolf Bauer (amante de Dorothy) para sr. Potter (marido de Wendy), enquanto força gentilmente a penetração anal, no capítulo XIII, em que eles bebem e transam, inspirados por um conto do livro branco sobre o caso de Dorian Gray com Lord Henry Wooton. E, no capítulo XXIII, em que as três protagonistas torturam Monsieur Rougeur para que ele confesse a autoria dos contos do livro branco; tal violência é apenas uma encenação delicada da verdadeira submissão sexual imposta contra vontade. A operação, em que o prazer torturante substitui a dor física, se repete para fazer Dorothy confessar que transava com o pai, no capítulo XXVIII, O homem atrás da cortina.
Assim, é ao poder da sedução feminina que o erotismo de Lost Girls rende sua homenagem. E o que observamos é a excitação através da corrupção da inocência, do sentimento de vergonha, da lenta decomposição das resistências morais. No Capítulo XII, Sacudindo e despertando, Alice não apenas seduz, mas também corrompe moralmente Wendy com suas jóias, fazendo-a viver os sete pecados capitais descritos no livro branco. Alice também prostitui e vicia seus amantes, principalmente através do ópio e do láudano, minando-lhes o amor próprio e a dignidade.
O papel excitante da inocência pode ser visto em vários momentos e níveis do texto: os personagens saírem de fábulas infantis, nos primeiras experiências sexuais contadas pelas protagonistas, na sedução dos parceiros, mas, principalmente de forma perversa com o sr. Potter e com o marido da rainha-madrasta nas memórias de Alice, que são sucessivamente traídos e enganados com grande prazer.
A propósito, reza um enunciado erótico que o homossexualismo sáfico, a relação entre mulheres não-masculinizadas, é uma relação a três, incluindo ainda, além das amantes principais, um ‘voyeur invisível’ – um homem a quem as mulheres querem ferir e/ou excitar. E, afinadas aos protestos femininos a essa polêmica tese, há duas passagens em que a narrativa repreende veementemente o voyeurismo não autorizado.
O primeiro, no capítulo VI, Rainhas Unidas, onde Wendy observa Alice e Dorothy fazendo sexo oral recíproco a céu aberto. E o outro, no capítulo XXVII, quando a própria Wendy vence o próprio medo da violência, engolindo o Capitão Gancho (um voyeur assustador que prostituía as crianças pobres do parque) pela vagina como se fosse um crocodilo, quando esse ia lhe estuprar:
Eu ... eu mostrei minha boceta despida e perguntei se não achava que ela era muito cabeluda e muito velha para ele? Se meios seios não eram demais para alguém que preferia peitinhos achatados e bocetinhas lisinhas? Alguém que tinha pavor de mulheres adultas, e que pensava que seria subjugado e engolido por elas? Eu remexi meus quadris, abrindo minha vagina peluda com meus dedos, urrando para ele. ‘Crianças não sabem que você inadequado. Você pode fingir que ainda é jovem, como elas, e que o relógio não está fazendo tic-tac. É por isso que você fode as crianças e tinge seu cabelo. Você tem medo de mulheres. E medo de envelhecer.’”
O espelho (como fronteira entre o simbólico e o imaginário), o crocodilo castrador, a relação ambígua com o outro-masculino, ora temido e diabolizado, ora humilhado e enganado com prazer – há vários elementos de diálogo de Moore com Lacan. Mas, enquanto para Lacan, “a mulher não existe”, em Lost Girls quem não existe simbolicamente são os homens.
Contudo, além dos esquemas de gênero e dos modelos de transgressão sexual, há, na narrativa de Moore, momentos de erotismo puro e inexplicável, como no capítulo VII, O tornardo, o primeiro orgasmo de Dorothy, durante um ciclone em sua fazenda em Kansas City. Ou ainda no capítulo XX, Zás-trás, em que uma orgia das protagonistas se entrelaça à viagem de ópio, combinando o êxtase poético do texto aos delírios visuais da narrativa.
Lost Girls é um trabalho filosófico, artístico, mas, sobretudo, erótico. E de um erotismo semelhante ao dos filmes de Píer Paolo Pasolini, feminino e crítico ao poder patriarcal. E o que nos permite definir e caracterizar o Discurso Erótico Feminino é a sintaxe circular, as estórias eróticas dentro da estória erótica, a excitação com a inocência e com a ingenuidade, os ornamentos e detalhes visuais, a crítica à violência masculina. O orgasmo no sentido lacaniano de êxtase para além da linguagem surge em vários momentos apoteóticos. REFERENCIAS GRÁFICAS
MOORE, Alan. Watchmen. (Watchmen,1995) Desenho de Dave Gibbons. Tradução de Jotapê Martins. 4 volumes. São Paulo: Via Lettera Editora, 2005.
______ Do inferno (From Hell, 1989/1999). Desenho de Eddie Campbell. Tradução de Jotapê Martins. 4 volumes. 3ª edição. São Paulo: Via Lettera Editora, 2005a.
______ Grandes clássicos DC n. 09 - Alan Moore. (coletânea de estórias, diversos desenhistas). São Paulo: Panini Comics, Outubro de 2006.
______ V de Vingança. Desenhos de David Lloyd. São Paulo: Panini Comics, 2006a.
______ A saga do monstro do Pântano (The saga of the swamp thing, 1984). Desenhos de Steve Bissete e John Totleben, tradução Heitor Pitombo. Rio de Janeiro: Pixel Media, 2007.

