quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Lenin, um olhar anarquista

 O QUE NÃO FAZER

Lenin é um pensador político subestimado. Ele, no entanto, criou toda uma forma de fazer e pensar sobre comunicação e política (no Que Fazer, principalmente) que até hoje é utilizada.

Como fazer uma análise de conjuntura, por exemplo. Primeiro, é preciso fazer uma análise da estrutura (da formação histórica e econômica das classes), onde se determinam as estratégias; para depois fazer uma análise de conjuntura (do conjunto das instituições naquele determinado momento, da superestrutura social), onde se escolhem as táticas. 

E a conjugação das táticas com a estratégia é a dialética da ação política. Lenin demonstra que a tática da frente ampla pela democracia, por exemplo, se conjuga com a estratégia socialista de um governo dos trabalhadores. A democracia é uma tática para ditadura do proletariado estratégico - defende o arquiteto da revolução no livro As duas táticas da Social-democracia.

Para cada estratégia, várias táticas são possíveis. Reforma agrária é estratégia, as táticas. agricultura familiar, a formação de sindicatos rurais, a aliança com agro negócios, etc. 

As estratégias devem ser visualizadas (escritas em cartazes e faixas); as táticas devem se tornar sonoras, 'palavras de ordem' para serem gritadas nas manifestações de rua, elas são comandos de ação coletiva. 

A ideia de partido extraparlamentar, que organiza os movimentos sociais e atua por dentro das organizações, também é de Lenin e até hoje é praticada pelo PT, PC do B e PSOL. Essa prática aparelhista (do partido se apropriar de uma organização) hoje é chamada de 'leninismo'. 

Em seu livro mais importante, O Estado e a Revolução, escrito antes de tomar o poder, Lenin nos deixa seu legado mais significativo. Na primeira parte, ele cria a ortodoxia marxista-leninista, argumentando simultaneamente contra a direita pragmática (a social-democracia menchevique, cuja a estratégia se resumia a chegar a um governo democrático de forças progressistas) e a extrema-esquerda idealista (o anarquismo cuja estratégia era chegar imediatamente a uma sociedade sem estado). Para ele, os mencheviques não tinha uma proposta histórica estrutural, só tinham tática imediata; e os anarquista, ao inverso, não tinham uma política realista apenas um objetivo final. 

Porém, apesar de combater os anarquistas, na segunda parte do livro, Lenin sonha com uma república em que os trabalhadores se organizem livremente, em que a polícia e o exército seriam substituídos pelo povo armado e que os sovietes seriam as organizações dos trabalhadores que substituiriam os três poderes burgueses. Uma verdadeira utopia anarquista. 

No entanto, nada foi escrito sobre como os bolcheviques se tornaram o único partido dentro dos sovietes. 

sábado, 17 de dezembro de 2022

democracia gamificada

 


A GAMIFICAÇÃO DA DEMOCRACIA



Introdução

Para Rousseau, democracia não é para os homens. Somos violentos, passionais e mentirosos. A democracia é um governo para os deuses. A verdadeira relação da democracia com os jogos olímpicos não é que essa forma de governo se assemelhe ao jogo pela regra que se deve respeitar, mas porque ambos exigem dos participantes a superação de seus limites em um constante aperfeiçoamento, porque em ambos os homens aspiram a ser deuses.

Há uma grande semelhança entre a democracia e os jogos, em suas origens. Mas, exatamente em que? Ambos são processos de tomada decisões em comum? Regimes em que se mantem a unidade sem perder a diversidade? Há algo maior e mais interessante: tanto a democracia como os jogos exigem a superação individual e coletiva das dificuldades; ambos obrigam os homens a dar o melhor de si, domesticando o ruído através da consciência. A democracia e os jogos devem nos levar a ser o melhor possível.

Há uma narrativa clássica (BOBBIO, 2000a, p.171), em que o príncipe persa Otane pergunta a um de seus mais versados sábios sobre qual a melhor forma de governar seu reino. O sábio, então, enumera três formas de governo: o governo de um (a monarquia), o governo de poucos (a aristocracia) e o governo de muitos (a democracia); que tanto podem funcionar bem e serem formas justas de governar como também podem degenerar em injustiças e desperdícios, dependendo de seus governantes. O governo de um ou monarquia se for ocupada por um rei ruim se torna uma tirania; a aristocracia (ou “o governo dos melhores” de Platão), através dos privilégios e do nepotismo, se transforma em oligarquia; a democracia (ou o governo pela maioria), sem espírito público, se fragmenta em anarquia individualista em que cada um defende seu interesse ou ainda descamba para oclocracia (o governo da plebe).

Bobbio (2000a) usa essa antiga narrativa para defender a ideia de que o bom governo é o governo das leis e não o governo dos homens. Com leis, até as monarquias e aristocracias são justas, pois a justiça independe das virtudes e defeitos dos governantes. Já a democracia, principalmente a democracia moderna, é o governo das leis por excelência. Bobbio aproxima as ideias de ‘governo dos homens’ e de ‘governo das leis’ às noções weberianas de legitimidade carismática e de legitimidade legal, dando a entender que fazem parte do mesmo processo histórico de secularização das tradições, em que a democracia é meia-irmã da burocracia.

A democracia dos antigos era direta; a democracia dos modernos, representativa. Como será a democracia no futuro?

As promessas não cumpridas

Bobbio não crê na volta da democracia direta através das redes digitais de computadores, em que cada cidadão vota em sua casa sobre quaisquer assuntos de seu interesse, mas sim que vivemos uma passagem gradativa da democratização do Estado à democratização da sociedade e das instituições (da escola, da fábrica, dos bairros). Esta democratização da sociedade civil começou com o movimento da contracultura em 1968 e se consolidou com a queda do muro de Berlim em 1989. E a mídia teve um papel pedagógico importante durante essas últimas décadas.

Giddens chama este processo histórico institucional de “democratização da democracia”, miniaturizando ainda mais a ideia de democracia, entendida agora não como uma 'forma de governo', mas como um método de relacionamento entre pais e filhos, entre grupos de amigos, entre marido e mulher (GIDDENS, 2003, p.61).

