sábado, 29 de setembro de 2018

O sonho dos mil gatos


O DIA EM QUE MIL GATOS SONHAREM
"É o sábio que sonha ser uma borboleta ou a borboleta que sonha ser um sábio que sonhava que sonha ser uma borboleta?" (Pensamento atribuído ao Sábio chinês Chuang Tzu, no século IV a.C.).
O mundo dos sonhos sempre se apresentou ao homem como uma realidade paralela ao universo observado através dos sentidos. E, bem cedo, alguém deduziu que o universo deveria ser um sonho de Deus. E o Sonho adquiriu vida própria, para alegria do grande Sonhador, passando a ser modelado por sonhadores menores, os homens de espírito ou as criaturas criadoras. Destaque-se, no processo histórico de construção do grande sonho coletivo da humanidade, a contribuição de quatro sonhadores nesse inventário dos sonhos vivos: Platão, Santo Agostinho, Descartes e Castaneda.
Antes, no entanto, é preciso distinguir sonho pessoal de sonho coletivo.
1.       O sonho pessoal
Na Babilônia, na China, nos Vedas indianos, nas tradições indígenas das Américas, da África e da Oceania, e em todas as religiões que se tem notícia, os sonhos desempenham um papel fundamental. Os sonhos são a base de todos os sistemas de crença humanos. Campbell dizia que os “mitos são sonhos partilhados, sonhos são mitos privados”. Porém, na verdade, os povos possuem mitos e os sonhos possuem pessoas. Os sonhos são pessoais.
Na maioria das vezes, os sonhos pessoais são interpretados como mensagens cifradas dos deuses, dos ancestrais ou de seres malignos. E o Talmud diz que “um sonho não interpretado é como uma carta que não é aberta”. Os gregos (Hipócrates e Aristóteles) davam uma importância especial ao diagnóstico de doenças através do sonho. Artemidoro de Daldis, no século II d.C., distinguia o sonho comum, referenciado no passado biográfico; do sonho premonitório das ‘almas virtuosas’, referenciadas no futuro.
Na modernidade, para objetividade científica, o sonho, a mais subjetiva das atividades humanas, permaneceu sem sentido ou significado até que Sigmund Freud proclamou que “o sonho é a realização (simbólica) de um desejo (censurado)”.
Ou, mais precisamente: o sonho para Freud é um conglomerado de formações psíquicas moldado pela história biográfica pregressa do indivíduo, com múltiplos significados, que tem por função proteger contra a dor e satisfazer os desejos reprimidos pela censura.
Em A Interpretação dos Sonhos (1990), Freud lançou as bases da ciência hermenêutica moderna ao distinguir, na decifração de fenômenos oníricos, o conteúdo manifesto do latente ou oculto. Para ele, todo sonho seria ‘a realização simbólica de um desejo inibido’, mas nem sempre a expressão deste desejo é clara e inequívoca, ao contrário, haveria mecanismos psicológicos responsáveis pelo mascaramento simbólico dos impulsos recalcados. Freud chamaria esses mecanismos: condensação, deslocamento, processo de elaboração secundária, simbolismo e dramatização.
Por condensação se entende o processo segundo o qual um conteúdo manifesto apresenta mais de um conteúdo latente de forma simplificada. Já deslocamento, se define como o processo pelo qual a carga afetiva se destaca de seu objeto normal para fixar-se num objeto acessório. A elaboração secundária se revela como o processo pelo qual, à medida que se aproxima a vigília, a produção onírica é reorganizada por uma lógica racional. Assim, nos lembramos dos sonhos sempre de trás para a frente, apagando seus detalhes e paradoxos. A dramatização consiste no processo através do qual os conteúdos conceituais são substituídos por imagens visuais. A simbolização se distingue da dramatização porque a dramatização é pessoal; enquanto o símbolo é universal.
