segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

A lenda da cocaína

 

Quando o Imperador Inca Huayna Capac pressentiu que chegava a hora de sua morte, chamou seus filhos, Atahualpa e Huascar, para se despedir, dividir seu reino entre eles e pedir que apoiassem um ao outro. Atahualpa ficaria com as terras do norte (hoje a cidade de Quito, no Equador); Huascar, com as ao sul e a capital Inca, Cuzco. Ambos deveriam reinar como os deuses gêmeos Inti (o Sol) e Kilya (a Lua). Na ocasião, Huayna Capac, para selar essa aliança, serviu aos seus filhos um cálice da bebida sagrada Ayahuasca e pediu que eles aguardassem as revelações que o grande espírito traria através dela.

Ao tomar a bebida, Atahualpa viu a serpente emplumada, Viracocha , saindo de dentro do Sol e do Mar. Para ele, era o retorno do deus criador no final dos tempos, o Pachacúti, o Apocalipse Inca. Huascar teve a visão de um navio estranho chegando ao poente, com um homem sanguinário vestindo uma armadura prateada com um pluma em seu capacete. Ao final do transe, cada um contou sua visão ao pai, que disse: “Vocês tiveram a mesma visão, mas cada um interpretou-a de um modo”.

Depois da morte de Huayna Capac, no entanto, os dois meio-irmãos se desentenderam e entraram em guerra. Huascar recorreu novamente à Ayahuasca e teve a mesma visão, acrescida de mais detalhes: o homem barbudo de roupa prateada e pena na cabeça chegava comandando um grande massacre e destruindo o Império Inca. Ainda em transe, Huascar perguntou à divindade a causa daquela desgraça. “O povo Inca ao invés de amar o Sol e a Lua, amava o ouro e prata.” Inconformado, o príncipe Inca clamou por misericórdia: “Nem todos amam a matéria”. Ao que o espírito da Ayahuasca respondeu: “Esconda o tesouro dos Incas no lago Titicaca e suba com a classe sacerdotal e todos que amam o espírito para Machu Picchu, no alto das montanhas, que se passarão várias gerações sem que os homens barbudos descubram os sobreviventes incas”.

Huascar agradeceu e prometeu seguir fielmente as instruções do grande Espírito da bebida sagrada, no entanto, em seu coração ele não aceitou o fim do seu mundo e antes de voltar ao estado de consciência normal ele pediu, ainda em transe, uma reparação contra aquela injustiça.

Porém, logo após esconder o tesouro inca e despachar os sacerdotes para as montanhas, Huascar foi preso pelas tropas de seu meio-irmão.

Voltando para Cuzco, para tomar posse do trono que conquistara, Atahualpa parou na cidade andina de Cajamarca, conduzindo um exército de cerca de 80.000 guerreiros, quando viu a chegada do conquistador espanhol Francisco Pizarro, lembrando-se na visão de que havia tido com a bebida sagrada.

Atahualpa recebeu Pizarro como um deus, sendo traído e aprisionado pelo espanhol, no dia 16 de novembro de 1532. E o poderoso Império Inca foi derrubado por menos de duzentos homens e vinte e sete cavalos.

Naquela mesma noite, em grande agonia, Huascar teve um sonho em sua cela na prisão, em que se encontra com o próprio Inti, o deus Sol.

- Oh, meu Pai, conceda-nos a vitória de meu povo e a expulsão dos invasores – suplicou o príncipe Inca.

- O que você me pede é impossível. O destino de Atahualpa e dos adoradores de metal está selado. Porém, gostaria de conceder-lhe uma graça.

Huascar pediu um conforto que os ajudasse a suportar a escravidão e a vida dura que os esperava. O deus Sol lhe mostrou a planta de coca e disse:

- Diga a seu povo para cultivar essa planta com carinho e colher suas folhas. Após secas, as folhas devem ser mascadas para que seu suco alivie seu sofrimento. Quando se sentirem exaustos de seu destino essa planta lhes dará nova vitalidade. Em suas jornadas através de terras altas, a coca irá aliviar sua fome e frio, tornando a viagem mais tolerável. Nas minas onde serão forçados a trabalhar, o terror e a escuridão dos túneis serão insuportáveis sem a ajuda desta planta.

- Porém, enquanto essa planta significará força, saúde e vida para seu povo, ela será maldição para os estrangeiros. Quando eles tentarem explorar suas virtudes, a coca irá destruí-los. O que para seu povo servirá de ‘alimento’, para os invasores será um perigo veneno. A coca é uma das defesas da Grande Floresta, que destroem todos aqueles que tentarem devastá-la.

domingo, 28 de novembro de 2021

AS METAMORFOSES DO ESPÍRITO

 


O ponto alto do livro Assim falou Zaratrusta (NIETZSCHE, 2009, p.51) é a metáfora dos três tipos de liberdade: a do Camelo, a do Leão e a da Criança.

A liberdade do Camelo é a autonomia de servir, de ser útil, o júbilo de fazer parte do conjunto ou de algo maior que si.

A liberdade do Leão é a capacidade da realização da vontade de potência, do poder o que se quer se fazer sem ajuda ou colaboração.

E a liberdade da “criança brincando sério com seu tambor” é a independência da criatividade de valores. O camelo aceita o mundo como ele é. O Leão deseja transformá-lo. A Criança aceita o mundo mas não se conforma com ele ...

[…] ela não está ligada nem à conservação, como o camelo, nem à destruição, como o leão. O artista criança, o lúdico-criador, é pura afirmação, pura atividade [...]. Ele independe do passado e do futuro, habita plenamente o presente, onde brinca gerando interpretações singulares (BARRENECHEA, M. A. 2008, p. 93).

Para Joseph Campbell, no livro/entrevista O Poder do Mito (1990), capítulo Sacrifício e Felicidade, as três metamorfoses correspondem as fases da vida (e também à Jornada do Herói). O Camelo é a infância e o chamado ao heroísmo. O Leão é a adolescência, a rebeldia, o 'dizer não' à injustiça moral e social. E por fim, a maturidade é a criança interior, criadora de seu próprio sentido e de sua própria dinâmica.