______ Lost Girls. Ilustrado por Melinda Gebbie. Três volumes: Meninas Crescidas, A terra do Nunca e O grande e terrível. Tradução Marquito Maia. São Paulo: Top Self Produtions & Devir Livraria, 2007a.

 

NOTAS

1 Jornalista, doutor em Ciências Sociais e professor de Comunicação da UFRN.

2 Batman foi criado por Bob Kane. Moore escreveu duas estórias importantes do homem morcego: Barro mortal, desenho John Byrne, originalmente publicado na Batman Annual 11, julho de 1987 (2006, 232); e a importantíssima A piada mortal, desenho de Brian Bolland, originalmente publicado como Batman: the killing Joke, julho/1998 (2006, 256).

3 Superman foi criado por Jerry Siegel e Joe Shuster. Moore escreveu: Para o homem que tem tudo, desenhos de Dave Gibbons, originalmente publicado na Superman annual 11, janeiro de 1985 (2006, 9); A Linha da Selva, com desenhos de Rick Veitch, originalmente publicado na DC Comics Presents, n. 85 Setembro de 1985 (2006, 128); e O que aconteceu com o homem de aço? desenhos Curt Swan & Murphy Anderson, originalmente publicado na Superman 423 e 583, em setembro de 1986 (2006, 164).

4 Monstro do Pântano foi criado por Len Wein e Berni Wrightson. Moore assumiu a série em 1984, na edição #20 e, em oito números, transformou-a em um retumbante sucesso (MOORE, 2007).

5 Para o personagem do Arqueiro Verde, Moore escreveu uma estória dupla: Olimpíadas Noturnas, desenhos de Klaus Janson, originalmente publicado na Detctive Comics, # 549/550, abril e maio de 1985 (2006, 51). Para o Lanterna Verde, as mais importantes são: Mogo não comparece às reuniões, desenhos de Dave Gibbons, originalmente publicado na Green Lantern #188, maio de 1985 (2006, 66); Tigres, desenhos Kevin O’Neill, originalmente publicado na Tales of the green Lantern corps, Annual 2, dezembro de 1986 (2006, 152); Na noite mais densa, desenhos Billy Willinghan, originalmente publicado na Tales of the green Lantern corps, Annual 3, maio de 1987 (2006, 226). Moore também escreveu várias histórias para o personagem Spawn de Todd McFarlane.

6 John Constantine foi criado por Alan Moore, como um mero figurante da revista Monstro do Pântano, mas se popularizou rapidamente.

7 Em 2006, com Natalie Portman e Hugo Weaving, V for Vendetta foi adaptado para cinema pelos Irmãos Wachowski (roteiristas da trilogia Matrix).