Para Freud, o processo de simbolização se explicaria ainda através da censura e dos quatro movimentos de defesa do ego diante da crueza dos seus instintos e desejos objetais: identificação, projeção, introjeção e sublimação. É necessário assinalar que a noção de sublimação na interpretação dos sonhos será o ponto central das divergências entre Freud e Jung, uma vez que o discípulo discordava que o simbólico fosse apenas um resultado do caráter determinista e compulsivo do inconsciente biograficamente recalcado. Jung viu nos sonhos de seus clientes elementos mitológicos organizados de num modo prospectivo (e, muitas vezes, premonitório) chegando à conclusão de que o inconsciente não é apenas uma mera instância de repetição do passado individual, mas comporta ainda a sua transcendência psíquica e fenômenos mais complexos, de caráter coletivo e transpessoal.
Para Jung, as imagens oníricas se oferecem como narrativa em que o protagonista é o próprio narrador: o sonhador. Do ponto de vista pessoal, há uma função psíquica compensatória entre as relações dos eixos Ego-Self e Consciência Individual-Inconsciente Coletivo. O sonho se apresenta sempre como uma mediação e uma compensação entre esses quatro extremos. Mas, há também uma função transcendente: aquele que presta atenção aos próprios sonhos entre em processo de desenvolvimento (a individuação) em que sua consciência se religa aos valores éticos e estéticos fundamentais da matriz arquetípica. Assim, o sonho, mais que expressão involuntária de um problema passado, é uma resposta elaborada pelo inconsciente, uma reorganização prospectiva, uma solução voltada para o futuro. (HALL,1985)
Ainda no âmbito da psicanálise, outras abordagens foram desenvolvidas recentemente como a de Tales Ab’Saber (2006). O ‘trabalho de sonho’ se torna um método de desenvolvimento ‘a dois’: tanto na transferência analítica inspirada em Bion (o analista sonha o sonho do analisado, e este, por sua vez, o toma como objeto de sonhação), como na mediação sujeito-objeto (na equiparação entre sonhar e brincar, entre o onírico e o lúdico) observada por Winnicott).
2.       O sonho para ciência
Mas foi no campo das Neurociências que o estudo dos sonhos pessoais mais prosperou. Em 1952, Leitman e Aserinsky (2003) estabeleceram, através de eletroencefalogramas, o ciclo fisiológico do sono, composto por pelo menos três estágios com diferentes propriedades neurofisiológicas: o estágio hipnagógico (início do sono em que os pensamentos consistem em imagens fragmentadas e pequenas cenas), o estágio do sono de ondas lentas (em que as ondas cerebrais do neo-cortex apresenta freqüências baixas e grande amplitude) e o estágio do sono REM (rapid eye moviment).
Durante a fase do sono REM ou sono profundo, o cérebro apresenta um funcionamento semelhante ao estado da vigília em momentos da maior atividade (confronto com perigo, luta pela sobrevivência, contato sexual iminente) – o que levou os cientistas a concluírem que os sonhos aconteciam exclusivamente neste estágio.
Durante duas décadas, o sono REM foi sinônimo fisiológico do sonho e a idéia de Freud, de que os sonhos são produzidos por processos mentais era compatível com o conhecimento científico do funcionamento cerebral.
Até 1977, quando Hobson e Mc Carley (1988) descobriram o modelo de ativação-síntese e de reciprocidade interação. Para eles, o cérebro liga impulsos sem sentido e sentimentos a impressões sensoriais e lembranças, produzindo uma narrativa coerente a partir do aleatório. Movimentos oscilatórios simples pela qual a consciência é ligada e desligada em intervalos de 90 minutos através da interação recíproca de substâncias químicas, que nada tem haver com processos mentais. Hobson e Mc Carley provaram que o sono REM não é o equivalente fisiológico do sonho. Por outro lado, os cientistas reduziram a atividade onírica a um mero epifenômeno subjetivo do sono, sem nenhuma importância, uma frivolidade sem sentido de nossa mente.
Nos anos 90, Solms (1997), através de seus estudos com dopamina, reabilitou o sono REM como sonho e compatibilizou Freud novamente com a neurociência. Em seguida, Winson (1985), estudando o papel do ritmo Teta de ondas cerebrais, endossou a idéia de que os sonhos têm sentido subjetivo, podendo ainda refletir um mecanismo de processamento de memórias herdado de espécies inferiores.
E, atualmente, há uma grande polêmica entre os neurocientistas: parte considera o sonho resultante de processos meramente fisiológicos, enquanto outros acreditam que ele também é causado por processos mentais, seguindo a lógica freudiana.
