quarta-feira, 22 de junho de 2022

Barthes


 O ESTRUTURALISTA E O PÓSMODERNO

A coletânea de artigos Análise Estrutural da Narrativa (BARTHES, 2008) marca um momento importante para os estudos narrativos. Umberto Eco escreve uma análise narrativa dos livros de James Bond (2008, 142); Claude Bremond investiga 'A lógica dos possíveis narrativos' (2008, 114); Tzvetan Todorov define 'As categorias da narrativa literária' (2008, 218); Gérard Genette discute as Fronteiras da narrativa (2008, 265); Greimas faz uma homenagem a Levi-Strauss em Elementos para uma teoria da interpretação da narrativa mítica (2008, 63); e Roland Barthes, organizador do livro, publica sua Introdução à análise estrutural da narrativa (2008, 19).

Ao contrário de Campbell, de Levi-Strauss e de Greimas, que viam as narrativas míticas como epifanias e memórias estruturantes; Roland Barthes considera que os mitos são construções ideológicas do poder conotativo. O mito naturaliza as relações sociais, transformando contingências históricas em tabus e falsas identidades, eternizando o mundo em suas desigualdades. O livro Mitologias (BARTHES, 1972) - escrito nos anos 50, com textos rápidos com críticas estruturalistas a temas comuns da mídia – popularizou rapidamente o autor fora no meio acadêmico francês, inclusive fora do país.

Aqui no Brasil, em virtude das preferências intelectuais de tradutores e editores, temos dois Barthes diferentes:

(…) nos anos 70, foi sobretudo o autor estruturalista que interessou aos intelectuais brasileiros, graças a suas reflexões sobre a linguagem, calcadas nas teorias linguísticas em voga (…) transformaram-se nas leituras obrigatórias ao intelectual interessado em analisar qualquer tipo de linguagem, da literatura ao cinema, do mobiliário às revistas em quadrinhos, da moda à publicidade, da fotografia ao discurso jornalístico. O Roland Barthes que ora transparecia era o semiólogo, líder do estruturalismo francês, instrumental analítico, pau para toda obra, teoria para toda pesquisa. (…) Mas a pós-modernidade do final dos anos 90 e do início dos anos 2000 ressuscitou o escritor como um todo, reconhecendo nele um precursor de modelos libertários de construção literária: a estética do fragmento e a escrita corpórea, que opera guiada pelo desejo, por exemplo, foram celebradas como formas de ruptura com o padrão de escrita acadêmica, em princípio objetiva e fundamentada em uma lógica puramente racional.1

O grande marco dessa virada foi a aula inaugural no College de France, em 1977, quando Barthes rompeu definitivamente com o estruturalismo, ao considerar a língua como um código de linguagem engendrado pelo poder (e não como memória social), aproximando-se de Foucault. Barthes tem um percurso que vai da linguística estrutural ao literatura, embora parte de seus leitores minimizem essa mudança.

O certo, no entanto, é que seus livros mais recentes são bem diferentes dos mais antigos. O Roland Barthes da Introdução à análise estrutural da narrativa, do Grau zero da Escritura e de Elementos de Semiologia (1971b) não é o mesmo Roland Barthes dos livros Fragmentos do Discurso Amoroso (1977), um dicionário de verbetes filosóficos sobre o amor; Camera Clara (1980), um estudo sobre fotografia e morte, ou de textos como A Morte do Autor (2004).

Em seus primeiros livros, Barthes enfatiza mais o significado que o significante, que confunde com o aspecto material do signo, chegando a dizer que a semeologia deveria ser uma parte da linguística (e não o contrário como pensam Saussare e Pierce) devido ao predomínio do verbal sobre não verbal. Assim, por exemplo um conjunto de significantes (luvas, gorro, casaco) teria como significado denotativo que está frio e como significado conotativo, a condição social do portador. Outro analista tomaria os acessórios como signos, o clima como significado e o significante seria 'o aconchego reconfortante' e/ou 'a vulnerabilidade ao frio'. A semeologia barthiana não percebe a afetividade, desconsidera a entonação fonológica como fator comunicativo e é incapaz de entender a sintaxe da linguagem visual e de símbolos, apelando sempre para o conotativo, para o referente extralinguístico. Ele se debate contra o significante!