8 E em 2009, dirigida por Zack Snyder, Watchmen foi adaptado.

9 Uma releitura satírica dos 50 anos estórias de Superman, com várias homenagens críticas, citações e analogias aos seus principais desenhistas e roteiristas. Desenhado por Chris Sprouse, Rick Veitch e outros, publicado por Image Comics/Awesome Entertainment, em 2003. A Editora Devir lançou os quatro fascículos (A Era de Ouro, A Era de Prata, A Era de Cobre e A Era Moderna) em português.

10 No mesmo estilo de homenagem satírica de Supreme, Tom Strong conta as aventuras de um science hero, inspirados nas histórias em quadrinhos pulps das décadas de 1920/1930. Incluindo também as séries derivadas da saga principal, há pelo menos dez volumes, desenhados por Chris Sprouse, Steve Moore, Art Adams e outros; e publicados pela DC Comics/Wildstorm/ABC, entre 1999 e 2006. Em português, apenas os dois principais (Um Século de Aventuras e No final dos tempos) foram publicados pela Devir.

11A estudante Sophie Bangs, investigando o mito de Promethea, uma espécie de heroína mística que se manifestou em diversas mulheres, acaba por se tornar a nova encarnação dessa guerreira mitológica. Desenhado por J.H. Williams III e outros, 1999-2005, 5 volumes, pela DC Comics/Wildstorm/ABC. No Brasil, apenas um fascículo foi lançado pela Pixel.