Estudando a propagação, criação e simulação de memórias e fazendo uma ampla revisão bibliográfica e uma síntese atual da pesquisa neurocientífica sobre o sono, Ribeiro e Nicolelis (2004) defendem que o onírico tem um papel importante na consolidação de vários tipos de memória, desempenhando um papel fundamental no aprendizado. Observando como o gene zif 268, associado ao aprendizado, é ativado seletivamente durante o sono REM, os cientistas chegaram à conclusão que o sono REM tem criatividade. Embora o fortalecimento e a reestruturação das memórias sejam funções cognitivas do sonhar, há ainda uma simulação dos futuros possíveis. Os sonhos são seqüências hiperassociativas das memórias fragmentadas, que simulam eventos passados e expectativas futuras de forma a gerar soluções para os desafios cognitivos enfrentados pelo sonhador. O sonho, assim, seria uma forma de selecionar alternativas e orientar decisões (1992, 126).
Sonhar para organizar lembranças e o aprendizado ou sonhar para esquecer? Para Crick (1995) o sono REM é um processo de aprendizado ao contrário ou desaprendizado, um programa de autolimpeza que descarta as informações desnecessárias. Para Ribeiro e Nicolelis, no entanto, não há diferença: o sono REM tanto nos esquecer como organiza nossas lembranças, sendo capaz de simular situações futuras com base no processamento de informações passadas.
Volta-se, assim, ao mesmo ponto em que Artemidoro, Freud & Jung chegaram: há sonhos referenciados no passado (o sono de onde lentas) e há sonhos referenciados na simulação do futuro (o sono REM). Porém, as pesquisas de Ribeiro e Nicolelis sobre o sonho abriram um horizonte bastante amplo de estudos e atualmente há diferentes pesquisas neurocientíficas em andamento: o desenvolvimento filogenético do sonho REM em relação à evolução das espécies (RIBEIRO, 2004); o desenvolvimento ontogenético do sonho REM em relação ao crescimento infantil humano e à plasticidade do cérebro (FRANK, 2004); o estudo dos pesadelos e dos distúrbios pós-traumáticos (PERES; MERCANTE; NASELLO, 2005); entre outros.
3.       O Sonho Coletivo
Para os cientistas, o sonhar é uma atividade cognitiva individual que ocorre durante uma parte do sono; mas para o xamanismo e outros aportes esotéricos, o sonho é a atividade mais abrangente e profunda, englobando a imaginação, o pensamento e os cinco sentidos. O sonhar, nessa perspectiva ampliada, se confunde com a percepção coletiva que fazemos do mundo. Como se tornou lugar comum dizer: “um sonho que se sonha só, é só um sonho; mas um sonho que se sonha em comum torna-se realidade”.
Segundo Ivan Bystrina (1995), há três níveis inter-relacionados de codificação de mensagens: o código primário ou hipo-lingüístico, em que os processos vitais são operações de câmbio informacional que operam através de sinais simples e se organizam a partir da experiência; o código secundário ou lingüístico, um sistema institucional de cognição coletiva; e o código terciário ou hiper-lingüístico ou a segunda realidade, construída para perpetuar mensagens para futuras gerações. E a segunda realidade formada por nossos sonhos e desejos profundos tem origem em quatro fontes possíveis: o sonho, as doenças mentais, o êxtase místico e os jogos.
Nesta ótica, a segunda realidade é o universo simbólico. Fossemos escrever uma história do sonhar coletivo, o primeiro passo seria o sonho da Caverna de Platão:
Acorrentados de costas para a luz em um cárcere subterrâneo, os prisioneiros só podem ver, do mundo exterior, as sombras projetadas no fundo da Caverna. Caso um dos prisioneiros se libertasse e retornasse ao mundo exterior, perceberia que o mundo no qual vivia era irreal e inconsciente; formada por sombras e reflexos das coisas. O prisioneiro correria sério risco de vida se, retornando ao interior da caverna, procurasse revelar aos seus antigos companheiros a irrealidade do mundo em que se encontram. Provavelmente, eles o matariam.