Osho (2006) faz uma interpretação mais profunda, em que o Camelo não é tão submisso, nem o Leão é tão revoltado, e que adota os níveis hermenêuticos de objetividade, subjetividade e intersubjetividade para definir melhor os tipos de liberdade.

  • O Camelo representa a ‘liberdade para’ fazermos algo. Em que lutamos contra as regras e contra a autoridade. É a liberdade política e objetiva, isto é: a ‘liberdade do não’ da autonomia de decidir o que ser e fazer e não o que os outros querem. Mas, de nada adianta a ‘liberdade para’ (cantar, por exemplo) senão temos a ‘liberdade de’ (a alegria de cantar).

  • O leão, por sua vez, é a ‘liberdade de’ fazer o que quiser. Agora, a luta pela liberdade é contra o próprio condicionamento, é o aperfeiçoamento interior para se conseguir usufruir da liberdade exterior. É a liberdade psicológica e subjetiva, a ‘liberdade do sim’ da aceitação da vida.

  • E a criança nietzschiana representa, para o guro indiano, a liberdade intransitiva. Aqui a luta pela liberdade consiste em libertar os outros através do exercício criativo da própria liberdade (quando, cantando, mudamos sentimentos e situações). É a liberdade intersubjetiva da criatividade.

Reparem que, enquanto Campbell dá uma ênfase heroica e biográfica às três metamorfoses, Osho ressalta a triade como diferentes perspectivas possíveis da liberdade de cada a cada momento. Em alguns aspectos, as duas interpretações são complementares; em outros, são contraditórias, o Leão como um 'sim para vida' e um 'não para as regras'.

Outras interpretações poéticas e filosóficas são interessantes e acrescentam mais sentidos ao tema, como a música do raper Gábe ou ainda a crítica de Clarissa Zelada - que compara as três metáforas nietzschianas aos heterônimos de Fernando Pessoa: Ricardo Reis (camelo); Álvaro de Campos (leão), Alberto Caeiro; (criança).

Eu, observando essas referências, gostaria de vislumbrar uma pedagogia para liberdade, uma forma de educar que leve em conta os desafios das três metamorfoses. Para tanto, é preciso pensar cada elemento dentro de seu contexto grupal e depois elaborar um desafio, um ritual de passagem representando as três metamorfoses.

Mas, para não me referenciar apenas nas diferentes interpretações dos elementos simbólicos, procurei uma fundamentação mais lógica nos conceitos de solidariedade mecânica e orgânica de Durkhein (1978), na noção de inteligência coletiva de Pierre Levy (2000) e na teoria integral dos três níveis da Psicologia do Desenvolvimento (modelo Eu/Outro), definidos por Ken Wilber (2007): pré-convencional (ou egocêntrico), o convencional (ou altercêntrico) e o pós-convencional (ou holoscêntrico).

Imagine-se, por exemplo, em um jogo de futebol em que todos os jogadores de cada time atacam e defendem em bando sem nenhuma preocupação tática com as posições. Temos aqui uma situação de anomia ou caos. Mas, alguns padrões de cooperação parcial surgem, aos poucos. Para Durkheim, nas sociedades primitivas a consciência coletiva predominava sobre a individual e a solidariedade entre seus integrantes é mecânica.

E nesse contexto pré-convencional - em que os indivíduos disputam e colaboram sem regras - os mais fortes, os mais rápidos, os mais espertos prevalecem em detrimentos dos mais fracos, lentos e distraídos. O heroismo do Camelo é baseada na força, na sua capacidade de ser altruísta em um universo egocêntrico.

No entanto, se o esquema tático do time tolher as habilidades pessoais, com cada jogador preso a uma posição e com jogadas sempre previsíveis baseadas no desempenho físico, estaríamos em uma situação de solidariedade orgânica - aquela em que as duas formas de consciência – a individual e a coletiva – se mantiverem equilibradas, ou seja, que cada jogador dessa partida imaginária tiver uma visão de conjunto e alguma liberdade tática de movimento. O universo convencional é baseado em regras iguais para todos, com exceções para garantir a equidade: “primeiro os mais velhos, as crianças, as mulheres, etc”. E o heroismo do Leão é a de quebrar as regras, em ser egoista em um universo altercêntrico.

TABELA DE EQUIVALÊNCIA DOS CONCEITOS DE DURKHEIN, NIETZSCHE E WILBER

SOCIABILIDADE

ORGANIZAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

NIETZSCHE

KEN WILBER

Anomia

Consciência Coletiva < Consciência Individual

CAOS SOCIAL

Solidariedade Mecânica

Consciência Coletiva > Consciência Individual

CAMELO

Pré-convencional ou Egocêntrico

Solidariedade Orgânica

Consciência Coletiva = Consciência Individual

LEÃO

Convencional ou Altercêntrico

Inteligência Coletiva

Consciência Coletiva + Consciência Individual

CRIANÇA

Pós-convencional ou Holoscêntrico

Elaborado pelo autor

A noção de Levy (2000) de Inteligência Coletiva representa um nível de organização mais aperfeiçoado do que a solidariedade orgânica durkheimiana porque ao invés de um equilíbrio entre formas concorrentes de consciência racional entre o todo e as partes, ela representa sua interação em uma única consciência que, além de ser coletiva e individual simultaneamente, é também espontânea e intuitiva.

Em relação ao nosso jogo de futebol, é quando o futebol deixa de ser técnico (individual) e tático (coletivo), para ser artístico; quando sem nenhum planejamento anterior, armam-se tabelas de passes imprevisíveis e as jogadas acontecem como “se fossem por mágica”. Essa sinergia descentralizada e sincrônica é a inteligência coletiva.

E, nesse contexto pós-convencional, surge o protagonismo lúdico da criança.

A perspectiva de Ken Wilber é ainda mais evolucionista. Para ela, a humanidade está em estágio de desenvolvimento convencional (a democracia representativa) e caminha, através do desenvolvimento dos meios de comunicação, para um novo regime de cognição coletiva.