Há uma grande diferença entre analisar narrativas e interpretar a própria história. Os últimos textos de Barthes são um convite à ruptura de um paradigma e à superação de um modo de vida através de uma nova atitude diante do mundo. Barthes não é mais um analista, tornou-se um escritor (ou um scriptor, como preferia).

1BRANDINI, Laura Taddei. Roland Barthes no Brasil, via traduções < https://pdfslide.net/documents/5-laura-taddei-brandini-34indd.html >

quarta-feira, 15 de junho de 2022

30 ANOS DE LUTA

 

DISCURSO SOBRE O TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO 

João Helder Cavalcanti

Quando começamos a advogar, o Tribunal do Trabalho existia – como o próprio nome diz – de forma Regional. Era por regiões.

Isso foi em 1982-83. Faz 40 anos que começamos a advogar... Começamos antes, ainda como estagiário, mas estamos considerando, a partir da época em que já tínhamos a carteira da OAB.

A sede do Tribunal Regional do Trabalho era em Recife, e englobava Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.

Todas as vezes que precisávamos fazer uma defesa no Tribunal – entregar um recurso, um memorial – tínhamos que nos deslocar de Natal para Recife, para cumprir o protocolo. Como não havia, então, nenhuma das facilidades tecnológicas, que temos hoje, só aí você despendia praticamente o dia inteiro, considerando a viagem de ida e volta. E nunca tínhamos o mesmo tratamento dos advogados da cidade-sede, que estavam ali, diariamente, e eram, portanto, mais conhecidos.

Com a Constituição de 1988, muita coisa veio a mudar no cenário do Judiciário Brasileiro. Aliás, é preciso que se diga que, apesar das tentativas de desfigurá-la, é uma Constituição, cujo maior mérito é ser altamente inclusiva – isso na nossa visão, e na de muitos constitucionalistas de renome mundial.

Digo mais: o próprio Direito do Trabalho é, por si só, o maior projeto de inclusão social que a civilização conseguiu realizar até hoje.

Feita essa premissa, pode-se dizer que a Justiça do Trabalho funciona, também, como um instrumento reparador de desigualdades sociais, muitas delas históricas. Esse instrumento está à disposição do trabalhador, para dele fazer uso e corrigir eventuais erros, ou, até mesmo, abusos por parte do empregador.

A Constituição de 88, ao primar pelos direitos fundamentais, pelos direitos sociais, obviamente permitiu um salto significativo na vida dos trabalhadores, dos sindicatos e dos movimentos sociais brasileiros.

E um exemplo bem palpável disso é que os Tribunais, por estado, foram criados, a partir dessa Constituinte.

Como o Rio Grande do Norte não tinha força política para criar o seu próprio Tribunal, Pernambuco ficou com Alagoas, e a Paraíba encampou a criação de um Tribunal, que terminou nos envolvendo. A força política da Paraíba vinha do advogado e político Humberto Lucena, então Presidente do Senado, que liderou essa conquista do seu Estado, em detrimento do nosso.

Os anos se passaram e, às custas de abnegados juízes do Trabalho – que se mobilizaram a ponto de sensibilizar a classe política para viabilizar a criação do Tribunal Regional do Rio Grande do Norte – este, por fim, foi criado.

A Lei de número 8215, de 1991 criou, definitivamente, o TRT da Vigésima-Primeira Região, que viria a se instalar somente no ano seguinte.

E, aqui, abro um parêntese, para mencionar um nome que, indo na contramão do marasmo da nossa, então, classe política, fez-se exceção à época. Talvez, pelo seu conhecimento jurídico, talvez, pelo fato de ter advogado na Justiça do Trabalho, talvez, pelo fato de ter sido professor de Direito Constitucional, o então deputado federal Ney Lopes de Souza botou, literalmente, o projeto debaixo do braço e saiu, sensibilizando seus colegas, e tornando-se, assim, uma espécie de padrinho da causa.

Com a criação do TRT do Rio Grande do Norte, os juízes de primeira instância foram alçados ao novo Tribunal, obedecidos os critérios de antiguidade e merecimento (não conhecimento). Iria compor o TRT-RN, ainda, um representante do Quinto Constitucional, representando os advogados, e um representante do Ministério Público.