A história da caverna é uma alusão direta ao destino de Sócrates, professor de Platão, forçado a beber veneno pela democracia ateniense, acusado de romper a juventude. Platão chegou então à conclusão de que “não é possível ser justo em uma cidade injusta”. É preciso construir uma sociedade justa, capaz de produzir homens justos. Essa é a proposta de A República (PLATÃO, 2004), o primeiro livro que se conhece sobre Utopia, a idéia de construção de uma sociedade perfeita, produtora de homens perfeitos. E o sonho da Caverna dividiu o mundo em duas realidades: uma sensível e ilusória e outra; distante, verdadeira e inteligível.
Santo Agostinho, outro mestre na arte do sonhar, fez do interior da caverna a memória das coisas dos homens e do mundo exterior, a memória das coisas de Deus. Jesus substituiu Sócrates como o redentor e o unificador dos dois mundos. Para o criador da doutrina do pecado original, há uma Cidade de Deus paralela à Cidade dos Homens (como a realidade sensível e o mundo inteligível de Platão). Agostinho colocou a utopia platônica como um objetivo histórico da humanidade: ao ser expulso do Éden, o homem dissociou o universo, Cristo reabriu a passagem entre os mundos e o retorno à Nova Jerusalém será a reunificação das cidades.
E o sonho da Cidade Santa no Final dos Tempos deu um sentido à história e um destino para humanidade.
Vivemos em um universo dividido entre o que sentimos e o que pensamos, mas caminhamos para sua unificação escatológica. Para Agostinho, no entanto, o tempo só existe no presente e só é visível através da linguagem; o passado só existe na memória, o futuro só existe na imaginação. O ‘fim dos tempos’ é o fim dessa sensação de continuidade no espaço provocada pela morte; o apocalipse é a revelação da ordem arquetípica, a eternidade de onde nunca saímos inteiramente.
Vários outros sonhos menores se desdobram deste sonho magistral: o sonho do retorno do messias, o sonho da democracia de Rousseau e o sonho da conspiração em um mundo governado pelo mal. Há uma grande diferença entre um sonhador de sonhos vivos e um pensador idealista. O sonhador imagina novas idéias e crenças que se tornam sonhos vivos para futuras gerações; e o idealista é apenas analista irrealista, que geralmente segue idéias e crenças já formuladas.
Certo dia, pelo início do século XVII, René Descartes sonhou que o Universo era um gigantesco relógio e que Deus era um relojoeiro, recusando as explicações escolásticas de que eram as virtudes humanas que determinavam os acontecimentos e que as forças divinas atuavam diretamente sobre o destino humano.
E o sonho do universo-máquina nos tornou seres mecânicos e o cartesianismo se tornou senso comum.
Autores contemporâneos criticam o pensamento cartesiano em seu aspecto racionalista (o método da dúvida sistemática, a dissociação do tempo do espaço nos eixos cartesianos, a idéia de plano geométrico dissociado do espaço real), porém não conseguem superar o sonho de Descartes. Fritjoff Capra, por exemplo, gostaria de romper com o paradigma mecanicista de que o mundo é uma máquina e definir o universo como um sistema biológico complexo, mas ainda vive e pensa dentro de um universo-máquina.
O diretor Roberto Rosselini fez uma série de documentários para TV italiana sobre filósofos. O episódios sobre Descartes mostra que o filósofo não era um homem contemplativo, mas sim um soldado francês, um homem de ação extremamente inteligente e curioso, que se retirou de seu país em virtude dos atritos entre católicos e protestantes, indo residir na Holanda. Descartes era um homem religioso que gostava de matemática e lógica, e não aceitava as explicações da escolástica e do neoplatonismo para o mundo físico. Ele se entregava de coração às questões do Discurso de Método que investigava e se orientava através de seus sonhos. Em nenhum momento, ele quis negar a teologia cristã, mas sim completá-la de forma mais realista, com a dissociação entre corpo e alma.
Porém, depois de Descartes, todos passaram a seguir, mesmo involuntariamente, suas orientações para o espírito pensante, o sonho que torna a ciência possível.