roteiro por quem entende

Como Escrever Histórias em Quadrinhos

Por Alan Moore

A maior dificuldade de escrever sobre qualquer atividade criativa, seja escrever sobre ela mesma até escrever sobre como consertar automóveis é que, na maioria das vezes, os artigos ou entrevistas que surgem parecem ser incapazes de se estenderem além de informações técnicas óbvias e listas de instrumentos recomendados. Não quero recair nessa mesma rotina, dizendo qual máquina de escrever eu uso, ou qual tipo de papel carbono acho ser o melhor, já que esta informação não fará a menor diferença na qualidade do que você escreve. Da mesma maneira, não acho que uma análise precisa do meu processo de trabalho seja muito útil, já que imagino que ele varia drasticamente de história para história, e que todo escritor tende a desenvolver sua própria abordagem em resposta a suas próprias circunstâncias.
Além disso, não quero produzir nada que lembre, nem remotamente, algo como “O Método Alan Moore de Escrever HQ’s”. Ensinar gerações de novos artistas e escritores a copiar a geração que os precedeu foi uma idéia estúpida de uma época onde a Marvel lançou seu livro O Método Marvel de Desenhar HQ’s e seria igualmente irresponsável da minha parte instruir escritores novos ou experientes sobre como escrever títulos idiotas e extravagantes do tipo "O Alvorecer Transformou O Céu num Matadouro" ou algo assim. John Buscema foi um grande artista, mas a indústria não precisa de cinqüenta pessoas desenhando como ele, e menos ainda de outros cinqüenta escrevendo como eu.
Com tudo isso em mente, gostaria de tentar expor algo que acrescente a este extenso capítulo sobre como podemos realmente pensar sobre a arte de escrever quadrinhos, que é melhor do que uma lista de detalhes específicos. Gostaria de falar sobre abordagens e processos mentais que dão suporte a escrita como um todo, ao invés de falar sobre o modo como esses processos são finalmente colocados no papel. Da forma que vejo a situação, o modo como pensamos ser o ato de escrever inevitavelmente moldará os trabalhos que produzimos. Analisando a maior parte da produção corrente das principais companhias de quadrinhos, me parece que um fator que contribui enormemente ao desânimo geral sejam os estagnados processos de pensamento promovidos por elas. Seguramente, em termos das convenções gerais de escrever quadrinhos atualmente, minha tendência é ver as mesmas como mecânicas estruturas de enredo e a mesma abordagem funcional de caracterização sendo usada várias e várias vezes, até o ponto em que as pessoas encontram uma grande dificuldade em imaginar onde poderiam estar maneiras diferentes de fazer as coisas.
Como nossos pressupostos básicos sobre a nossa profissão vêm se tornando cada vez mais obsoletos, achamos que isso se refere mais a um problema de criar trabalhos de alguma relevância para um mundo que se altera rapidamente, no qual a indústria e os leitores que a sustentam realmente sejam considerados. Por relevância, já que toquei no assunto, não falo de histórias sobre relações raciais e poluição, ainda que elas certamente sejam boa parte disso. Falo de histórias que realmente tenham algum tipo de significado em relação ao mundo ao nosso redor, histórias que reflitam a natureza e a textura da vida nestes últimos anos do século vinte. Histórias que sejam úteis de alguma maneira. Reconhecidamente, seria muito fácil para a indústria viver confortavelmente por um tempo se aproveitando das fraquezas de leitores que acompanham os quadrinhos devido a nostalgia ou por simples escapismo, mas a industria que trabalha exclusivamente dessa forma é, no meu entender, impotente e digna apenas de um pouco mais de consideração ou interesse do que a indústria de cartões comemorativos.
O motivo pelo qual escrever para os quadrinhos seja talvez até mesmo mais interessante que desenhá-los é que escrever acaba sendo o estopim de todo o processo. Se o que for pensado antes de escrever for inadequado, o enredo é inadequado. Desse modo, até mesmo sob as mãos dos melhores artistas do mundo, a história finalizada vai lamentar a falta daquilo que nenhuma soma de imagens coloridas e impressão poderia substituir ou compensar. Para mudar os quadrinhos, nós precisamos mudar a maneira de pensar sobre sua criação, e a investigação a seguir deve ser vista apenas como os primeiros e toscos degraus para este fim.