O brincar é uma atividade fundamental presente em todas as culturas. Walter Benjamin e Donald Winnicott pensam o lúdico como a base cognitiva do aprendizado. Outros como o historiador holandês Johan Huizinga acreditam no Homo Ludens, em um futuro em que o brincar retornará a centralidade, secundarizando as relações de força que herdou do Homo Faber e as relações de conhecimento do Homo Sapiens. Flusser (1998) caracteriza o ‘modo de ser brasileiro’ como um protótipo do homo ludens, um novo homem consciente de que joga com e contra outros; e de que outros jogam com e contra ele. A miscigenação nos fez ‘lúdicos’, um exemplo para outros povos.

Assim, a criança interior é o superhomem. O ser humano só conquista sua humanidade, quando abandona as animalidades do Camelo e do Leão – através de desafios de força e de equidade. Ainda estamos a caminho da utopia tecno-lúdica, origem e destino da jornada do espírito em metamorfose. Educar para liberdade é formar protagonistas lúdicos.

Referências

BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche e a liberdade. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2008.

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Editora Palas Athena, São Paulo, 1990.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

FLUSSER, Vilem. Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem. Rio de Janeiro: UERJ, 1998. Disponível: http://www.iphi.org.br/sites/filosofia_brasil/vilem_flusser_-_fenomenologia_do_brasileiro.pdf Último acesso em 17/4/2019.

LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. SP: Loyola, 2000.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. 3ª Edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

OSHO. Liberdade – a coragem de ser você mesmo. Tradução Denise de C. Rocha Delela. Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2006.

WILBER, Ken. Espiritualidade Integral – uma nova função para religião neste inicio de milênio. Tradução Cássia Nassser. São Paulo: Alef, 2007.

A astrologia e os quatro elementos

 Nova conclusão para o livro Devaneios da Imaginação Simbólica 


Ciência solar e Sonhos lunares

Antes da escrita e da história, havia diferentes ‘astrologias’: a chinesa, a indiana, a etno-astronomia dos povos pré-colombianos e a sumeriana - cujo modelo solar deu origem à astrologia e à astronomia contemporâneas. Essas astrologias pré-históricas das sociedades tradicionais tinham em comum a simultaneidade temporal (ou tempo circular lunar-solar), o geocentrismo (a terra do centro do universo) e a simetria entre o mundo e o cosmo (o homem como reflexo do universo). 

Com o aparecimento das escritas e do tempo contínuo da história, a ciência (ou o projeto de representação objetiva que o universo tem de si próprio) e a modernidade cultural (a imagem pretensamente objetiva que a sociedade faz de si mesma) passou lenta e progressivamente a construir um paradigma do observador onisciente, que o vê o universo de um ponto cego. 

Hoje este modelo astrológico não nos serve mais de paradigma de observação científica dos céus mas continua válido como ‘Themata’ ou paradigma simbólico. Assim, no paradigma objetivo da astronomia, sabemos que a Terra gira em torno do Sol; no entanto, continuamos dependendo simbolicamente do paradigma subjetivo da astrologia, que como uma linguagem do inconsciente, condiciona atitudes e comportamentos, através da associação de determinadas características psicológicas aos meses do ano, por exemplo. A ciência e o pensamento objetivo superaram apenas parcialmente o antigo paradigma de representação e esta ‘superação’ é uma questão muito relativa: ao contrário do que pensam os historiadores da ciência, a ideia de um sistema geocêntrico não significa que Ptolomeu acreditasse que o Sol girasse em torno da Terra, mas sim que ele colocava a questão da representação objetiva do universo em um segundo plano diante da ideia de decifração do destino através da observação especular das estrelas. 

Devido ao movimento de precessão do eixo da terra, os céus astrológico e astronômico não coincidem mais. 

O movimento de precessão da terra é causado pelas forças exercidas pela translação do Sol e pela da rotação da Terra e da Lua, fazendo com que o planeta se movimente em relação ao próprio eixo. Esse movimento muda as estrelas de lugar para o observador terrestre. A cada ano, a terra sofre uma precessão de cerca de 20 minutos. Em 2160 anos, a mudança é de 30 graus. Na época em que a astrologia foi concebida, o sol nascia às seis horas da manhã na constelação de Áries; durante muitos séculos, o sol nesse dia nasceu em Peixes; e nos dias atuais, a constelação que abre o equinócio de outono no hemisfério sul é a de Aquário.  

Tal fato, paradigmático da relação geral entre cosmologia científica e cosmogonia simbólica, divide atualmente os astrólogos em dois grandes grupos: os defensores de uma atualização do simbolismo ao céu real e os que dissociam completamente a linguagem astrológica da realidade astronômica.

Assim, fazemos duas representações do universo, uma consciente e pretensamente objetiva (em que a terra é uma bola de pedra que gira em torno de uma bola de fogo); e outra, inconsciente e subjetiva, povoada por símbolos, imagens e energias invisíveis. O paradigma astrológico perdura no campo morfogênico como uma linguagem simbólica do inconsciente. 

E, apesar das inúmeras diferenças dos modus operandi entre o conhecimento científico e o saber tradicional, ambos têm um único objetivo: evitar o infortúnio e a adversidade, procurando antecipar os acontecimentos para melhor enfrenta-los. A previsibilidade de um evento depende, ao mesmo tempo, do saber simbólico e do conhecimento científico. Do lunar e do solar. 

Recapitulando devaneios

Partiu-se da metapoética de Gaston Bachelard e de seu desafio. Em um segundo momento, aceitou-se a provocação e imaginaram-se conceitos resultantes da inter-relação dos quatro elementos entre si: Calor, Trabalho, Linguagem, Sonhar, Luz, Riqueza, Imaginação Formal, Sensibilidade, Vida, Poder, Arquétipo, Imaginação Simbólica. 

Em seguida, aplicaram-se alguns desses conceitos a um universo empírico em particular: o preparo da Ayahuasca. Procedeu-se, então, a uma descrição subjetiva dessa experiência cognitiva, ressaltando sua semelhança ao tema do vinho alquímico dos sufis (tema bachelardiano, por sinal) e, principalmente, a presença dos quatro elementos durante todo percurso. 

Devaneando mais um pouco sobre a terra úmida, discutiu-se sobre o símbolo do útero (a caverna, a casa, o repouso) e sobre a inexistência do matriarcado arcaico; como também se defendeu a necessidade de um reajuste elemental entre os gêneros, com os homens se reconectando ao corpo e às emoções, e as mulheres resgatando o sagrado feminino e sua intelectualidade. 