Explico-me melhor: a democracia como método não consiste simplesmente na regra de maioria (pois assim seria impossível existir democracia entre duas pessoas com interesses diferentes, como professor e aluno, por exemplo), mas sim no novo contratualismo, isto é, na negociação dos interesses divergentes e das próprias regras de negociação. A democracia vista desse modo não é o predomínio formal do consenso sobre o dissenso, mas na transformação substancial dos conflitos em diálogos produtivos dentro de uma unidade de ação. Assim, como método, a democracia não é 'uma decisão coletiva através da regra da maioria', mas a tomada de decisões através das regras negociadas entre os diferentes pontos de vista que formam uma organização.

E então a questão central desta democracia negociada é: como criar o mínimo de regras que garantam a cada um segundo seu esforço e capacidade tanto do ponto de vista quantitativo como no aspecto qualitativo. Para que as instituições gozem do máximo de autonomia em relação ao Estado e em que os indivíduos desfrutem do máximo de autonomia pessoal em relação às instituições não basta que se garanta direitos iguais a todos, é preciso também tratar todos como pessoas especiais. Pois é na diversidade e na autonomia das relações entre os grupos sociais e os indivíduos que repousa hoje a possibilidade de uma democracia cada vez mais múltipla, complexa e produtora de singularidades.

Em O Futuro da Democracia, Bobbio (2000a) estabelece um marco teórico em relação à compreensão desta democratização das relações humanas. Nele, evitando fazer projeções apressadas sobre o destino da democracia contemporânea, Bobbio investiga suas “promessas não cumpridas”, isto é, aquilo que as democracias representativas gostariam de ser idealmente, mas que efetivamente não são.

São seis promessas não realizadas:

  • A democracia política prescinde de uma democracia social. A democracia representativa promete se realizar através das eleições para o parlamento e para os cargos executivos, mas nas últimas décadas ficou claro que, para sobreviver e se desenvolver institucionalmente, ela precisa reinar também a sociedade civil.

  • Na democracia, todos governem todos, igualitariamente. Mas, o pluralismo dos grupos acaba com a democracia dos indivíduos. A democracia moderna nasceu de uma concepção individualista de sociedade, em que a vontade coletiva é produzida pela regra de maioria e acatada por todos formando uma unidade de ação “de forma centrípeta ou monocrática”. Porém vivemos uma policracia, em que os grupos (e não os indivíduos) lutam para preservar seus interesses. Um conjunto de oligarquias ou de corporações profissionais é uma sociedade pluralista, mas não é democrática.

  • A democracia promete defender o interesse público, mas apenas negocia acordos dos interesses privados. Há uma flagrante contradição entre a representação do interesse público (da vontade da maioria) com a representação dos interesses privados em diferentes níveis. A democracia parlamentar (e seus representantes eleitos) promete defender o interesse público da maioria, mas há na verdade defendem os interesses regionais, corporativos e pessoais.

  • A democracia promete acabar com os privilégios das elites, tratando todos os indivíduos de forma igual, mas há uma persistência das oligarquias e do tratamento desigual. Há inclusive conservadores que defendem ser democrático tratar desigualmente os desiguais e que todo igualitarismo político é invariavelmente autoritário.

  • A democracia promete ainda educar o povo para cidadania, transformando súditos em cidadãos, aumentando a participação ativa de todos sobre tudo. Mas, o que se constata é a crescente apatia política dos jovens de melhor instrução e renda.

  • A democracia promete acabar com o poder invisível. Na monarquia, o segredo em torno do rei era a regra e a exceção era a visibilidade. A coroa, o trono, o castelo – signos da visibilidade real escondiam a opacidade da vida cotidiana. Nas democracias, a transparência é a regra e o segredo, a exceção. O poder do soberano imitava o de Deus, que é invisível e tudo vê; o poder democrático ao contrário se baseia na visibilidade total do governante por pessoas que ele não vê. No entanto, apesar desta inversão de perspectiva, a democracia convive com um ‘governo duplo’ em que ao lado da esfera visível pela mídia, se desenvolve toda uma política de bastidores. A transparência não venceu a privacidade dos acordos particulares.

Mas apesar destas “promessas descumpridas”, em nenhum momento Bobbio desiste do regime democrático como a melhor (ou, por baixo, “a menos pior” – como disse De Gaulle) forma de governo. Sua crítica visa antes levantar as deficiências institucionais e os pontos fracos da democracia para tentar desenvolvê-la.

Mas, o que nos interessa é saber qual papel os meios de comunicação desempenham nesta democratização social da democracia política representativa?

A espetacularização da política

Jurgen Habermas (1984, 2012a, 2012b) nos traz três temas conexos: a ampliação da esfera pública pela sociedade civil; a “ação comunicativa” diferenciada da “ação instrumental” e da “ação estratégica”; e a “democracia deliberativa”. Habermas entende que a racionalidade instrumental é a lógica objetiva das coisas, a ação determinada pela infraestrutura econômica; a racionalidade estratégica dos sujeitos individuais e coletivos corresponde a ação política e seus condicionamentos superestruturais; e a ação comunicacional é a esfera da intersubjetividade coletiva e da interação inconsciente, que está sujeita simultaneamente às racionalidades instrumental e estratégica.

A noção de democracia deliberativa é a união da ação comunicativa com a racionalidade estratégica contra a razão instrumental, ou a ampliação da esfera pública pela sociedade civil contra o mercado. A aproximação dos campos da política e da comunicação acabou provocando o fenômeno que os analistas chamam de 'espetacularização da política'.

O campo político é o lugar em que se geram, na disputa entre os agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas, programas, análises, comentários, conceitos e eventos, entre os quais os cidadãos comuns são chamadas a debater e decidir, durante as eleições. É, portanto, um campo fechado (em que seus agentes internos interagem na maioria do tempo), que se abre sazonalmente a todos, durante os breves momentos eleitorais.

O Campo da Mídia é o ambiente de visibilidade simultânea, que funciona segundo suas próprias regras e subverte a lógica de premiação de outros campos. A mídia ocupa uma dupla posição em relação à estrutura social, ela é tanto um Campo próprio (em que os atores sociais debatem seus problemas) como também um agente no Campo Político mais geral.

Graças a essa ambiguidade funcional, os meios de comunicação são 'meta jogadores', que 'bancam' a democracia. Os meios de comunicação são instituições políticas de mediação das elites com o público, mas não substituem os governos, os parlamentos, os partidos e os demais atores políticos - apenas se sobrepõem a eles, 'dando as cartas do jogo', selecionando e interpretando todas as informações de um campo para os outros.