Ao buscar um melhor lugar para começar, talvez seja interessante começar por uma extensa consideração sobre os quadrinhos e suas possibilidades, e daí extrair nosso método. Ao pensar sobre quadrinhos, você tem que ter alguma idéia sobre o que é o assunto que está sendo considerado. É aqui que começa a nossa primeira dificuldade: no esforço de definir os quadrinhos, muitos autores têm arriscado pouco mais do que rascunhar comparações entre uma técnica e outra, mais amplamente aceitáveis como formas de artes. Quadrinhos são descritos em termos de cinema e, com efeito, muito do vocabulário que emprego todo o dia nas descrições das cenas para qualquer artista provém inteiramente do cinema. Falo em termos de close-ups, long-shots, zooms e panorâmicas; é uma útil linguagem convencionada de instruções visuais precisas, mas ela também nos leva a definir os valores quadrinhísticos como sendo virtualmente indistingüíveis dos valores cinematográficos. Enquanto o pensamento cinematográfico tem, sem sombra de dúvida, produzido muitos dos melhores trabalhos em quadrinhos dos últimos trinta anos, eu o vejo, quando modelo para basear nosso próprio meio, como sendo eventualmente limitante e restringente. Por sua vez, qualquer imitação das técnicas dos filmes pelos quadrinhos faz com que acabem perdendo, inevitavelmente, na comparação. É claro, você pode usar seqüências de cenas de forma cinematográfica para tornar seu trabalho mais envolvente e animado que o de quadrinhistas que não dominam este truque ainda, mas em última análise, você acaba ficando com um filme sem som nem movimento. O uso de técnicas de cinema pode ser um avanço para os padrões de escrever e desenhar quadrinhos mas, se estas técnicas forem encaradas como o ponto máximo ao qual a arte dos quadrinhos possa aspirar, nosso meio está condenado a ser eternamente um primo pobre da indústria cinematográfica. Isso não é bom o bastante.
Quadrinhos também são vistos em termos literários, ambicionando traçar comparações entre seqüências quadrinhizadas e formas literárias convencionais. Assim, as "histórias curtas" dos quadrinhos seriam aproximadamente baseadas em fórmulas clássicas de escritores como O. Henry e Saki (escritores populares norte americanos da virada do século, que praticamente "inauguraram" esta forma de conto contemporâneo), com o desfecho surpresa no último quadrinho. Com "menos inteligência ainda", uma HQ com mais de quarenta páginas é automaticamente comparada a um romance, uma vez mais perdendo terrivelmente com a comparação. Com toda a boa vontade do mundo, se você tentar descrever a Graphic Novel da Cristal nos mesmos termos em que descreveria Moby Dick, então você está simplesmente procurando por encrenca. Opondo-se à idéia de filmes sem som nem movimento, teremos romances sem extensão, profundidade ou sentido. Isso também não é bom o suficiente.
Para piorar as coisas, toda vez que se usam técnicas de outras linguagens, há uma tendência dos criadores de quadrinhos em permanecerem firmemente presos ao passado. Olhando o que vem sendo descrito como trabalhos cinematográficos nos quadrinhos, normalmente encontramos alguém falando que tirou suas idéias sobre cinema quase que inteiramente do trabalho de Will Eisner, ou mais precisamente, do que ele fazia há trinta ou quarenta anos atrás. Não é um mal começo, eu admito, exceto que a maioria das pessoas parece se contentar apenas com aquilo. Eisner, no auge de The Spirit, utilizou as técnicas cinematográficas de pessoas como Orson Welles, com resultados brilhantes. Seus imitadores também usam as técnicas cinematográficas de Orson Welles, mas de segunda-mão, esquecendo que Eisner estava aprendendo com a cultura que o cercava naquele tempo. Cinema nos quadrinhos eqüivalem a Welles, Alfred Hitchcock, e talvez alguns outros mais, tendo todos eles realizado seus melhores trabalhos há trinta anos atrás. Por que não se tenta entender e adaptar o trabalho de pioneiros contemporâneos como Nicolas Roeg ou Altman ou Coppola, se o que estamos procurando é uma abordagem verdadeiramente cinematográfica? Por que os valores literários nos quadrinhos devem ser determinados pelos valores dos velhos pulp fictions de trinta ou quarenta anos atrás, independentemente do valor que estes pulp fictions possam ter?
Admitindo que agora você tenha alguma idéia das reais possibilidades abertas para você em como contar uma história, então o próximo estágio é nos movermos em relacionar os elementos dentro do verdadeiro trabalho de ficção em si.
Por razão de conveniência, os principais elementos nessa categoria podem ser divididos em três importantes áreas: caracterização, descrição do ambiente e, finalmente, enredo. Comecemos primeiro com o ambiente, pois a natureza do enredo e as motivações dos personagens serão determinados em grande parte pelo mundo no qual eles vivem.