Entre os juízes togados estavam Raimundo Oliveira, Francisco das Chagas Pereira, Waldeci Gomes Confessor e Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro. Já entre os classistas, Sérgio de Miranda Monte e Reginaldo Teófilo da Silva. Othongaldi Rocha era o representante do Ministério Público e o Dr. José Rocha o representante do Quinto Constitucional, que viria a ser, naturalmente, o primeiro presidente do TRT 21ª Região.

E por que digo naturalmente?

Porque, indiscutivelmente, sem desconsiderar nenhum outro magistrado – absolutamente; todos foram fundamentais na luta pelo Tribunal do Trabalho Potiguar – mas, sem o Dr. José Rocha nós não estaríamos aqui.

Simplesmente.

Não estaríamos aqui, e ponto.

Sem discussão.

Pode-se dizer que Dr. José Rocha foi quem construiu o novo Tribunal, a partir de uma ideia, de um desejo, que foi se planificando através dos projetos arquitetônicos e estruturais, que são fundamentais, claro, mas que não poderiam existir sem o alicerce maior da força de um sonho.

José Vasconcelos da Rocha foi esse sonhador. Esse homem, esse advogado, esse juiz, que transcendeu as fronteiras do sonho e concretizou este Tribunal, que, hoje, comemora três décadas.

Dr. José Rocha compreendeu que não bastava ser romântico – era preciso ser o guerreiro que, efetivamente, ele foi. Obstinado, determinado, dedicado, trabalhador, todas características que pavimentaram seu percurso até tornar-se um magistrado exemplar.

Obviamente, ele não estava só. Nenhuma andorinha faz sozinha as alegrias vivas de um verão. Ou, como diria nosso vizinho, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto,

Um galo sozinho não tece uma manhã: 
ele precisará sempre de outros galos. 
De um que apanhe esse grito que ele 
e o lance a outro; de um outro galo 
que apanhe o grito que um galo antes 
e o lance a outro; e de outros galos 
que com muitos outros galos se cruzem 
os fios de sol de seus gritos de galo, 
para que a manhã, desde uma teia tênue, 
se vá tecendo, entre todos os galos.

Junto com José Rocha estava Dr. Francisco das Chagas Pereira e sua cultura ímpar.

Estava, também, a Dra. Perpétua, igualmente detentora, no seu modo discreto, de uma cultura jurídica e literária inigualável e cujo nome, por razões de uma quase delicada poesia, que tanto nos inspira, deixou de ser Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro, para ser, simplesmente, Perpétua – ou seja, de longa vida, eterna.

Mas, em verdade, incomparáveis, inigualáveis, também, eram os demais magistrados – Raimundo Oliveira, Waldeci Confessor, Sérgio Monte, Reginaldo Teófilo, Othongaldi Rocha.

Ressalto, ainda, que em toda essa luta o Dr. Francisco Fausto, dileto amigo e ministro do TST, esteve sempre presente.

Nessa época, é importante relembrar, ainda existia a representação classista, pelo lado do empregador e pelo lado do empregado, que terminou sendo extinta devido a um acúmulo de direitos que, com o tempo, tornaram-se privilégios.

Igualmente importante, é situar o contexto da época. O país vivia o rompimento da ditadura. Nascia um novo Brasil, cheio de esperança, com muitos novos projetos.

O nosso Tribunal nasce, então, sob este novo signo.

A começar pelo seu – por assim dizer – berço: uma Constituição extremamente inclusiva!

A Constituição de 1988 inaugura direitos nunca antes vistos pelos trabalhadores; como, por exemplo, o instituto da substituição processual e a liberdade e autonomia dos sindicatos, vetando a intervenção estatal.

Até então, era muito difícil um trabalhador entrar na Justiça, sozinho, contra o seu empregador, por medo de represálias, ao ponto que a Justiça do Trabalho era conhecida como “a Justiça dos desempregados”. Só quem já não tinha mais nada a perder, recorria a ela...

Com o advento dos direitos sociais, com a consagração da autonomia coletiva dos trabalhadores, com o reconhecimento das convenções e acordos coletivos – entre outros direitos – tudo isso acaba transformando a feição da Justiça do Trabalho. Novas demandas surgem, o espectro torna-se mais abrangente, cumprindo melhor o seu papel de inclusão social, através do reconhecimento dos direitos dos trabalhadores.