O resultado imediato dessa ambiguidade institucional é que, enquanto há abordagens midiafóbicas, que enfatizam o aspecto negativo das mudanças, ressaltando o campo social como o conjunto da esfera pública e a mídia como um agente social nefasto; outras, midiafílicas, percebem apenas o aspecto positivo, enfatizando a mídia como um campo aberto para o diálogo direto entre os agentes políticos e o público.

A maioria dos autores contemporâneos postula uma posição intermediária: os campos da Política e da Comunicação se interpenetram numa relação recíproca, mais ambos preservam suas especificidades; nem a política se dilui frente ao efeito da mídia, nem a mídia é um mero instrumento da política ou alienação social. Observando a inter-relação entre os dois campos podem-se localizar vários elementos: a) o que há de político na comunicação (o subcampo jornalístico); b) o que há de comunicação na política (a imagem pública e a propaganda política); c) o que há na política que não está na comunicação (a negociação invisível); d) o que há na comunicação que não está no campo político (o simbolismo aparentemente apolítico do mundo do entretenimento).

A política se midiatizou, passando a se organizar pela gramática dos meios de comunicação (com ênfase na novidade, no inusitado e em padrões estéticos), produzindo uma cultura centrada no consumo de imagens, gerando novas competências, como marketing (que adapta a política às preferências do público através de pesquisas) e semelhança aparente entre a opinião pública e o mercado consumidor.

Pode-se dizer, no entanto, que os campos da comunicação e da política estão em convergência, que sua intercessão está aumentando ('a implosão da esfera pública' prevista por Habermas) e que as áreas em que os campos mantem sua própria lógica tendem a diminuir (com a transparência virtual das negociações hoje invisíveis e com a 'politização' de celebridades, atletas e artistas). Vários autores contemporâneos chamam essa convergência de 'espetacularização da política' e consideram que a política tornou-se mais teatral.

O resultado? O crescente desinteresse do público mais informado; o caráter artificial da opinião pública; a perda de autenticidade dos agentes e das instituições de representação política; a substituição parcial dos partidos e das instituições políticas representativas pelos meios de comunicação no debate e na defesa dos interesses da população. E, principalmente, o aumento exponencial do risco (de colapso do sistema político da democracia parlamentar) e a ‘gamificação’ da política, em que os atores disputam as apostas do público.

A democracia gamificada pelo mercado

A convergência entre os campos da comunicação e da política é ainda insuficiente para explicar o fenômeno da gamificação da democracia, surgindo a necessidade “de um terceiro convidado”: o mundo dos negócios (GOMES, 2004,129).

Essa ampliação sociológica extrapola o âmbito da perspectiva discursiva, permitindo um ângulo mais abrangente por um lado. E, por outro, o mercado é quem gamifica a esfera pública e a sociedade civil, investindo na competição de seus agentes. O jogo social é travado agora em três campos: o econômico, o político e o psicocultural. A interação convergente entre a mídia e a poder público promove uma política mais teatral. O mercado reage (a essa aproximação e a apatia política resultante) com a ideia de gamificação da democracia.

Nos anos 90, a ideia de democracia deliberativa - estruturada em um tripé entre o Estado (o campo da igualdade jurídica), o Mercado (o campo desigualdade econômica) e a Sociedade Civil (o campo das comunidades) - será retomada por Anthony Giddens e John B. Thompson. Porém, ao invés de pensar ação socialmente estruturada, os autores contemporâneos pensam em práticas sociais que se reproduzem e não acreditam que na secularização absoluta das tradições, mas que a modernidade convivem com o poder simbólico de modo diferente.

Thompson aponta que os meios de comunicação passaram a mediar a percepção entre tempo e espaço, estabelecendo uma centralidade em relação as outras instituições. A mídia na modernidade sequestrou o 'lugar da fala' da autoridade pública e religiosa. Na pré-modernidade, a informação era distribuída unicamente a partir dos estados e das igrejas. Ao se estabelecerem instituições de mediação com autonomia relativa, o 'monopólio da fala' foi terceirizado. Assim, a mídia é, ao mesmo tempo, um campo para o diálogo entre os atores políticos e o público; e também mais um ator político invisível com interesses próprios em um contexto social mais amplo, que seleciona, hierarquiza e dá visibilidade aos acontecimentos históricos. Os meios de comunicação, assim, desempenham um duplo papel: por um lado, organizam as identidades simbólicas através de narrativas neo-tradicionais; e, por outro, constroem de modo parcial e simplificado a realidade social que contextualiza a vida dos atores visíveis.

Para Giddens, a tradição tradicional é voltada para o passado, para repetição de ciclos históricos; e a modernidade inicia uma nova concepção de tempo espaço em que a reflexividade é voltada para o presente e para o futuro. A modernidade gera ‘bolhas’ tradicionais, mas no geral, produz incerteza pela pluralidade de opções que oferece. Essa falta de certeza e de segurança, aumenta ainda mais a reflexibilidade tanto da simulação de situações de risco como da invenção de ‘novas tradições’ através das mídias. A democracia, assim vista, não é um mito do discurso político, ela é 'a' utopia (o projeto de uma sociedade perfeita sempre inacabada) por excelência. Os mitos estão sempre ancorados no passado imemorial, na tradição, na origem anterior à história; a utopia, ao contrário, está projetada no futuro, em um tempo que ainda não chegou no 'fim da história' (MIGUEL, 2000).

E, no presente, na reflexibilidade moderna, a democracia real é sempre imperfeita e imprevisível, arriscada e contra manipulada pelo poder simbólico. 'Contra manipulada' porque, apesar de parecer anti-tradicional (por apostar no risco, no futuro, na incerteza), a democracia é contextualizada culturalmente por elementos simbólicos. E 'Democracia', lembremos, não apenas como uma forma de governo ou como predomínio formal da maioria, mas como método de tomada de decisões através das regras negociadas entre os diferentes pontos de vista que formam uma unidade de ação. A democracia como método de decisões coletivas implica ainda em levar em considerações os sentimentos, os próprios e os dos outros. A família se des-tradicionalizou, mas também se democratizou emocionalmente. Daí a noção de ‘democracia emocional’, que leva em conta bem estar de si e do outro. O risco produz comportamentos individualistas. Nossa cultura promove o máximo de autonomia dos indivíduos. Desafiamos a morte para nos tornarmos pessoas melhores, com corpos mais capacitados e mentes mais disciplinadas.