O trabalho do(a) escritor(a), se ele ou ela estiver tentando descrever uma colônia em Netuno no ano 3020 ou a vida social de Londres por volta de 1890, terá que explorar um senso de realidade ambiental tão completa e desapercebidamente quanto possível. O caminho mais óbvio para fazer isso é explicar os rudimentos de seu mundo para seus leitores através de legendas com textos explicativos ou diálogo expositório, mas para mim é também o método mais artificial e em muitos casos o menos efetivo. Ele apenas parece ser o mais fácil, o qual seja o porquê de ser usado tão freqüentemente. Por outro lado, o melhor modo de dar a seus leitores um senso de ambientação e localização no tempo e espaço é, na minha opinião, o mais difícil, mas também o mais recompensador a longo prazo.
A melhor maneira, para mim, é primeiro considerar o ambiente com o qual você está trabalhando como um todo e em detalhes antes mesmo de você pegar caneta e papel. Antes de escrever V de Vingança, por exemplo, me peguei com um volume de informações sobre o mundo e as pessoas que nele vivem, muitas das quais jamais seriam reveladas na HQ pela simples razão de não serem essenciais para o conhecimento dos leitores e provavelmente por não haver espaço suficiente onde colocá-las. Isso não é importante. O que é importante é que o escritor ou escritora deve ter uma clara imagem do mundo imaginado em todos os seus detalhes dentro de sua cabeça durante todo o tempo. Retornado a nossa colônia Netuniana, por enquanto, vamos nos mover através dos tipos de detalhes que são essenciais para se chegar a uma clara imagem do mundo.
Primeiro, como os seres humanos conseguem viver em Netuno? Quais os problemas físicos que devem ser superados antes que as pessoas possam viver em tal mundo e quais métodos parecem ser possíveis para solucionar tais dificuldades? Pode o fato de Netuno ser na sua maior parte feito de gás exigir um certo número de ambientes artificiais flutuantes ligados talvez por uma rede doméstica de teleportação? Como o sistema de teleportação funciona? Que efeitos a enorme gravidade do planeta tem sobre os seres vivos e a psicologia das pessoas que vivem ali? Qual é o propósito de uma colônia em Netuno? Talvez seja explorar minerais para serem usados na Terra? Quais as situações políticas que prevalecem na Terra neste ponto da História e como ela afetam as vidas dos colonizadores? Há quanto tempo eles estão ali? Estão há um tempo suficientemente longo para desenvolverem adequadamente uma cultura isolada? Se assim for, que tipo de pinturas eles produzem e que tipo de musica compõem? É uma arte opressiva e claustrofóbica, resultante das pressões de viver em tal ambiente fechado, ou serão as pinturas e peças musicais plenas de luz e espaço para compensar os arredores deprimentes que os colonizadores são forçados a suportar? Como é mantida a Lei na colônia? Que tipos de problemas sociais existem? Os terráqueos são a única espécie que administram a colônia ou há outras raças de alienígenas envolvidas? Terá a humanidade encontrado outras raças de alienígenas durante todas as décadas de exploração espacial de nossa história ou ainda estarão sozinhos no universo até onde sabemos? Que tipo de economia é adotada num lugar como esse? Como as pessoas se vestem? Como as famílias são fundadas?
Esse foi o processo que usei quando descrevi o mundo dos Warpsmiths e o modo como sua cultura foi construída. Também foi o mesmo processo usado em a Balada de Halo Jones e V de Vingança. O ponto é que uma vez que você tenha começado a trabalhar no mundo em seus mínimos detalhes, você será capaz de falar sobre ele despreocupadamente e com completa segurança sem atingir as cabeças de seus leitores com enormes volumes de explicações.
Howard Chaykin fez isso em American Flagg. Ele trabalhou nas marcas registradas e nos programas de TV e nas tendências da moda e nos problemas políticos e então ele simplesmente foi franco em seu modo de contar sua história e deixou seus leitores capazes de captá-la naturalmente. Na primeira edição de American Flagg, vemos flashes de programas televisivos e um bombardeio de comerciais que nos dão uma impressão muito mais real do modo como essas pessoas pensam e vivem que qualquer quantidade de legendas explicativas poderiam fazer. Além disso, tem a vantagem de parecer muito mais natural, uma vez que segue quase exatamente o modo pelo qual entendemos uma cultura estrangeira quando viajamos para outros países durante nossos