Como era de se esperar, a resistência a essas mudanças não tardou, com muitos debates jurídicos, doutrinários, mas quase sempre com o intuito de dificultar o acesso do trabalhador à Justiça.

Temos, aqui, um detalhe importante – é que os juízes, formados àquela época, tinham uma formação humanista, e enxergavam, portanto, o Direito do Trabalho como efetivamente ele é.

Hoje, quando se ouve falar em, por exemplo, flexibilização de direitos trabalhistas ou coisa que o valha, automaticamente, se está contrariando a própria essência do Direito do Trabalho – porque ele não foi feito para flexibilizar, mas para reconhecer direitos que as pessoas têm!

Voltando mais ainda no tempo, no pós-guerra, todos os regimes que se constituíram na Europa – fonte de onde nós bebemos muito do nosso conhecimento – formaram um novo tipo de estado.

Em troca da legalidade dos sindicatos, das convenções coletivas do trabalho e dos contratos coletivos, se criou um estado que veio a se chamar estado de bem-estar social.

As mudanças foram visíveis. Na Inglaterra, por exemplo, Winston Churchill, mesmo tendo comandado seu país à vitória contra os nazistas; mesmo resistindo; mesmo conseguindo derrubar o governo de Neville Chamberlain, para que este não capitulasse diante de Hitler; e, mesmo conduzindo os aliados, juntamente com Stalin e Roosevelt... Churchill perde as eleições para o Partido Trabalhista no imediato pós-guerra.

E por que isso aconteceu?

Porque o povo britânico compreendeu que, para a tarefa árdua da guerra, Churchill era extremamente capaz, sim; mas, reconstruir um país inteiro, isso era outra coisa.

Era preciso reconstruir um estado social, um estado inclusivo.

Em outras palavras e usando de uma metáfora, a Europa namorava a esquerda, mas não assumia. Não subia com ela ao altar; não permitia que ela chegasse ao poder. Mas, era o suficiente para que a esquerda influenciasse a feição do Estado.

Isso tem muito a ver com o Direito do Trabalho, porque ele é quem guarda essa função. Os sindicatos, na Europa do pós-guerra, passaram a ter voz ativa, passaram a ter importância na construção do desenvolvimento nacional, apostando em um projeto de civilização extremamente includente.

Antes da redemocratização brasileira, assistimos a Espanha passar por um percurso semelhante ao que veríamos passar aqui. Adolfo Suárez era, inclusive, advogado trabalhista, antes de tornar-se o primeiro presidente democrático após a ditadura de Franco. Pouco antes de assumir, Suárez recitou, em um discurso, versos do poeta espanhol Antonio Machado, exilado por conta do regime franquista:

Está o Hoje aberto para Amanhã”

Amanhã para o Infinito

Nem o Passado é morto

Nem o Amanhã nem o Ontem estão escritos”

Este Tribunal está, portanto, do alto dos seus 30 anos, aberto ao infinito.

Voltando à Espanha, o mais incrível da sua redemocratização é que Adolfo Suárez, mesmo tendo exercido vários cargos durante o regime franquista, foi capaz de reunir as diferenças e, até mesmo, os extremos políticos. Santiago Carrillo, líder comunista espanhol, definiu Suárez como um “anticomunista inteligente”.

Como vocês vêem, eram outros tempos, quando a inteligência reinava, soberana, sobre a ignorância; ignorância esta que se escondia covardemente, como hoje, sob o véu obscuro do radicalismo ideológico.

O advogado trabalhista Adolfo Suárez soube conduzir, na Espanha pós-Franco, o que a elite brasileira jamais quis – Suárez conduziu um pacto social, visando ao desenvolvimento do país, porque ele entendeu que, sem o reconhecimento das dívidas históricas, que as classes mais altas têm perante uma nação, jamais se conseguirá pacto algum, nem a nação conseguirá se desenvolver plenamente.

Houve exceções, claro. Durante o Governo Itamar Franco, o ministro do Trabalho, Walter Barelli, economista, oriundo do Dieese, até tentou; mas, infelizmente, as tradicionais forças refratárias brasileiras não admitiram – como hoje não admitem – o entendimento geral que inclua determinadas classes sociais que se encontram excluídas.

Por isso que, até no hoje, no Brasil, se namora com ideias que são, efetivamente, contrárias à história do Direito do Trabalho – como a flexibilização sobre a qual já falamos...