Segundo Giddens, a única saída para democracia é se democratizar ainda mais, fazendo com que todos sejam autônomos e responsáveis através de políticas públicas contra a dependência, seja química, familiar, emocional, econômica ou cultural. Porém, quanto mais as pessoas conquistam autonomia individual; menos eles querem participar das decisões coletivas – eis o paradoxo da democracia. Ao mesmo tempo, que a sociedade nos faz mais individualizados, são justamente essas pessoas mais individualizadas (os jovens de maior poder aquisitivo e escolarização, em um primeiro momento, mas é uma tendência que se alastra pela sociedade através da internet) que se recusam a participar da política, considerando-a antidemocrática. O paradoxo da democracia de Giddens é semelhante ao equilíbrio de Nash. Modelo matemático em que apesar dos participantes não cooperarem, é possível que a busca individual da melhor solução conduza o jogo a um resultado estável, não havendo incentivo para mudanças. Ou seja: o governo dos piores, perpetuado pela corrupção e pela omissão dos melhores e da maioria. Sim, porque a baixa participação incentiva que os mais ambiciosos e injustos perdurem.

Conclusão

O discurso político atual se organiza pela gramática específica da linguagem da mídia, com ênfase na novidade, no inusitado e em padrões estéticos. O marketing adapta o discurso político às preferências do público através de pesquisas e se baseia na similitude entre audiência e eleitorado (ou entre a opinião pública e o mercado consumidor). E não se trata apenas do discurso político (mediado), mas a política entendida como prática social passou a se orientar parcialmente pela lógica da visibilidade midiática e de seu capital simbólico.

Entre os analistas que reconhecem a centralidade da mídia na sociedade atual, duas atitudes extremas são possíveis: a que crítica a espetacularização da política, a perda do caráter ideológico do debate político e que a mídia tornou o processo eleitoral em um espetáculo entre outros espetáculos desportivos, culturais e científicos; que os eleitores votam nas imagens dos candidatos (e não mais em suas propostas) e se comportam como se apostassem em jogo de azar - posição mais frequente entre os cientistas políticos. E a atitude que crê em um novo fazer político midiático, acreditando na pureza do diálogo entre eleitores e candidatos e que não há manipulação da mídia - posição típica dos pesquisadores da área de comunicação social.

Para Sartori, a linguagem da televisão, baseada em imagens superficiais e fragmentadas, anula o pensamento crítico, é a Vídeopolítica (2001). A TV está alterando o antropos humano, estamos passando do Homo Sapiens para o Homo-vídeo, em que a representação visual substitui a capacidade de tomar decisões racionais. Sartori lamenta o declínio dos partidos políticos, das plataformas programáticas e o crescente personalismo dos candidatos.

Em contrapartida, existem também os que não acreditam na desfiguração da vida pública, mas sim na emergência de uma nova forma de representação política, com cidadãos mais informados e mais volúveis, dispensando a mediação de partidos políticos. O personalismo crescente, apesar de negativo, é entendido como uma nova forma de agregação das identidades coletivas em um novo contexto social. Precisamos de novos heróis, de protagonistas sociais, de que a mídia faça uma valorização dos agentes políticos. Essa perspectiva é otimista em relação à gamificação da democracia.

Essa perspectiva, no entanto, é completamente utópica. Na verdade, hoje há uma cadeia de realimentação mútua, em que o desinteresse dos eleitores permite o triunfo dos políticos ruins e este triunfo reforça o desencanto do eleitorado. Há um círculo vicioso na política e a democracia representativa tende a se tornar um show sem graça.

Por outro lado, aperfeiçoar a democracia, torná-la mais próxima de seu modelo ideal é uma tarefa permanente e sempre inacabada dos meios de comunicação. Há potencialmente um círculo virtuoso latente, permanentemente disponível para ser executado. A democracia se articula com 'a questão da racionalidade', ou seja: como romper com um equilíbrio indesejável (ou círculo vicioso) e substituí-lo por um equilíbrio auto impositivo justo e equitativo, em que “cada um faça o melhor de si dado o que os outros fazem” e isso resulte em uma otimização crescente do funcionamento deste equilíbrio dinâmico (ou círculo virtuoso).

O certo é que nada acontece 'naturalmente'. A democracia só funcionará através da participação crescente de todos.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOBBIO, Norberto. O futuro da Democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000.


_____ Direita e Esquerda. São Paulo: UNESP, 2001.


GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. 1ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 1991.


_____ O Mundo em descontrole. RJ: Record, 2003.


GOMES, W. Transformação da Política na era da comunicação de massa. SP: Paulus, 2004.


MIGUEL, L. F. Mito e Discurso Político. 2000. Doutorado em Ciências Políticas. Unicamp, SP.


SARTORI, Giovanni. Homo videns – televisão e pós-pensamento. Bauru, SP: EDUSC, 2001.


THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna. Petrópolis: Vozes, 1995.


______A mídia e a modernidade – uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.


_______O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Petrópolis: Vozes, 2002.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

'teorias' do jornalismo

 


As “teorias do jornalismo”, que são procedimentos metodológicos acoplados a formas sofisticadas de análise de conteúdo da mídia: a agenda settings (como e quando a agenda da mídia pauta a vida cotidiana); a teoria do gatekeeper (como os acontecimentos são filtrados, definindo o que deve ou não ser publicado); a teoria do newsmarking (os critérios de escolha e hierarquização das notícias ao longo do tempo); e a teoria espiral do silêncio (o que não está sendo dito e mostrado pela mídia).

Agenda-setting – Metodologia que compara as agendas da mídia, das pessoas e das autoridades públicas sob dois aspectos: a ordem do dia dos temas, assuntos e problemas; a hierarquia de importância e de prioridade pela qual esses elementos são dispostos.

Os gatekeepers (selecionadores de notícias - editores) - zonas de filtro controladas por sistemas objetivos de regras ou por gatekeepers (pessoa ou grupo que tem o poder de decidir se deixa passar a informação ou se a bloqueia); na seleção e na filtragem de notícias, as normas ocupacionais, profissionais ou organizacionais parecem ser mais fortes do que as preferências pessoais; seleção como processo hierárquico, ordenado e ligado a uma rede complexa de feedback; mais do que recusa ou aceitação, inclui todas as formas de controle da informação - codificação, edição, difusão, programação, etc.