Dando sequência à viagem, no capítulo “O mito do fogo”, investigou-se a relação entre Vida e Poder através do símbolo do Ferro. Nesse texto, aplica-se o modelo de análise estrutural de narrativas míticas de Lévi-Strauss a autores esotéricos e narrativas cabalísticas, demostrando-se sua curiosa equivalência simbólica. 

Porém, a demonstração da inexistência do matriarcado arcaico (na memória histórica e social) não convenceu aos que acreditam nela (como memória arquetípica). Para não cometer o mesmo erro do primeiro Bachelard (separando radicalmente a verdade da imaginação), sobrepõe-se à realidade histórica (o Ar: o matriarcado nunca existiu) a realidade mítica (a Água: o matriarcado está eternamente em nosso passado presente agora na forma de uma memória). E assim, em Narrativas do Sagrado Feminino, reescreveu-se algumas histórias da relação Ar-Água e se discutiu a noção de coprotagonismo narrativo entre os gêneros e valores masculinos e femininos. 

No texto “Estudos Cabalísticos”, problematizou-se a Árvore da Vida (a Luz dentro do Arquétipo) e o Apocalipse (o Arquétipo dentro da Luz). As relações entre Fogo e Ar também nos colocam a questão do desequilibrio entre o masculino e o feminino, a dissociação simbólica entre fogo sexual e espiritual e o aparecimento impiedoso do ferro e de suas ferramentas mortais. 

A negação da morte

Segundo a mitologia suméria, o sistema de doze constelações zodiacais e de dez planetas (sim, os sumérios sabiam de Plutão e o consideravam um planeta) foi concebido pelo deus Enki e ensinado a seu filho Marduk, durante um retiro que fizeram na Lua. O mesmo sistema foi ensinado por Marduk aos homens, através de um personagem sumério semelhante ao Enoch bíblico. 

Sempre considerei um mistério o fato dos antigos sumérios dividirem o ano em doze meses e não por treze – seguindo o ciclo lunar de 28 dias com seria o lógico. 

Os astrólogos – que não pensam de forma de etnoastronômica – derivam a divisão por doze dos quatro elementos e das três qualidades (cardinal, fixo e mutável). Mas, se pensarmos em termos de observação astronômica do céu (e não classificação a partir de elementos simbólicos abstratos), a divisão do ano por doze meses (com uma médida de 29,5 dias) acarreta a perda de 11 dias por ano, ou sete meses a cada 19 anos. 

O mais provável é o apagamento astrológico do décimo terceiro mês pelos próprios sumérios. Entre Escorpião e Sagitário, está a décima terceira constelação zodiacal, Oficus, representada pela serpente e/ou pela águia. Caso algum dia voltemos aos 13 meses lunares de 28 dias + 1 dia fora do tempo, como no calendário maia, haverá um novo mês equivalente ao período entre outubro e novembro. 

A Serpente Alada fica a 180 graus de Orion (o berço das estrelas, entre as constelações de Gêmeos e Touro), ancorada pelo Cruzeiro do Sul. Se o Big-bang foi uma explosão de luz vinda de Orion, origem do universo; então o novo signo aponta para o desconhecido oceano escuro, buraco negro e destino denso de todo universo. Entramos no universo pelas pleiades da ursa maior e vamos sair através deste ralo devorador de matéria e energia. 

O décimo terceiro elemento é a morte, ponto cego da imaginação simbólica. O dia de todos os santos e de finados, bem como tradições mais antigas como Halowwen e o dia da morte mexicana, podem ser considerados vestígios da celebração deste 'símbolo ausente'.

É possível que o apagamento simbólico da morte seja o motivo do desequilíbrio elemental. O planeta Terra corresponde ao elemento Terra e os céus, ao elemento Ar. A Lua, por sua vez, é universalmente associada à Água e ao feminino. O Sol é o Fogo original. Os quatro elementos nesse contexto astrológico estão em constante interação e suas interações correspondem às doze relações elementais que descrevemos. No entanto, essas relações são dinâmicas e não metafísicas. A transformação da natureza é permanente, a morte é eterna e é o 'motor contínuo' das interações. 

E o que realmente diferencia a perspectiva objetiva da ciência dos saberes simbólicos é a morte. É a morte que separa o Sol (a realidade da vida) da Lua (o universo dos sonhos) em duas esferas de existência.

Viver o sonho, sonhar a vida

Para se tecer uma investigação meta simbólica, a imaginação, depurada de suas ilusões, ajuda a construção científica e lógica do sentido, da interpretação. Não se trata apenas de metapoesia (ou de teorizações esotéricas e/ou antropológicas), os devaneios de investigação simbólica também estudam as narrativas míticas e suas ressonâncias subjetivas. Para investigar o inconsciente arcaico, a imaginação simbólica procede a uma releitura das narrativas mitológicas, fazendo associações cognitivas entre os discursos teóricos, poéticos, esotéricos, tradicionais e filosóficos – por dentro. “Experimentando” as narrativas. 

E, dessa convergência discursiva e narrativa, nascem novas imagens, novas ideias. Somos seres miméticos, mimetizamos nossas histórias de outras. Um dia, seremos mimetizados também. Essa é nossa vida. Nossos sonhos são simulações de nossas vidas, de nossos medos e esperanças. As estruturas narrativas reduzem a complexidade dos sonhos a histórias que simulam a polaridade entre antagonismo e coprotagonismo, entre morte e amor, entre o passado e o futuro. 

As causas de existência de antagonistas em nossas vidas e sonhos são diversas e complexas. Alguns, com inclinação para biologia, acreditam que a consciência moral (ou a distinção entre o bem e o mal) surgiu a partir do desenvolvimento de uma parte da memória filogenética da espécie humana, usada para distinguir as plantas venenosas das nutritivas. 

Outros, habitantes de um universo mais físico, pensam que o que se chama de mal (oposto à luz) é a força entrópica dos buracos negros. Outros ainda, voltados para o interior, acreditam que a natureza é perfeita e que o mal é um ruído subjetivo que nos impede de viver plenamente essa perfeição. São histórias das origens do mal e das causas ocultas de nosso antagonismo conosco mesmo. 