feriados. Não entendemos necessariamente tudo sobre a cultura de imediato, mas gradualmente, quando captamos os detalhes ao nosso redor até termos uma completa sensação de todo o ambiente sua atmosfera exclusiva e os elementos sociais que a formam. Quando um escritor lida com o ambiente dessa forma, não temos a sensação de ter uma abundância de estranhos detalhes empurrados em nossa direção apenas porque o escritor quer que saibamos perfeitamente como ele pensou em tudo. Em vez disso, temos a sensação de um mundo perfeitamente concreto e de detalhada credibilidade, onde coisas ainda se desenrolam fora de nossa visão mesmo se a história não está focalizada nelas. Um mundo construído logicamente para nossa história estará pronto e irá por um bom tempo suspender a descrença de nossos leitores, levando-os a um estado de hipnose que mencionei no capítulo anterior.
Os comentários acima referem-se especificamente em criar ambientes, mas se você pretende usar um lugar que realmente exista, você tem conhecer todos os detalhes da sua concepção do mundo que você está querendo mostrar. Quando comecei a escrever o Monstro do Pântano, comecei a ler sobre a Louisiana e o bayou tanto quanto pude e consegui colher, através de um árduo trabalho, conhecimento de sua fauna e flora e do lugar em geral. Sei que jacintos aquáticos formam um espesso lençol sobre a superfície da água que parece ser uma base sólida, e que crescem tão rápido que às vezes, no passado, havia a necessidade de queimá-los para que não cobrissem, literalmente, todo o pântano. Sei que os crocodilos engolem pedras acreditando serem tartarugas e que são incapazes de digeri-las. É por isso que os crocodilos tem um temperamento tão irascível. Sei que os cajuns, habitantes locais, são chamados de Coonass por aqueles que não são cajuns como um tipo de ofensa local e que eles, os cajuns, têm feito desse insulto uma virtude, trazendo em seus pára-choques um adesivo onde se lê "Orgulho de ser Coonass". Sei que o mais popular nome cajun é Boudreaux. Se quero um nome que soe verdadeiro para um cidadão comum da Louisiana, procuro em meu catálogo telefônico de Houma até encontrar um que me pareça adequado: Hatie Duplantis é um bom nome. Jody Herbert também. Se quero saber qual estrada um personagem deve tomar para se dirigir de Houma a Alexandria, então procuro em um mapa dos Estados Unidos. São pequenos detalhes como esses que farão da sua descrição de um lugar qualquer convincente e realista. Eles podem ser colocados casualmente nas imagens do diálogos sem estardalhaço e provavelmente serão mais convincentes e mais triviais e insignificantes do que parecem ser.
Naturalmente, quando consideramos um ambiente, não é apenas a realidade física do lugar que deve ser entendida, mas também a atmosfera e a realidade emocional. Tomemos Gotham City, do Batman, como exemplo. É apenas outra versão de Nova York? É um enorme pátio de esquisitices para crianças crescidas lotarem de máquinas de escrever gigantes e enormes Jack-in-the-boxes, povoada por criaturas como Bat-Mirin e bufões excentricamente maliciosos como o Pingüim ou o Coringa dos anos cinqüenta? É uma paisagem urbana sombria e paranóica francamente baseada em Fritz Lang, aterrorizada por monstros e criaturas deformadas, onde a única defesa é um frio e impiedoso vigilante que se veste de morcego? A maneira que você escolhe lidar com o ambiente irá alterar toda a atmosfera da história, e é tão importante o efeito final quanto um entendimento dos verdadeiros fatores físicos que moldam o mundo sobre o qual você está escrevendo.
Agora que temos nossa idéia, nossa estrutura, nossa aproximação do storyteller, nosso ambiente e a caracterização de nossos personagens, suponho que podemos também nos preocuparmos em desenvolver um enredo (embora como você possa ter percebido se você já leu muitos dos meus trabalhos, eu muito freqüentemente posso não ter me incomodado com essa formalidade). Assim, o que diabos é um enredo? Com o que ele se parece? Um enredo não é o ponto principal da história ou a principal razão de a história existir. É algo que está aqui mais para sustentar a idéia central da história e os personagens envolvidos nela do que dominá-los e forçá-los a preencher suas restrições. Um enredoé a combinação do ambiente e dos personagens com o elemento de tempo adicionado a ele. Se a combinação do ambiente e dos personagens pode ser chamada de situação, o enredo é uma situação vista em quatro dimensões. Usando um exemplo que emprestei do excelente Report on Probability A, de Brian Aldiss, vamos pensar sobre outras coisas além de quadrinhos para termos uma perspectiva diferente da idéia. Consideremos uma pintura específica, The Hireling Shepherd, do pintor pré-rafaélico Willian Holman Hunt (para ver a pintura, clique aqui).