Newsmaking (critérios de noticiabilidade) - Quais acontecimentos são suficientemente interessantes, significativos e relevantes para virarem notícia? 1) Importância - determinada por quatro variáveis: a) grau e nível hierárquico dos envolvidos no acontecimento noticiável; b) impacto sobre a nação e sobre o interesse nacional; c) quantidade de pessoas envolvidas; e d) relevância do acontecimento e suas implicações futuras. 2) Interesse - determinado por fatores subjetivos. 3) Produto - disponibilidade, brevidade, atualidade, frequência, qualidade, importância, ineditismo, equilíbrio. 4) Meio de comunicação, qual repórter, com que recursos, formato, frequência; 5) Público - compreensão, adequação da linguagem. 6) Concorrência - o furo, fragmentação, expectativas recíprocas, referência.

Mais que hipóteses explicativas do comportamento da imprensa, as “teorias” do jornalismo são técnicas de coletas de dados que podem ser aplicados à mídia: pode-se estudar o agendamento de hábitos e roupas em uma telenovela, ou aplicar a noção de gatekeeper ou newsmarking à seleção de músicas de uma determinada rádio, ou identificar espirais do silêncio em torno de temas tabus em um reality-show.

terça-feira, 6 de dezembro de 2022

dupla consciência

 

IDENTIDADE CULTURAL E DUPLA CONSCIÊNCIA

Marcelo Bolshaw Gomes1


Introdução

A noção de 'dupla consciência' surgiu em um contexto de luta contra o racismo no livro The souls of black folk, de 1903 (DU BOIS, 1970) e até hoje é importante para definir a situação ambígua das pessoas negras nas Américas. Mas, a contribuição é universal e também pode ser aplicada a outras condições de dissociação vida biológica e vida cultural.

Interessa-nos, principalmente, as abordagens que colocam a questão da dupla consciência do ponto de vista da colonização latino-americana, como um conflito psicológico entre o eu-colonizador e o eu-colonizado (GONÇAVES, 2014; 2016).


  1. A dupla consciência negra

Du Bois foi o primeiro doutor em ciências sociais negro, ativista dos direitos civis, militante socialista, sociólogo pan-africanista, autor e editor de vários livros e fundador de uma das mais importantes organizações negras da história americana, a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP)2.

Para ele, a dupla consciência de ser negro e de ser americano é resultante de uma dialética entre a conquista da igualdade e a integração da população negra como cidadã, ponto de vista representado por Martin Luther King; e a ênfase na resgate e na construção de uma identidade cultural própria, defendida por Malcolm X. Luther King enfatizava os direitos civis e a cidadania americana para todos os afrodescendentes, materializada no direito ao acesso de banheiros, escolas, transportes e espaços públicos em pé de igualdade com os americanos brancos. Já Malcolm X defendia a criação de uma comunidade negra americana e a reafricanização simbólica dos negros americanos como identidade cultural.

E a noção de dupla consciência abrange as duas demandas: o direito à igualdade individual e o direito à identidade coletiva própria. O “mundo dos brancos” convive com o “universo negro” como sendo dimensões culturais de uma mesma realidade social.

Hoje, a noção de dupla consciência é aplicada em estudos sobre o Facebbok (OLIVEIRA, 2014), observando a relação entre o 'mundo off-line' e o 'virtual'. Há dupla consciência em Platão (os mundos sensível e intelígivel, o lado de fora e de dentro da caverna), em Aristoteles (a física e a metafísica) e até em Marx (consciência de classe em si na infraestrutura e consciência de classe para si na superestrutura). Há sempre uma consciência-percepção do mundo objetivo e uma consciência simbólica de suas interpretações.

Porém, o trabalho que ajudou a popularizar a noção de dupla consciência duboisiana e a consoliá-la no contexto da desigualdade social da colonização foi O Atlantico Negro – modernidade e dupla consciência (2001) de Paul Gilroy. O livro é uma viagem marítima pelo mundo das populações negras do Atlântico e a formação de uma cultura global mestiça de várias etnias africanas e americanas nativas. A dupla consciência, nesse caso, se refere a formação e a convivência entre culturas tradicionais dominadas e a modernidade ocidental dominadora.


  1. O conceito de identidade cultural

A identidade é o ‘invólucro da consciência’, uma mediação entre a percepção de si mesmo e da relação de si com os outros. Ela funciona como uma máscara, construída através de escolhas recorrentes e preferências automatizadas. Quanto maior a identidade, menor a consciência e a liberdade de decidir ‘sim’ ou ‘não’ no momento presente, sem escolhas antecipadas ancoradas em crenças e/ou na experiência passada. A ideia de Identidade Cultural, seguindo esta lógica, é uma representação de pertencimento a um grupo diante de outros, em que a dupla consciência opera excluindo e incluindo elementos simbólicos. A identidade cultural é a forma externa; a dupla consciência, o conteúdo analógico, o sentido intersubjetivo.

Toda identidade é uma dupla operação de inclusão (de produção de um reflexo singular do mundo universal) e de exclusão (de reprodução de diferenças). Há identidades mais inclusivas em sua forma de ser e outras que se fortalecem naquilo que elas não são. Mas, toda identidade tem, em maior ou menor grau, essa dupla operação simbólica de abertura e fechamento. “A identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa a ser devorado ...” (BAUMAN, 2005, p. 83-84).

Há um grande número de teóricos que definem ‘Identidade’. Existem duas concepções distintas do conceito: a identidade social e a auto identidade. A primeira se refere às características atribuídas a um indivíduo pelos outros, em vários níveis (a nacionalidade, a classe social, a profissão). A identidade aqui é compreendida como um sistema de representação das relações entre indivíduos e grupos, que envolve a partilha de bens simbólicos (a língua, a religião, as artes, o trabalho, os esportes, as festas) e a exclusão de outras características.

A identidade social é o social refletido em cada indivíduo ou o conjunto de coerções e restrições modeladoras da subjetividade. Este conceito é utilizado pela sociologia durkheiniana e pelo estruturalismo. Já a auto identidade (ou identidade pessoal) é uma imagem que atribuímos a nós mesmos e à nossa relação individual com a sociedade e com meio ambiente. E esse diálogo do mundo interior com o exterior molda o sujeito que se forma a partir de suas escolhas no decorrer da vida. A sociologia compreensiva weberiana e seus diferentes seguidores (Schult, Goffman, Giddens, entre outros) é a principal adepta dessa definição.