E durante a modernidade (esta imagem objetiva e coisificada que fazemos de nós mesmos), fomos prisioneiros da própria ilusão, forçados a sobreviver em mundo violento e sem sentido, jogados em um universo frio e sem alma, não passamos, aos olhos da ciência objetiva, de bolinhas de carne girando em uma bola de pedra em torno de uma grande bola de fogo. Mas, Eu não sou uma bola de carne, a Terra não é uma bola de pedra e o Sol não é uma bola de fogo. Por outro lado, também não podemos retroceder ao passado, considerando os astros como são deuses e recolocando o observador como sujeito no centro do universo, como se fazia antes da ciência objetiva e da modernidade.
4.       O sonho nagual
Homem, Mulher; Luz, Trevas; Vida, Morte - vivemos em um universo de polaridades opostas. Mas, interpretamos essas polaridades de diferentes formas. Algumas tradições mais antigas tratam as polaridades de opostos de uma forma ainda mais diferente e, aparentemente, incompreensível para o pensamento científico: o Paradoxo. O deus Abraxás de Creta antiga, Janus dos Romanos e o par Tonal/Nagual nas Américas são exemplos de deuses de "duas faces" paradoxais, isto é, de uma concepção em que a polaridade de opostos que dá origem a vida e ao universo que não comporta nenhuma forma de totalização ou unificação globalizante. Aliás, talvez algumas de nossas polaridades dialéticas e dialógicas (Vida/Morte, Bem/Mal, Ser/não-Ser) sejam também paradoxos que nos recusamos a aceitar.
Nas mitologias pré-colombianas, os deuses gêmeos também desempenham um papel central. Para os toltecas mais do que deuses, o tonal e o nagual são princípios cognitivos e realidades paralelas.
Três mil anos atrás havia um ser humano, que vivia perto de uma cidade cercada de montanhas. (...) Um dia, enquanto dormia numa caverna, sonhou que viu o próprio corpo dormindo. Saiu da caverna numa noite de lua nova. O céu estava claro e ele enxergou milhares de estrelas. (...) Olhou para suas mãos, sentiu seu corpo e escutou sua própria voz dizendo: “Sou feito de luz; sou feito de estrelas.” Olhou novamente para o alto e percebeu que não eram as estrelas que criavam a luz, mas sim a luz que criava as estrelas. “Tudo é feito de luz”, acrescentou ele, “e o espaço no meio não é vazio.” (...) Então, ele compreendeu que, embora fosse feito de estrelas, ele não era essas estrelas. “Sou o que existe entre elas”, pensou. Assim, chamou as estrelas de tonal e o espaço entre os dois nagual, e percebeu que a harmonia e o espaço entre os dois eram criados pela Vida ou Intento. (RUIZ; 2005, 13 e 14.)
Há sempre uma dupla realidade, uma simetria entre o lado de dentro e o de fora, o micro e o macrocosmo. No campo filosófico há, para Platão, um mundo sensível-concreto e outro inteligível-abstrato; uma cidade dos homens e uma cidade de Deus para Santo Agostinho; para Descartes, coisas extensas e objetos virtuais. Com Kant, há uma inversão de perspectiva: a realidade deixa de ser uma percepção e passa a ser uma interpretação. O mundo externo se torna uma projeção estruturada do sujeito, a simetria torna-se um reflexo invertido.
No campo religioso também há simetria, mas é o metafísico que se reflete no físico: “assim em cima, como embaixo” - expressão presente não apenas nas Tábuas de Esmeralda de Hermes Trimegisto, mas presente em todas as grandes tradições, como a chinesa (céu e a terra), a indiana (o universo-templo e o corpo-templo), e a ocidental (o homem como a imagem e semelhança de Deus). No humanismo iluminista, há cruzamento desses dois modos de representação simétricos, o filosófico e o tradicional, em que o homem ocupa o lugar central (como na tradição judaica cristã), mas o universo externo que enquadra e determina a experiência subjetiva (como crê a modernidade). Para Carlos Castaneda, a simetria entre a cognição ordinária e a extraordinária é um paradoxo insuperável para o qual não existe totalização ou unificação globalizante. O Mundo e a Consciência são termos irredutíveis.