Mais complexas ainda são as metanarrativas sobre coprotagonismo e sobre nossos sonhos de amor. Existem narrativas que desejam desmascarar a afetividade interesseira do amordependente e afirmam a superioridade do amor-dádiva; outras equiparam o amor à liberdade, consideram-no mais importante do que a própria vida. 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

o mito do orientador



 Num dia lindo e ensolarado o coelho saiu de sua toca, com o "notebook" e pôs-se a trabalhar, bem concentrado. Pouco depois passou por ali uma raposa, e viu aquele suculento coelhinho tão distraído, que chegou a salivar. No entanto, ela ficou intrigada com a atividade do coelho e aproximou-se, curiosa:

-Coelhinho, o que você está fazendo aí, tão concentrado?
-Estou redigindo a minha tese de doutorado - disse o coelho, sem tirar os olhos do trabalho.
-Hummmm... e qual é o tema da sua tese?
Ah, é uma teoria provando que os coelhos são os verdadeiros predadores naturais das raposas. A raposa ficou indignada:
-Ora!!! Isso é ridículo!!! Nós é que somos os predadores dos coelhos!
-Absolutamente! Venha comigo à minha toca que eu te mostro minha prova experimental.
O coelho e a raposa entram na toca. Poucos instantes depois ouvem-se alguns ruídos indecifráveis, alguns poucos grunhidos e depois... silêncio. Em seguida, o coelho volta, sozinho, e mais uma vez retoma aos trabalhos de sua tese, como se nada tivesse acontecido. Meia hora depois passa um lobo. Ao ver o apetitoso coelhinho tão distraído, agradece mentalmente à cadeia alimentar por estar com o seu jantar garantido. No entanto, o lobo também acha muito curioso um coelho trabalhando naquela concentração toda e resolve então saber do que se trata aquilo tudo, antes de devorar o coelhinho:
-Olá, jovem coelhinho. O que o faz trabalhar tão arduamente?
- Minha tese de doutorado, seu lobo. É uma teoria que venho desenvolvendo há algum tempo e que prova que nós, coelhos, somos os grandes predadores naturais de vários animais carnívoros, inclusive dos lobos.
O lobo não se conteve com a petulância do coelho:
-Ah! Ah! Ah! Ah! Coelhinho! Apetitoso coelhinho!
Isto é um despropósito. Nós, os lobos, é que somos os genuínos predadores naturais dos coelhos. Aliás, chega de conversa...
-Desculpe-me, mas se você quiser eu posso apresentar a minha prova experimental. Você gostaria de acompanhar-me a minha toca? O lobo não consegue
acreditar na sua boa sorte. Ambos desaparecem toca adentro. Alguns instantes depois ouvem-se uivos desesperados, ruídos de mastigação e... silêncio.
Mais uma vez o coelho retorna sozinho, impassível e volta ao trabalho de redação da sua tese, como se nada tivesse acontecido. Dentro da toca do coelho vê-se uma enorme pilha de ossos ensangüentados e pelancas de diversas ex-raposas e, ao lado desta, outra pilha ainda maior de ossos e restos mortais daquilo que um dia foram lobos. Ao centro das duas pilhas de ossos, um enorme LEÃO, satisfeito, bem alimentado, palitando os dentes.
MORAL DA HISTÓRIA
1.Não importa quão absurdo seja o tema de sua tese;
2.Não importa se você não tem o mínimo fundamento científico;
3.Não importa se os seus experimentos nunca cheguem a provar sua teoria;
4.Não importa nem mesmo se suas ideias vão contra o mais óbvio dos conceitos lógicos;
5.O que importa é QUEM É SEU ORIENTADOR
(de autoria de Milhor Fernandes)

sábado, 2 de outubro de 2021

LUHMANN

 


Autopoesis & as três mídias

Máquina Mimética e Teoria Sistêmica da Comunicação


Marcelo Bolshaw GOMES1

Introdução

Mimese, mímesis ou mimésis é uma noção crítica e filosófica com uma grande variedade de significados, incluindo a reprodução teatral, a representação, a mímica - essencialmente a imitação do gesto, voz e palavras de outrem. Platão e Aristoteles definiam 'arte' como a “mimese da natureza”. Porém, eles entendiam essa simetria entre cultura e universo de modo diferente. Para Platão, o mundo sensível era uma imitação do mundo inteligível. Já Aristóteles entendia a arte como sendo uma representação significativa da realidade. A Mimese, nesse caso, é interpretativa.

Também foram Platão e Aristóteles que associaram a noção de Mimese ao seu oposto dialético, a diegese. Para a teoria narrativa estruturalista, Mimese é 'mostrar' e Diegese é 'contar'. A mimese muitas vezes foi reduzida à imagem imediata, enquanto a diegese foi generalizada em outros elementos, tais como: o texto do narrador, o pensamento do personagem, a trilha sonora, o universo narrativo. O 'tempo diegético’ e o ‘espaço diegético’ são, nessa perspectiva, o tempo e o espaço dentro da trama, com suas particularidades, limites e coerências próprias.

Mais recentemente Erich Auerbach, Zygmunt Bauman e Paul Ricoeur2 escreveram sobre a Mimese, dando ênfase à repetição cognitiva dos atos práticos da vida. Entre as contribuições mais polêmicas está a de Richard Dawkins (2007), que criou a noção de 'Meme', a unidade mínima da memória. Para ele, o Meme seria uma unidade replicadora de transmissão cultural.

Tal como os genes se propagam no pool gênico saltando de corpo para corpo através dos espermatozoides ou dos óvulos, os memes também se propagam no pool de memes saltando de cérebro para cérebro através de um processo que, num sentido amplo, pode ser chamado de imitação (DAWKINS, 2007, p. 330).

Procurando inserir as ideias de Dawkins em uma 'estrutura', Susan Blackmore redefine 'Meme' como “uma ideia, comportamento, estilo ou uso que se espalha de pessoa para pessoa dentro de uma cultura” (BLACKMORE, 2000, 65). Para ela, somos meros hospedeiros de “máquina memética”, um dispositivo de cognição coletiva que seleciona e destaca os memes, independente da vontade e da consciência humana.