A ‘identidade cultural’ é resultante de uma dialética entre a identidade social imposta e a auto identidade criativa, entre as estruturas objetivas e a imaginação. Há também um consenso de que as identidades eram mais espaciais e fixas; porém, com a globalização, as regiões passaram a interagir mais e as identidades parcialmente se desterritorializaram. Bauman (2005, 30) afirma que a questão da identidade só se coloca a partir do aumento do intercâmbio cultural e do declínio da identidade geográfica. O auto reconhecimento só faz sentido frente ao diferenciado. Até os anos 70, o imperialismo cultural e a destruição das identidades locais foram amplamente denunciadas por autores marxistas simpáticos a noção de cultura popular. Bourdieu (2007) afirma que os meios de comunicação, principalmente a TV, está promovendo uma padronização cultural em massa, num ato expresso de violência simbólica. Nos anos 80 e 90, Stuart Hall (2002) contesta essa tese de que a globalização promova a padronização cultural em massa, ressaltando que os indivíduos não são consumidores passivos e que é preciso considerar os usos e apropriações que eles fazem dos bens culturais. E a proatividade dos consumidores teria como consequência um mundo de culturas heterogêneas e híbridas (CANCLINI, 2000).

Assim, a globalização não é uma mera homogeneização das representações culturais e identitárias locais. O que está em curso é um redimensionamento, ou fragmentação dessas identidades, até então tidas como fechadas e homogêneas. Uma cultura será mais ou menos homogênea em função da proatividade de seus adeptos. Uma cultura de pessoas passivas será facilmente uniformizada pela globalização cultural, enquanto uma cultura de pessoas participativas preserva suas tradições. Porém, na prática, todas as culturas são ‘glocais’, isto é híbridas em diferentes graus de combinação (GOMES, 2018).


  1. A dupla consciência latino-americana

Gonçalves (2014, 2016) estuda a dupla consciência latino-americana resultante do “tensionamento estrutural entre colonialidade do poder e mestiçagem crítica”. Colonialidade do poder (QUIJANO, 2005) é “a matriz do pensamento e das práticas sociais próprias ao mundo do colonizador: o racialismo, controle do trabalho, dominação de gênero, colonização da natureza e pensamento eurocêntrico”. E a matriz do colonizado é, para Gonçalves, “a mestiçagem crítica”.

A partir da estrutura cindida entre as duas matrizes de pensamento – colonizador e colonizado – a formação latino-americana estabelece uma dupla consciência histórica. Desde o início da colonização – momento de convulsão extrema que deu origem à modernidade – já está presente a oposição entre, de um lado, a colonialidade do poder – matriz de pensamento do colonizador – e, de outro, a mestiçagem crítica, matriz de pensamento que caracteriza os processos de resistência dos povos colonizados. Essa duplicidade, o tensionamento e o conflito entre essas duas matrizes, é a estrutura dinâmica que caracteriza a formação das populações do continente em sua reprodução social e em sua intersubjetividade. Está presente nas relações, nos afetos e no pensamento da população do continente.

Existem, na teoria, dois extremos.

Há lugares que fomos completamente colonizados, em que não temos nenhuma caraterística cultural que nos defina e diferencie dos outros. Mas, há um preço: o complexo de viralata, ver o mundo e a si próprio através dos olhos do outro-colonizador, varrendo para o inconsciente seu 'eu colonizado' e sua submissão servil ao exterior. Esse ponto de vista, equivale ao “etnocentrismo epistemológico”, em que a ciência ocidental se sobrepõem aos saberes de outras culturas, que a modernidade global se sobrepõe às tradições locais.

Como também há lugares em que, ao contrário, o 'eu colonizador' é que é escondido (e demonizado), e o 'eu colonizado' é exaltado, através do nacionalismo e do regionalismo. Na maioria desses casos, a defesa radical da identidade territorial colide com valores universais de idosos, mulheres e crianças. A identidade cultural fechada gerou o fenômeno do populismo3 e da manipulação das identidades populares. E hoje gera o fenômeno das 'bolhas ideológicas' das redes sociais. Esse é o “relativismo identitário”, celebrado pelo slogan “Cada um no seu quadrado”.

Na prática, há uma luta entre a identidade imposta e a auto definida, com resultados em diferentes graus, arranjos (de inclusão e exclusão de elementos simbólicos) entre o imposto e o exposto, entre o social e o pessoal, entre o arbitrário e o subversivo.

Mas, há também um terceiro termo produzido pela dupla consciência: “a mestiçagem crítica”, a resistência criativa à aculturação colonizadora.


  1. Dupla consciência à brasileira

Em O povo brasileiro, Darcy Ribeiro (1996) afirma que identidade brasileira é singular em relação a de outros povos colonizados; tanto em relação aos povos testemunhais (andinos e mexicanos), que guardam os traços distintivos de antigas civilizações Inca e Asteca; como também em relação aos povos em que as características culturais dos colonizadores passaram a ser dominantes, como os canadenses. Nos povos em que a identidade étnica nativa é forte (como na Bolívia, por exemplo), há uma rejeição popular da cultura colonizadora. Já nas culturas em que a identidade nativa é fraca, todos se consideram descendentes dos colonizadores.

No primeiro caso, há uma rejeição da cultura colonizadora e uma adesão à identidade local; no segundo, há não apenas uma aceitação, mas, sobretudo, uma identificação cultural da população nativa com a cultura colonizadora racista, misógena e violenta.

A cultura brasileira, nessa concepção, nem rejeita (fechando-se em uma cultura de resistência popular) nem se identifica (reproduzindo os valores externos) com o colonizador. Há uma identidade cultural ‘não definida’, permitindo que o povo brasileiro se reinvente com dois resultados: o bricoleur das elites e a ninguendade das massas. Por um lado, as elites 'devoram antropofagicamente' o colonizador. Mas, por outro, há também uma massa amorfa de bastardos sem rosto, em um estado permanente de apatia indiferenciada: uma multidão de anônimos sem rostos formada por pardos, morenos, mulatos, cafusos e mais cinquenta e tantos tons de cinza.

O preço da criatividade rebelde das elites é pago com a descaracterização cultural das massas, com o apagamento da identidade local e a uniformização do consumo. A essa qualidade de assimilação e reinvenção cultural, Darcy Ribeiro dá o nome de ‘ninguendade’ – a identidade da não-identidade, a cultura do zé ninguém, aquele que não se reconhece na imagem do outro, nem também ousa elaborar uma imagem própria.