Mas, voltemos agora a um ponto, ainda importante, sempre importante, aliás, que é a Constituição Brasileira vigente de 1988.

Ela tem um artigo de extrema valia. É o artigo terceiro, que diz o seguinte:

Constitui objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil

I - Construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - Garantir o desenvolvimento nacional;

III - Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Vejam bem, quando se diz o que deve ser feito, é porque não existe, ainda, aquilo que deve ser feito!

Ou seja, não temos uma sociedade “livre, justa e solidária”; mas temos pobreza, marginalização e desigualdades.

Este artigo, terceiro, é considerado pelos maiores constitucionalistas do mundo um dos mais importantes, porque, ao ter uma cláusula transformadora, dialoga com a realidade. É como se dissesse:

essa realidade não nos interessa, nós temos que construir outra realidade, outra sociedade”.

Ao dialogar, então, com a sociedade, através desta cláusula, deste artigo, a Constituição Brasileira de 1988 se mostra capaz de promover um verdadeiro programa social, que vincula o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

José Joaquim Gomes Canotilho, português e um dos maiores estudiosos de Constituições do mundo, define a nossa Constituição como programática e dirigente, ao estabelecer um vínculo com a realidade e a união dos poderes em torno desta mesma realidade.

Mas, antes de entrarmos em detalhes sobre os elogios e, também, os poréns que o ilustre professor tece sobre a nossa Constituição, vamos ouvir suas palavras quanto às constituições em geral:

Existe uma Constituição mundial que é a Carta dos Direitos do Homem; ela protege o cidadão contra o poder do Estado, define os direitos fundamentais das pessoas e consagra a democracia como o regime ideal.”

Esta fala do professor Canotilho é de uma entrevista concedida na primeira década deste século, ao site brasileiro Consultor Jurídico.

É, também, um belo resumo do papel das Constituições, do papel do Direito na vida das civilizações.

E notem a ênfase que demos a palavra “civilização” e não “barbárie”.

Sim, porque, mais pra frente, nessa entrevista, José Gomes Canotilho nos lembra que uma das características das civilizações é que elas dialogam entre si, e que há países que não têm Constituição, optando, em seu lugar, por livros religiosos.

Nada contra a religião, absolutamente, mas, como diz o eminente jurista português,

É bom que haja uma Constituição dos homens, mas a Constituição não é uma Bíblia, assim como a Bíblia não pode servir de Constituição para povo algum.”

Fecha aspas.

Desculpem-nos se cito demais Canotilho, mas é impossível não beber, sofregamente, de suas palavras – elas nos matam uma sede que, muitas vezes, não sabemos nem mesmo que temos...

Então, prestemos atenção, ainda uma vez, sobre como ele nos enxerga:

A Constituição Brasileira foi um grito de modernidade ouvido trinta anos depois da criação de Brasília, em 1958, um estatuto de contraste com a ditadura da qual o país se libertou. É um texto assentado sobre os princípios da democracia representativa, garantidor dos direitos fundamentais, mas que nem por isso deixa de ser alvo de contestação, por englobar o trato dos problemas sociais do país, a articulação dos poderes regionais e dos conflitos políticos. É uma empreitada quase impossível. É, talvez, a mais complexa Constituição, em face do volume e do detalhamento. É um fator gerador de tensões e que desafia a dialética, mas que completa vinte anos consagrando a separação de Poderes.”

Na época, eram 20 anos, hoje, já são 34 anos!

E vamos convidá-los – a cada um de vocês aqui presente – que recordem como vocês eram aos 20 anos de idade... E depois, aos 30, aos 34...

Podemos dizer que o jovem estudante de Direito, que éramos, aos 20 – revolucionário, idealista, contestador – deu lugar, 14, 15 anos depois, a um advogado, ainda jovem, ainda revolucionário, ainda idealista, ainda contestador.

A propósito, Milton Nascimento, que está completando 80 anos e fazendo a sua última turnê mundial, respondeu, um dia desses, a pergunta se ele era um revolucionário... A sua resposta, que achamos genial, belíssima, e que tomamos emprestado, foi a seguinte:

Não. Revolucionário, não. Mas eu quero ser um revolucionário.”