E essa abordagem é criticada por vários pesquisadores, uma vez que trata o comportamento e cultura pelo ótica da Biologia (SHIFMAN, 2013; TOLEDO, 2013), minimizando a ação dos indivíduos nesse processo de replicação.

Para presente perspectiva, no entanto, essa ótica é procedente e inovadora, embora careça de um melhor enquadramento epistemológico e sociológico.

E o objetivo deste artigo é inserir a noção de máquina mimética de Blackmore no contexto sistêmico de Luhmann, uma vez que ambas focam na cognição coletiva e apresentam elementos complementares relevantes. Para tanto, procede-se a uma breve compilação da teoria luhmanniana de sistemas com ênfase na comunicação; e, posteriormente, a sua sobreposição teórica à ideia de uma máquina mimética.

História do conceito de sistema

Sistema – para o funcionalismo - é um conjunto cujos diferentes elementos interagem entre si, desempenhando funções de integração e de manutenção do sistema. A interação dos elementos produzia uma ‘homeostase’ – um equilíbrio interno responsável pela estabilidade do sistema durante o tempo. Para o funcionalismo, a comunicação já era uma mediação dos conflitos sociais (em oposição à teoria de manipulação hipodérmica e à teoria da persuasão de Lasswell).

Para a cibernética, o sistema tende para a entropia e não a homeostase; a disfunção é compreendida como ruído. Os feedbacks promovem a auto organização contra a incerteza. A comunicação passou a ser vista como um fator de aperfeiçoamento sistêmico para diminuição da entropia. A comunicação é o inverso do ruído: a comunicação objetiva a homeostase e auto regulação; o ruído é a própria manifestação da entropia e da dissolução do sistema. O sistema funcionalista era fechado; o sistema cibernético, aberto.

O estruturalismo não dá nenhum sentido especial a ideia de comunicação e a noção de estrutura toma parte das características do conceito de sistema (totalidade, unicidade), que fica então reduzido a espaços de sincronia, áreas de simultaneidade dentro de um conjunto de regras estruturais. Lévi-Strauss considera que a Estrutura Social é formada pelos sistemas de parentesco, de bens e de linguagem – por exemplo. A estrutura é invisível e está por trás dos sistemas, sendo formada por relações e conexões recorrentes, que, com o tempo, se tornam regras estruturais “ocultas”, responsáveis pela reprodução social dos sistemas.

O biólogo chileno Umberto Maturana vai redefinir a ideia de Sistema através da noção de auto referência sistêmica (o sistema que observa a si próprio) e de autopoiesis (o sistema que produz e reproduz a si mesmo). Nessa definição, o importante não é a interação dos elementos internos, mas sim a relação entre a auto-organização do sistema e seu entorno, ou ambiente externo. O novo conceito de Sistema implica também em um lado de dentro que observa um lado de fora, isto é, na noção de auto referência. A observação de si também é uma operação sistêmica com consequências no sistema/ambiente observado.

Sem diferença com relação ao entorno, não haveria auto referência. Todo o sistema que se autoproduz, que se faz unidade de diferença, se singulariza e passa a se constituir numa identidade. O sistema também ganha autonomia, uma vez que diversifica seus acoplamentos de entrada e saída do ambiente, diminuindo sua dependência estrutural do exterior3.

O sistema como redução da complexidade

Luhmann assimila e aperfeiçoa ainda mais o conceito de sistema autopoiético e autorreferente de Maturana, afirmando que o sistema é uma simplificação da complexidade exterior. E essa redefinição/desenvolvimento do conceito de Sistema tem um significado avassalador para a tradição do pensamento sociológico. O Sistema não é uma categoria analítica, mas uma forma de descrição concreta, que leva em conta a complexidade da realidade.

O sociólogo distingue quatro tipos de sistemas: o inorgânico, o biológico (a célula, o cérebro, o corpo, o meio ambiente, etc), o psíquico e social. Esses tipos de sistemas são interpenetrados uns aos outros. O inorgânico é ambiente externo para o sistema biológico, que por sua vez é ambiente para os sistemas psíquico e social. Somos sistemas biológicos, com suporte inorgânico, que se observam através de um sistema psíquico condicionado por um sistema social. Os quatro sistemas tem interseções e entornos próprios, incluindo/excluindo parte dos outros dois sistemas. Nesse modelo sistêmico não existe nem ação nem estrutura, nem sujeito nem objetividade, apenas o sistema/entorno, em seu crescimento através de operações de diferenciação voltadas para dentro, reduzindo a complexidade externa através da auto-organização. Os sistemas se assemelham a filtros da complexidade. A autopoiesis ou auto-organização é assim uma conquista de autonomia do sistema em relação às incertezas do ambiente externo.

Luhmann assimila e supera várias etapas da reflexão sociológica: a sociologia das representações coletivas (Durkheim), as sociologias da ação social (Weber, interacionismo simbólico, etnometodologia), a sociologia da estrutura (derivada de Lévi-Strauss), as sociologias que combinam função e estrutura (Parsons, Habermas) e a sociologia das práticas sociais (Bourdieu, Giddens).

Habermas desenvolve uma concepção de sociedade que leva em conta a centralidade das ações comunicativas. Mas, Habermas acredita no intercâmbio simbólico entre as consciências, pressupõe, uma base consensual partilhada entre os sujeitos: a intersubjetividade.

Para Luhmann, no entanto, a sociedade não é formada pelas relações entre os seres humanos, a intersubjetividade não existe de fato. As pessoas estão no entorno do sistema social. Elas estão fora do sistema e o sistema está parcialmente dentro delas. Luhmann nos fornece outra forma de pensar e de descrever a sociedade.

Comunicação

A comunicação, para Luhmann, é a permuta (de energia, informação, recursos) entre sistemas sociais e não entre pessoas. Não há transferência de informação ou de conteúdos semânticos entre emissor e receptor. A Comunicação é produção de redundância instantânea (uma Mimese entre sistemas). Luhmann considera que a comunicação como unidade discreta de análise sociológica é mais precisa do que a Ação Social ou a Ação Comunicativa (RODRIGUES, NEVES, 2017, 86).