A cultura brasileira é um projeto aberto ao que está por vir e não uma referência simbólica do passado sobre à atualidade. ‘Um povo sem memória, mas com grande esperança’. Assim, miscigenação não nos torna iguais nem nos faz um mix de qualidade culturais e defeitos étnicos. Ela é uma apenas identidade vazia ou quase: “o país do futuro” e um eterno “gigante adormecido em berço esplêndido”.

Em uma perspectiva histórica mais ampla, existem também vários autores que sugerem que a modernização cultural brasileira não foi autêntica, mas “para inglês ver” como se diz popularmente. Por detrás de uma identidade de fachada moderna, continuamos ‘índios’ afetuosos e idiotas: “cordiais” (BUARQUE DE HOLANDA, 1987); culturalmente corruptos, que não distinguem entre a esfera pública e a vida privada de sua família (FAORO, 1979); ou ainda pessoas sem igualdade individual, que dão um ‘jeitinho’ para se colocar acima de todas as regras (DAMATTA, 1997). Para esses autores, o colono português no Brasil foi mais promiscuo, sentimental, já era mestiço de várias etnias, católico por conveniência, preguiçoso, socialmente irresponsável e outras tantas características responsáveis por nossa desgraça cultural: a inautenticidade moderna.

O sociólogo Jesse Souza (2000) é o principal crítico desta forma de pensar, a que chama “sociologia da inautenticidade”. Ela está enraizada no senso comum e é polinizada através da própria cultura brasileira, de forma ideológica, para perpetuar sutilmente nossa submissão e inferioridade em relação à modernidade ocidental, o nosso tão propalado “complexo de vira-lata”, de identidade com os colonizadores sem se perceber colonizado.

Em sua crítica à sociologia da inautenticidade, Souza se aproxima de Gilberto Freire e Darcy Ribeiro. Enquanto Freyre coloca a miscigenação étnica como fator central da cultura brasileira; Ribeiro sugere a dupla consciência como produto histórico desta miscigenação. Souza se aproxima desses autores por eles não priorizarem o papel da herança ibérica maldita e entenderem a miscigenação como um fator positivo da singularidade brasileira, mas deles se distancia em função de seu foco fechado sobre a questão escravista e da desigualdade social como questão central.

A crítica de Souza contra a inautenticidade de nossa modernidade ajuda a entender o Brasil a partir de suas particularidades, como resultado de um processo histórico singular e seletivo de desenvolvimento encoberto e naturalizado por nós mesmos no senso comum. Por outro lado, não há um diálogo com a mestiçagem crítica e com seus autores. O próprio Souza carece não assimila (como poderia) os autores que critica, subentendendo um ponto de vista identitário-marxista.


  1. Tradição e modernidade

A dupla consciência colonial expressa um conflito entre modernidade e culturas tradicionais. Para quem é colonizado, a identidade moderna exclui o que é pessoal, antigo, tradicional; e deseja incluir tudo que for novo, urbano, tecnológico, sempre de modo uniformizado e universal. Ser moderno mais do que ser progressista e laico, significa ter uma visão objetiva de si como produto da sociedade industrial; é acreditar que a natureza e o corpo são máquinas biológicas; é viver em um universo mecânico formado por coisas e objetos, é acreditar que vive em um bola de pedra que gira em torno de uma bola de fogo.

As identidades culturais modernas são domesticações simbólicas das antigas identidades tradicionais, colonizações cívicas das mitologias locais. A identidade nacional, ancorada no estado territorial, é expressão principal deste auto reconhecimento de modernidade. Geralmente, as identidades nacionais modernas são permeáveis a elementos simbólicos distantes e rejeita os elementos culturais próximos de seus vizinhos.

Ser moderno é viver voltado para o futuro, enquanto as tradições são identidades voltadas para o passado. A identidade moderna implica no risco de escrever a própria história, na dúvida sistemática, no ‘universal-cosmopolita’ dos grandes centros urbanos, a identidade indefinida das massas culturalmente industrializadas.

Para Giddens (2003), a tradição é uma reflexibilidade entre o passado e o presente, em que a memória formata o acontecimento que confirma a lembrança passada. A modernidade é uma reflexibilidade entre o presente e o futuro simulado, levando ao desencanto simbólico das relações sociais e à indução ao risco (e à aventura – acrescento). A dupla consciência é percepção das duas reflexibilidades, do futuro moderno e do passado tradicional.

Giddens não acredita na secularização absoluta das tradições e sim que a modernidade convive com o poder simbólico de modo diferente. Ao contrário, o que agora chamamos de tradição é algo inventado a pouco tempo pela própria modernidade. A reflexividade moderna funciona em conjunto com bolsões da reflexividade tradicional.

No Brasil, nos anos 20, surgiram dois projetos de identidade moderna: a antropofágica e a nacional-popular. A modernidade do ponto de vista cultural, o movimento modernismo, primeira forma de expressão da classe média urbana republicana, pode ser subdividido em dois comportamentos distintos em relação à produção de bens simbólicos: o antropofágico e o nacional-popular.

O antropofágico, formalizado por Oswald de Andrade, ou a vertente da vanguarda estética brasileira de produzir uma cultura de exportação a várias outras manifestações culturais (Hélio Oiticica, a Bossa Nova, a poesia concreta, o cinema novo, o tropicalismo) mais preocupadas em se sincronizar ao cenário cultural internacional do que produzir uma identidade nacional-popular. Em oposição a esta vertente oswaldiana da modernidade brasileira, coloca-se o projeto iniciado por Mario de Andrade e pelos artistas inspirados pelas temáticas regionais e sociais (Graciliano Ramos, Jorge Amado, entre tantos). Entretanto, tanto os dois projetos de produção simbólica das classes médias urbanas (o antropofágico mais voltado para as elites e o nacional-popular mais voltado para os trabalhadores) acabaram absorvidos pela industrialização cultural das massas, ou melhor, através da segmentação em públicos alvos específicos (o cult, o diet, o pop, o popular) a partir da contracultura.

Thompson (1998) também considera equivocada tanto a tese de que a cultura moderna e a ciência superaram definitivamente as tradições como a ideia de que a modernidade e a ciência são apenas tradições contemporâneas que não se reconhecem enquanto tal. Há um terceiro ponto de vista, em que o saber tradicional se modificou com a comunicação mediada, mas que ainda sobrevive na vida moderna através de várias formas simbólicas.