Para as tradições, a simetria é dada como certa (o mundo material é um desdobramento denso dos universos sutis); para modernidade, a simetria é parcial e invertida (o subjetivo parcialmente reflete a realidade total); para Castaneda, não há simetria ontológica (nem reflexividade entre dimensões paralelas): os objetos é que são duplos construídos intersubjetivamente em um único plano imanente bifacetado - como a onda e a partícula.
Para o xamanismo, o sonhar é a base de toda experiência cognitiva: sonhamos o tempo todo todos juntos, seja dormindo ou quando estamos acordados (mesmo agora estamos sonhando: eu escrevendo e você lendo esse texto). A diferença é o enquadramento mental-sensorial no estado de vigília (ou tonal) da percepção da energia sem realidade sensorial dos estados alterados de consciência (ou nagual). Os conceitos de Tonal e Nagual representam campos perceptivos opostos e complementares, em que o primeiro é nossa percepção ordinária (sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos concretos e coisas sólidas; e o último é a percepção de que estamos em um universo de relações, em que tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e de adaptação.
Mas, há também diferentes interpretações dessa dualidade. Enquanto Ruiz sonha em salvar a terra e a humanidade, Castaneda intenta antes salvar-se do destino da humanidade de ser absorvido pela terra.
Para don Miguel Ruiz (2005), há dois sonhos coletivos: o sonho que chamamos de realidade – “o tonal, a primeira atenção, o sonho do inferno” – e o sonho dos guerreiros - “o nagual, o sonho da segunda atenção”. Para ele, o sistema de crenças é uma estrutura parasita de energia. Vivemos em um sonho coletivo que nos aliena de nossas vidas e nos mantêm cativos em uma realidade virtual. Somos prisioneiros uma ‘Matrix’ formado por crenças e valores.
Há, assim, um sonho coletivo - ''sonho do inferno'' ou ''sonho do planeta'' – e nossos sonhos pessoais. Em nossa formação pela família, pela escola e pela sociedade, nossos sonhos pessoais são “domesticados através do medo”, pois nos tornamos escravos das expectativas alheias e de nossas próprias exigências. Medo não simplesmente de ser punido ou morto, mas principalmente de ser rejeitado, de não ser amado. Segundo Ruiz, é preciso retomar nossa capacidade de sonhar, libertando nosso sonho pessoal do sonho coletivo do medo de exclusão; e também é necessário, em conjunto com outros sonhadores, compreender e transformar esse sonho social de destruição planetária, para que as futuras gerações possam viver em harmonia com a Terra e consigo mesmas.
Já para Carlos Castaneda, o tonal é uma ilha (ou bolha da percepção) e o nagual a um oceano-universo que o engloba: o mar escuro da consciência. A vida orgânica (o tonal) é uma gota em um verso inorgânico. A tarefa do xamã é sair individualmente do seu ovo tonal e viver em um universo nagual, deixando para trás a condição humana. Castaneda considera a existência de dois mundos paralelos (o mundo das coisas e o das relações entre energias); e o nagual é visto como o aspecto vibracional do universo, constituído de energia e de relações entre diferentes estados de ser.
5.       Perguntas
O filme Matrix combina os sonhos da caverna, da utopia e o do universo mecânico, fantasiando sonhar uma saída para nosso mundo, mas fica apenas no plano da imaginação. O verdadeiro sonhar implica em criar um caminho antes inimaginável; em abrir novas perspectivas, e não simplesmente tecendo fantasias com mitos cristalizados pelas tradições.
Aliás, há várias histórias e contos sobre essa temática, do qual se destaca O sonho de mil gatos, de Neil Gaiman (Sandman #18), em que um gato sonha que sua espécie já dominou o planeta, porém, uma vez que os felinos deixaram de sonhar, sua espécie passou a ser dominada pelo sonho coletivo dos seres humanos. No dia em que mil gatos sonharem, no entanto, o sonho felino triunfará novamente e os homens voltarão a sua condição original.
Será que a generalização social dos sonhos lúcidos nos levará a um salto evolutivo quântico da consciência humana de grandes proporções? Será que, ‘quando mil homens sonharem com lucidez’, o sonho coletivo humano sobre o planeta se tornará consciente de si e de seu papel no universo?