Aos 30 anos, já éramos advogado, e como advogado aprendemos a enxergar a nobreza que existe no Judiciário. Nobreza, aqui, entendida não como um valor aristocrático – não, ao contrário!

Porque, é através, entre outros, do Direito do Trabalho, que o Judiciário fica mais nobre, se engrandece – porque participa da vida da nação, com o objetivo maior de entregar para as outras gerações uma sociedade melhor.

Então, hoje, ao celebrarmos o ingresso do Tribunal Regional do Trabalho na vida do Rio Grande do Norte, três décadas atrás, estamos relembrando que, por trás de tudo isso, de cada um desses 30 anos, existem muitas e muitas ideias, muitos e muitos ideais, muitas e muitas batalhas. E todas elas vitoriosos – uma vitória que é, justamente, da civilização sobre a barbárie.

Essa vitória é nossa, de todos nós.

E vai muito além deste prédio.

Vai na casa de cada um cidadão norte-rio-grandense; não apenas entre nós, doutores e doutoras da lei.

Hoje, mais do que nunca, não podemos permitir que a história nos seja negada, ou adulterada, ou esquecida.

Permitam-nos que lhes conte uma história, uma das tantas histórias da nossa trajetória como advogado, que, todos vocês, igualmente, têm as suas.

Certa vez, nos procurou, no escritório, um rapaz, bancário, 22 anos, vindo do interior – a sua demissão coincidiu com a descoberta de que era portador do vírus HIV.

Esse rapaz não tinha mais para onde voltar. Anos antes, tinha sido posto pra fora de casa por ser homossexual.

O escritório entrou com uma ação, alegando discriminação, o juiz concedeu a liminar e o empregado foi reintegrado.

Após essa vitória, ele volta a nos procurar, desta vez para agradecer e nos confidencia: caso não tivesse obtido a liminar, já tinha se organizado para tirar a própria vida...

Nós, meus colegas e eu, ficamos, obviamente, comovidos, tocados. E pedimos a ele que procurasse, também, o juiz que concedeu a liminar, porque, já então, percebíamos que, muitas vezes, os juízes, pela própria natureza do seu trabalho, não têm a oportunidade deste contato mais íntimo, que nós advogados temos o privilégio de ter e, assim, muitas vezes, não veem o alcance de suas decisões.

Esse rapaz não teve apenas o emprego de volta – teve a própria vida, restituída.

Outro caso singular foi o de um cidadão, cuja causa vitoriosa se traduziu em números numa quantia bem razoável, o equivalente a, hoje, cerca de 500 mil reais. Também, ele voltou ao escritório para nos agradecer... infelizmente, é preciso que se diga que esta não é a regra...

Mas este cidadão volta, pra nos agradecer – e não apenas: ele nos presta conta, em detalhes, como estava aplicando o dinheiro que tinha recebido. Um dos destinos era para a filha fazer a faculdade de medicina. E nos apresenta, então, a moça, acrescentando:

Indiretamente, são vocês, o trabalho de vocês que está financiando o sonho dela, que é o meu sonho também”.

Então... é disso que estamos tratando aqui, é sobre isso essa comemoração!

É sobre dar às pessoas acesso à Justiça e dar condições, ao Judiciário, como um todo, para que ele resolva, para que ele conclua os processos e modifique, assim, definitivamente, a vida das pessoas que batem à nossa porta.

Porque foi por isso que eles, elas vêm até nós e batem à nossa porta.

Cabe a nós, abrir ou não essa porta; cabe a nós, convidar ou não essa pessoa, carente de justiça, para que entre e se sinta incluído num mundo que não pode mais ser dividido entre nós e eles...

Isso nos faz lembrar que, certa vez, Eduardo Galeano e um seu amigo, diretor de cinema argentino, estavam sendo entrevistados por estudantes de uma universidade em Cartagena das Índias, na Colômbia.

Um dos estudantes levanta e pergunta ao amigo, não a Galeano... “Pra que serve a Utopia?”

Galeano fica, assim, quase... “escapei dessa”...

Mas o amigo responde, de um modo que Galeano considera exemplar...

A Utopia está no horizonte; eu sei muito bem que nunca a alcançarei; que se eu caminho dez passos, ela se afastará dez passos; quanto mais a procure, menos a encontrarei, porque ela vai se distanciando à medida que eu me aproximo. É uma ótima pergunta – pra que serve afinal? Pois, a Utopia serve pra isso – pra que eu caminhe.”