Para demonstrar seu ponto de vista, Thompson faz uma distinção operacional em quatro aspectos indissociáveis da tradição: hermenêutico, normativo do cotidiano, legitimador do poder e identificador cultural.

  • No aspecto normativo, a tradição é um sistema de normas que orienta a Ação Social segundo o passado. De forma que as rotinas reproduzem a memória e a memória produz as rotinas cotidianas.

  • No aspecto legitimador, a tradição é também ideologia que autoriza o exercício do poder. Thompson, nesse ponto, segue Weber, que crê no declínio da legitimidade tradicional e o predomínio da legitimidade legal (através de leis e regras) e da nova legitimidade carismática (através da personalidade e do magnetismo pessoal) gerada pela mídia.

  • No aspecto hermenêutico, a tradição é uma estrutura de interpretação. Assim, pode-se dizer que a ciência é uma tradição de interpretar os acontecimentos como fatos objetivos.

  • E no aspecto de identificador, a tradição é ainda um fator de auto formação cultural de identidade coletiva e individual, do ‘Self’ de um determinado grupo ou população. E a identidade de pertencimento territorial, profissional e/ou religioso.

Segundo Thompson, a modernidade global acabou com os aspectos Normativo e Legitimador das tradições, mas os aspectos Hermenêutico e Identificador Cultural permanecem vivos ideologicamente na cultura moderna (THOMPSON: 1998, 165).

O simbólico tradicional não normatiza mais o cotidiano nem legitima autoridades impostas pela força, mas continua vivo como sistema de interpretação (a mídia) e formação cultural (a escola). Thompson dá destaque, principalmente, à mudança do aspecto identificador e ao fato de que a nova experiência do Eu (Self) em um mundo mediado apontar para uma nova ancoragem das tradições: a cidadania global. A comunicação mediada globalizada torna o processo de auto formação dos indivíduos muito mais aberto e reflexivo que na relação face a face. Por outro lado, ela troca da experiência vivida pela experiência mediada, gerando uma situação antes inexistente, um ambiente artificial de agentes e públicos não-presenciais. A dupla consciência está agora se 'glocalizando': se tornando planetária (consciência de espécie em relação ao meio ambiente) e comunitária (consciência de grupo superando o comportamento de rebanho).


6. Dupla consciência pós-moderna

Einstein elaborou as teorias da relatividade, postulando a ‘posição relativa do observador em relação a uma referência comum’ do ponto de vista epistemológico. O tempo contínuo tal qual percebemos, por exemplo, só é percebido como tal dentro da órbita da terra. Se o observador estiver na lua, perceberá que o tempo cronológico é resultante do movimento de rotação da terra. Para Einstein o tempo só é contínuo na velocidade da luz, tudo abaixo da velocidade da luz é simultâneo e relativo à posição do observador dentro do universo. A luz não é só uma velocidade constante, é também uma medida de tempo espaço (tal planeta está a tantos anos-luz daqui). 

Maturana (2001) adaptou essa noção (de observador relativo) para ciências biológicas, afirmando que há ‘objetividades entre parêntesis’ (indicando a consciência de que existem outros pontos de vista) e a ‘objetividade sem parêntesis’ (que não percebe os outros, apresenta sua percepção como universal e absoluta). 

Deleuze & Guattarri (1995-97) adotaram a simultaneidade e a relatividade da física teórica, negando a história como o desenvolvimento dos acontecimentos e a universalidade do projeto científico do ocidente. Para ele, toda totalidade é totalitária, porque espelha um único ponto de vista, mil platôs não formam uma montanha e o mundo é um conjunto de partes sem o todo. No esteio dessa crítica radical ao etnocentrismo científico ocidental, várias formas de pensar relativistas surgiram, não apenas saberes tradicionais midiatizados, mas também os que reivindicam um olhar científico de gênero e de etnia e não da identidade imposta.  

Outros autores contemporâneos, como Edgar Morin (2001) e Pierre Levy (1999), compreendem o legado de Einstein de modo não relativista. Levy recorre ao termo ‘Universal sem totalidade’ para definir a essência da cibercultura. Morin diz que universo não forma uma totalidade (uma unicidade objetiva), mas sim uma complexidade (um conjunto sempre incompleto de realidades relativas). Cada um tem sua cultura, mas a natureza é universal. A cultura global é formada por fragmentos que espelham dentro de si uma totalidade inexistente no exterior. 

Temos, assim: o 'eu-colonizador', representanta a ciência etnocentrica/cultura moderna; o 'eu-colonizado', correspondendo ao identitarismo relativista em suas diversas formas; e o diálogo/dialética formador da mestiçagem crítica e do pensamento complexo. 

Se negamos nosso eu-colonizado, nos tornamos uma caricatura dos verdadeiros colonizadores (daí a inaltenticidade moderna); se negarmos nosso eu-colonizador, nos tornamos uma caricatura fanatizada dos verdadeiros colonizados, construindo identidades artificiais para esconder as relações de poder. O comportamento adequado em relação a dupla consciência desses eus (ou dessas condições) é a mestiçagem crítica. Esse terceiro termo, nasce do conflito entre os dois primeiros, da transformação do choque das identidades pela dupla consciência. 

A ciência, nesse terceira posição, não é nem objetiva como quer o etnocentrismo nem subjetiva como pensa identitarismo relativista, e sim baseada na observação intersubjetiva aberta, no consenso circunstancial das interpretações. Essa nova ciência não se preocupa em validar ou refutar saberes tradicionais ou identitários, mas sim em explicar como e porque esses saberes funcionam. A questão é ter uma cosmovisão mais abrangente e interdisciplinar possível ao invés de tentar forçar o universo a se enquadrar as nossas teorias, sejam coloniais ou não. 


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1 Jornalista, sociólogo e professor titular em Estudos da Mídia (UFRN).


2 Apesar de sua sociologia engajada e de seu ativismo, Du Bois, no entanto, não nunca foi comunista nem marxista. Era admirador (e admirado por Max Weber) e é possível que a categoria de 'dupla consciência' seja derivada da distinção entre juízos de fato e de valor e que sua conduta como sociológo e militante seja inspirada pelo livro Ciência e Política, duas vocações (WEBER, 1970).

3 'Populismo' não apenas no sentido histórico (dos governos Vargas e Peron), mas também no sentido do conceito no varejo: um 'discurso demagogo de esquerda, sustentado em uma atitude carismática'.