Há três tipos de comunicação segundo a duração: a interação, a organização e a sociedade. A interação é a relação imediata; a organização é menos breve e serve para tomar decisões; e a própria sociedade, formada por interações e organizações, também pode ser considerada uma comunicação na perspectiva histórica. Assim, o sistema social (imbricado aos sistemas biológico e cognitivo) é formado por comunicações (trocas sistêmicas).

Nos sistemas sociais mais evoluídos, Luhmann identifica quatro subsistemas funcionais: adaptação (economia), realização de metas (política), integração (sistema legal), manutenção de padrões latentes (instituições culturais como a escola, a igreja e … os meios de comunicação).

Segundo Luhmann, "a função dos meios de comunicação consiste em orquestrar a auto-observação do sistema social" (2005, 158). Para ele, os meios de comunicação não buscam a integração social como pensa funcionalismo ou a manipulação da realidade como imagina a teoria crítica. Sua função é “observar os observadores”, criando uma “memória sistêmica”, um "background" para as futuras comunicações da sociedade. É através dessa memória sistêmica de fundo que a realidade é contantemente reconstruída.

As mudanças do paradigma científico no século passado, tem como ponto central a questão do observador. A visão do universo depende do local em que se está. Enquanto para sociologia clássica existe um sujeito-observador e um objeto observado em uma realidade empiricamente dada; para Luhmann, o que há são sistemas formando uma realidade. O que chamamos de indivíduo, ator ou agente; Luhmann chama de sistema psíquico (a sede da auto referência). É uma perspectiva complexa e um construtivismo radical.

A ciência tradicional oscila entre o empirismo e o racionalismo, entre o indutivo e o dedutivo. Na sociologia de Luhmann, a (auto) observação é uma operação de diferenciação sistêmica. Os sistemas se observam através da observação direta e das observações de segunda ordem. Luhmann pode parecer relativista e subjetivista à primeira vista, mas não é. Ele é evolucionista, mas não de uma forma redutora; pois não se trata de seleção externa, mas sim de auto-organização interno. O sistema evolui na medida em que conquista autonomia. Sua teoria parece bastante abstrata, mas é voltada para observação e descrição de sistemas e ambientes concretos.

A máquina trimidiática

Para teoria das mídias de Harry Pross (APUD BAITTELLO JR, 2010: 63), a mídia primária é o corpo e a comunicação presencial (sons, ruídos, gestos, aparência, odores e, principalmente, a fala). A mídia secundária são as marcas sobre outros suportes (pedras, ossos, metal, couro, madeira e, principalmente, papel). A escrita, expressão maior da mídia secundária, amplia a memória, possibilitando a comunicação através do tempo/espaço e a história. E a mídia terciária, surge com a eletricidade e marca o retorno da imagem e da simultaneidade do tempo.

Ricoeur associa o aspecto prescritivo da linguagem à função poética e ao futuro; o aspecto narrativo, à função metalinguística e ao passado; e o aspecto descritivo, à função referencial e ao presente. O aspecto prescritivo é reduzido a uma dimensão 'moral' do presente – e não como uma projeção do futuro, como o exercício da imaginação no horizonte dos possíveis (GOMES, 2012).

Na perspectiva sistêmica contemporânea, o sistema social é englobado pelo sistema cognitivo, que por sua vez é englobado pelo sistema orgânico (meio ambiente do carbono, que tem o inorgânico como lado de fora). A mídia começa e acaba no corpo (que somos nós no sistema orgânico) e é transversal aos sistemas cognitivo (mídia secundária) e social (mídia elétrica).

Nesse novo modelo, o aspecto descritivo da linguagem corresponde à mídia primária e ao corpo; o aspecto narrativo, à mídia secundária e à memória; e o aspecto prescritivo, à mídia terciária e à simulação virtual do tempo.

Entre o sistema social e o cognitivo, está a linguagem (o software da máquina) e as operações de memória e simulação. A memória é uma mimese sistêmica que vem do corpo e a simulação é uma mímese de retorno do sistema social. A simulação é interior ao sistema social é feita por aparelhos elétricos. A mímese terciária é social; a mimese secundária é linguística; e a mimese primária é corporal, presencial e imediata (está sempre no aqui e agora).

A Máquina Mimética é formada pela alternância recorrente entre as operações de memória e de simulação (Mimese e Diegese sistêmicas) através das três mídias, transversais aos aos sistemas biológico, cognitivo e social.

As três mimesis e a escala de abstração

Para detalhar ainda mais a dinâmica desta máquina transsistêmica, é possível observar como as mídias primária, secundária e terciária interagem com a dupla Mimese e Diagese – observando sua tendência para simplificação e para subjetivação.

Por exemplo, na comunicação primária, o pensamento de Platão funciona bem: a Mimese é corporal, espontânea e presencial. A Diegesis é o conteúdo comunicado, a ‘ideia’. Na comunicação secundária, há uma inversão e os conceitos de Aristóteles são mais aplicáveis: a Mimese é uma representação mental codificada da realidade; e a Diegesis corresponde à duração e as intensidades do discurso. No contexto da comunicação terciária, há uma duplicação da polaridade. Mimetiza-se o corpo e a representação do mundo descontextualizada; e a Diegesis produz ao mesmo tempo o sentido e o tempo da narrativa (GOMES, 2019).

Pensando o tempo de forma simultânea, há a dialética entre passado e presente, a máquina do pensamento (a Língua, o sistema de codificação linguística), que produz informação e cujo objetivo principal é a organização da memória social. O passado invocado pelas mídias secundárias alimenta a mídia primária, o corpo contextualizado no presente. Há também a dialética entre o presente e o futuro, a máquina da imaginação (na verdade, um conjunto aberto de mecanismos de triagem, associação e analogia de conteúdos simbólicos), que registra a experiência audiovisual e não informação, com o objetivo de antecipar e simular situações possíveis de se configurar. Aqui são as simulações dos futuros possíveis que fornecem probabilidades para o presente se organizar. Essas duas máquinas ou dialéticas inciendem sobre o corpo no presente, formando assim uma terceira máquina, a máquina trimidiática enraizada no corpo, extendida através da linguagem e de ferramentas tecnológicas.