Devemos, pois, todos nós, caminhar, sem perder de vista o horizonte, o norte de cada um. Que, no caso do Direito do Trabalho, é a inclusão social.

Muito obrigado.

quinta-feira, 2 de junho de 2022

O sonho não acabou

DO CONTRA

Costuma-se chamar de ‘Contracultura’ ao movimento social focado principalmente nas transformações da consciência, dos valores e do comportamento, na busca de outros espaços e novos canais de expressão para o indivíduo e pequenas realidades do cotidiano, através da mudança de atitude e do protesto político. 

Seu ideário combina bandeiras diversas: ecologia; vida comunitária; luta contra as guerras, conflitos e qualquer tipo de repressão; dieta vegetariana; respeito às minorias raciais e culturais; experiência com drogas e viagens psicodélicas, liberdade sexual e amorosa, anti-consumismo; aproximação das práticas religiosas orientais, principalmente do budismo; crítica radical aos meios de comunicação de massa como, por exemplo, a televisão; discordância com as formas tradicionais de autoridade política ou religiosa e com os princípios da economia de mercado – entre outras características. 

A revolução cultural na China; o boicote ao recrutamento para guerra do Vietnã nos EUA; a primavera de Praga na antiga Tchecoslováquia; as barricadas do desejo em Paris; a luta contra ditadura militar no Brasil e em outros países da América Latina – esses eventos tiveram em comum o fato de terem sido protagonizados por jovens, ao mesmo tempo, em escala global, sem nenhum tipo de comunicação entre eles. E deixaram como saldo a cultura rebelde do rock, a libertação parcial das mulheres e a industrialização completa da cultura pela mídia. Edgar Morin (1997) é um dos que melhor descrevem esse cenário rebelde de transformação social. Porém, no campo das ciências humanas, os grandes expoentes da Contracultura foram Foucault, Deleuze e Guattari. A crítica pós-moderna desconstruiu Marx, Freud e o estruturalismo; quebrou ainda mais as formas de pensamento positivista e racionalista; e abriu novos horizontes teóricos e filosóficos. Mas a Contracultura não foi apenas um evento que aconteceu em 1968. Ela continua viva até nossos dias (GOFFMAN, 2007). 

Nessa perspectiva, a contracultura é um espaço contra hegemônico dentro do regime de centralidade dos meios de comunicação, que se iniciou em escala global, no final dos anos 60. Um espaço de contestação e crítica dentro do sistema, que forma vanguardas estéticas e políticas, para excelência e reciclagem do próprio sistema. E esse espaço também está diretamente ligado à juventude. Ou às diferentes gerações de jovens pós anos sessenta. Um espaço que tem um papel de formação de elites. Então, a contracultura é uma ‘heterotopia midiática’, um espaço contra hegemônico permanente dentro do regime de centralidade da mídia, voltado para formação de quadros sociais. Mas, o que é exatamente o ‘regime de centralidade da mídia’?

O pensamento marxista, quando se refere ao conjunto da sociedade, distingue a existência concreta dos homens de suas formas de consciência social. A existência concreta equivale à ‘infraestrutura econômica’ e às ‘forças produtivas’ resultantes da interface entre os homens e a natureza; e as formas de consciência social, à ‘superestrutura social’ e às relações dos homens entre si, à luta política e cultural entre as classes sociais. Como pensador dialético, Marx acredita que infraestrutura e superestrutura se condicionam mutuamente, mas, que, ‘em última instância’, são as necessidades humanas que predominam sobre seus hábitos e costumes. As mudanças sociais, nessa perspectiva, ocorrem inicialmente na infraestrutura produtiva; e, em um segundo momento, nas esferas reprodutivas das condições de produção: a superestrutura. 

 Para defender marxismo de ataques de pensadores weberianos – que o acusam de ‘mono causal’ em sua ênfase econômica e advoga o pluri-determinismo de outros fatores estruturais (religiosos, políticos, culturais) – Louis Althusser (1979) propôs uma adaptação de uma categoria lacaniana: a ‘sobre-determinação estrutural’ ou a determinação em ‘primeira instância’. Ou seja: há fatores que são determinantes aparentemente ou em um primeiro momento (como a religião); mas a determinação final continua sendo orientada pelos interesses econômicos coletivos e individuais. 