Nesta pintura, vemos uma mulher sentada, encarando-nos diretamente de frente com uma belíssima e luminosa paisagem pastoral por trás dela, banhando-a na luz dourada do fim-de-tarde. Encolhido ou ajoelhado atrás da mulher, vemos um rapaz, o pastor assalariado do título. ele tem um de seus braços por sobre um dos ombros dela, como se ele tentasse estabelecer uma intimidade física com o braço ao seu redor. Entretanto, no momento descrito na pintura, sua mão ainda não a tocou. Presa cuidadosamente na palma da mão do rapaz, há uma mariposa "cabeça da morte". A expressão tanto do formoso pastor quanto da jovem mulher são ambíguos. O pastor parece desejoso enquanto a mulher parece cortejada. Visto de outro modo, a expressão do rapaz é levemente mais sinistra enquanto a expressão dela torna-se uma de preocupação reprimida. Por trás do casal, nos campos ingleses banhados de ouro, um rebanho de ovelhas vaga quase desinteressadamente, sem supervisão e desprotegidas enquanto o pastor flerta com sua bela jovem no gramado acima de seu pasto. O pastor parece sorrir como se estivesse preparando-se para mostrar à jovem a mariposa "cabeça da morte", e ela não parece descontente com seu avanço. O rebanho pasta, a mariposa estremece, o momento está congelado, sem nenhum passado nem resolução. A pintura é um único segundo retirado de um continuum do qual não sabemos mais nada sobre ele. Não sabemos nada das existências prévias desses personagens; não sabemos onde o pastor cresceu ou mesmo onde ele dormiu na noite anterior. Não sabemos se a mulher chegou àquele caminho apenas casualmente ou se concordou previamente em encontrar-se com o rapaz naquele lugar. Do futuro deles, sabemos menos ainda. Quando ele mostrar a mariposa, será que ela ficará encantada ou enojada? Eles farão amor, ou simplesmente conversar, ou talvez discutir? Isso fará com que as ovelhas se tornem menos desinteressadas? Com um olho no aparentemente nefasto simbolismo da mariposa "cabeça da morte", haverá algo mais sombrio implicado? Não necessariamente algo melodramático como a possibilidade de o pastor está quase para assustar a moça, mas talvez alguma referência à mortalidade e os caminhos nos quais dissipamos a substância de nossas vidas? É esse eterno momento que vemos, capturado na tela, um momento do relacionamento ou o fim do mesmo?
A beleza de uma boa pintura é que a mente e os sentimentos podem vagar interminavelmente dentro dela, seguindo seus próprios padrões e movendo-se em seu próprio espaço através do lugar atemporal que a pintura representa. The Hireling Shepherd mostra-nos uma situação. Tal situação não muda ou move-se, mas nós mesmos podemos nos mover dentro dela, mentalmente, desfrutando as sutis mudanças na perspectiva e significado.
Agora, se adicionar-mos a dimensão do tempo naquela situação, o trabalho de arte será completamente alterado. Em vez de ter infinitas possibilidades, deverá seguir apenas uma única rota. A estrutura de eventos ao longo desta rota é o enredo. A garota da pintura percebe a mariposa e ela fica tanto intrigada quanto um pouco assustada por ela. Conduzida essa forma dentro da conversação com o carismático pastor assalariado, a mulher encontra-se igualmente fascinada por ele. Eles fazem amor, após o rapaz libertar a mariposa "cabeça da morte". quando o primeiro encontro sexual deles termina, eles descobrem que o rebanho de ovelhas foi roubado ou misteriosamente desapareceu durante esse intervalo. Sem querer encarar a cólera do irado fazendeiro que contratou o pastor para cuidar das ovelhas, o feliz e despreocupado trabalhador decide deixar a vizinhança sem reportar o roubo e procura por trabalho em outro condado. Após algumas semanas, a mulher descobre que está grávida. Seu pai e seus irmãos tomam conhecimento disso e juram localizar o pastor assalariado e oferecer a ele a escolha do casamento ou da morte... e etc e etc.
Reconhecidamente, o que foi descrito acima é uma desajeitada e feia extrapolação, sem nenhuma poesia ou charme ou sutileza da pintura original, mas acho que ela indica que esboçar um enredo é um tipo de fenômeno quadrimensional, usando o tempo por este ser a quarta dimensão. A situação apresentada na pintura é uma representação de um mundo tridimensional que, com a adição do tempo, torna-se quadrimensional e muda de uma situação para um enredo.