A ‘centralidade da mídia’ pode ser definida, nessa perspectiva meio marxista meio psicanalítica-estruturalista, como uma sobre-determinação estrutural dos fatores ideológico e cultural produzidos artificialmente. A mídia tornou-se mediadora central das relações sociais. Assim, é possível que hoje a informação determine o preço dos produtos e até o valor acionário das empresas, sem que isto se constitua em um rompimento com a lógica da mercadoria e com o capitalismo. É o “capitalismo informacional” – proclamado por Manuel Castells (2000). 

Há outros modos convergentes de se definir a centralidade da mídia. Jürgen Habermas (2003, 2012) acredita que a imprensa livre levou a um alargamento da esfera pública burguesa, democratizando-a. Já Stuart Hall (2005) resgata parcialmente a noção gramsciana de ‘Hegemonia’ para associá-la à de ‘Identidade Cultural’. John Thompson (1995, 1998) imagina uma democracia mediada, em que os meios de comunicação, centralizando informações econômicas e políticas, possam mediar as relações entre o estado, o mercado e as pessoas. De uma forma ou de outra, a centralidade dos meios de comunicação institui um regime social de hipervisibilidade (de algumas pessoas, entidades e situações em detrimento de outras) e de simultaneidade de tempo-espaço (incluindo o surgimento de uma audiência não-presencial permanente).

Porém, no campo das ciências humanas, os grandes expoentes da contracultura foram Foucault, Deleuze e Guattari. Incorporando a perspectiva epistemológica da física contemporânea, o pensamento pós-moderno imagina um universo de partes sem todo, um contínuo de tempo-espaço sem determinismos estruturais, em que tudo se condiciona e é relativo ao observador.

Foucault e Deleuze descrevem a passagem das instituições de confinamento e disciplina (do adestramento individual do corpo a rotinas) para uma sociedade de controle em redes a céu aberto, através de “cifras e senhas”. Sociedade de controle se tornaria possível ainda graças ao comportamento instituído pelo regime da “moratória ilimitada’ – um aperfeiçoamento cibernético da culpa cristã – uma obsessão psicológica pelo ressarcimento da dívida social individualizada.

Hoje, com a implosão da cultura de massas promovida pela segmentação interativa da internet, a realidade social descrita pelos pós-modernos há muitas décadas tornou-se mais evidente e a ‘centralidade da mídia’ se tornou ainda mais complexa e fragmentada, se multiplicando e dividindo de diferentes modos e formas, pulverizando a visibilidade em universos culturais variados e paralelamente simultâneos. O próprio termo ‘pós-moderno’ significa que a contracultura acabou com a modernidade – o que pode ser interpretado de várias formas e modos.

Pierre Levy (1993), por exemplo, considera que as sociedades tradicionais anteriores à escrita se caracterizavam por um modelo de interação ‘um-um’, em que o emissor e receptor partilhavam de um único contexto e vivem em um tempo cíclico. Para ele, as sociedades modernas se caracterizam pela interação unilateral ‘um-muitos’, um contexto de transmissão e muitos de recepção. A escrita gerou a história, a noção de tempo contínuo e linear e a ilusão do observador externo. E as sociedades atuais em rede, segundo Levy, se organizam elo modelo de interação ‘muitos-muitos’, em que todos transmitem e recebem, havendo um retorno ampliado ao contexto único dos interlocutores e à percepção de tempo simultâneo.

Já outros autores como Anthony Giddens (2003) consideram que a modernidade não acabou, apenas entrou em um estágio mais avançado de reflexibilidade. Para ele, a tradição é uma reflexibilidade entre o passado e o presente; e a modernidade, uma reflexibilidade entre o presente e o futuro. Com a contracultura, entramos em uma sociedade de risco (individualizando vidas em aventuras), em que a realidade moderna se globaliza ainda mais em relação aos bens simbólicos, hoje industrializados através da mídia por idioma.

 O certo é que tanto para os que pensam a sociedade atual através de centralidade da mídia na produção de bens simbólicos, quanto para os que acreditam no fim da modernidade, a contracultura é um marco histórico de várias mudanças sociais, não apenas em relação à interferência da comunicação no cotidiano, mas também em relação ao meio ambiente e ao universo feminino.