Tabela 1 – mídia x mimesis


MIMESE

DIEGESE

Mídia primária

Memória do corpo

Ideia, arquétipos

Mídia secundária

Representações Mentais

História, Intriga narrativa

Mídia terciária

Luz e Som

Emoções, valores, sentimentos

Elaborada pelo autor

No paradigma presencial da mídia primária, a Mimese é a memória do corpo, a imitação de gestos, sons, palavras. E a Diegese é o conteúdo do que transmitido: lendas, preces, conceitos. Segue-se assim o modelo de Platão em que o corpo mimetiza o universo arquetípico universal. A Mimese é corporal, espontânea e presencial. A Diegese é o conteúdo comunicado, a ‘ideia’.

Na comunicação secundária, há uma inversão e os conceitos de Aristóteles são mais aplicáveis: a Mimese é uma representação mental foneticamente codificada da realidade; e a Diegese corresponde à duração e as intensidades do discurso no texto. Com o aparecimento da mídia secundária, surge também a Máquina Social de Pensamento. Agora, a Mimese é a memória social objetiva, descontextualizada e mimetizada através de representações mentais codificadas; e a Diegese, por sua vez, corresponde à noção de História e/ou estrutura narrativa. A mídia secundária não anula a primária, mas se sobrepõe a ela. Assim, a Mimese e Diegese primárias continuam ativas nos processos de Mimese e Diegese secundários.

E com o advento da mídia terciária e da Máquina Social da Imaginação, a Mimese tornou-se uma experiência do corpo recontextualizada por imagens e sons mediados por tecnologia; e a Diegese se tornou uma estrutura narrativa, a intriga. A diferença fundamental entre Diegese secundária e terciária, é que a intriga histórica não tem consciência de que é uma construção poética e se acredita científica, objetiva e absoluta; enquanto a intriga narrativa sabe aonde quer chegar e se percebe como sendo uma estrutura metalinguística.

No contexto da comunicação terciária, também há uma nova duplicação das polaridades. Mimetiza-se o corpo (ou a Imagem) e a representação do mundo descontextualizada (Palavra). E a Diegese, nesse cenário convergente, agora corresponde à segunda realidade, aos universos narrativos paralelos que criamos para compreender nosso mundo. Nele, não mimetizamos apenas comportamentos, atitudes e conceitos, mas sobretudo emoções, sentimentos, intenções, subjetividade. Os sistemas se comunicam, não através de Memes ou unidades de sentido, mas sim sinais replicados cada vez mais simples na escala de abstração de Flusser (2008, 40-45), sempre tentando se organizar mais para diminuir o próprio ruído e a complexidade do ambiente e dos outros sistemas a eles externos.

Conclusão

Em outros textos, comparou-se essa teoria das três mídias ao conjunto das três funções cognitivas midiáticas – a memória do passado, a percepção do presente e a simulação do futuro e ao mito das moiras.

Nessa analogia, as tecelãs do destino são o antagonista estrutural do herói contemporâneo, o protagonista que luta contra as estruturas narrativas do tempo. A tripla estrutura narrativa das três mídias (primária, secundária e terciária) forma uma máquina social de fabricação do tempo.

As moiras são, na mitologia grega, as três irmãs que determinam o destino tanto dos deuses quanto dos seres humanos: Cloto (que significa ‘fiar’) que segura o fuso e tece o fio da vida; Láquesis (ou ‘sortear’) que puxa e enrola o fio tecido; Átropos (‘afastar’) que corta o fio da vida. O tear é a Roda da Fortuna: as voltas da roda posicionam os fios ora no topo, ora no fundo, explicando assim os períodos de azar ou sorte de todos. Elas não podem ser manipuladas e nada se pode fazer para detê-las ou ganhar-lhes o favor. As três Moiras representam a existência inflexível do tempo.

As moiras também representam as diferentes dimensões de ‘efeito de sentido’ das narrativas. As narrativas têm uma dimensão emocional (causam alegria, medo, raiva, amor) que funciona a partir da noção de pertencimento, da ampliação e/ou reafirmação da identidade. Essa dimensão corresponde à bruxa do presente. Também têm uma dimensão psicológica em que se associa e compara as estórias simbólicas à história biográfica, representando a bruxa do passado. E as narrativas possuem ainda uma dimensão universal e sagrada em que nosso espírito sonha seus destinos – é a bruxa do futuro. Além das emoções e das tradições, essa é a dimensão que, através da imaginação, nos faz reavaliar a vida.

E esses três princípios – a narração do passado, a descrição do presente e a previsão do futuro – formam a imagem das 'tecelãs da intriga' – as moiras do destino, representando essa máquina social de fabricação do tempo formado pelas três mídias (GOMES, 2013).

Traduzindo esses três principios narrativos para a linguagem da teoria de sistemas luhmanniana, pode-se falar em três operações sistêmicas: memória, auto observação descritiva e simulação de possibilidades. Essas três operações formam o mecanismo de autopoesis, de criatividade sistêmica.

As narrativas de ficção científica entendam essa máquina social como um inimigo ficcional a ser vencido. Mas, essa máquina mimética é também um dispositivo sistêmico real em nossa vidas. A sociedade distópica, em que a tecnologia aumenta as desigualdades, é uma simulação projetada (um meme) pela própria máquina trimidiática para nos alertar sobre um futuro possível. A utopia social tecnológia, por outro lado, é um meme que sugere o uso da máquina mimética para um aprendizado individualizado e uma relação ecológica com o meio ambiente.

Talvez seja necessário lembrar que nós somos essa máquina e que, o que está em jogo, é o final de nossa história enquanto espécie. Tudo depende do que mimetizarmos a partir de agora e da replicação desses memes através dos sistemas bio/psico/sociais.



Referências

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BAITELLO JR., Norval. A serpente, a maçã e o holograma – esboços para uma teoria da mídia. São Paulo: Paulus, 2010.

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___ Imagem, palavra e música - mimese e diegesis nas narrativas audiovisuais. Revista Estética n°18. São Paulo: USP, 2019. http://estetica.webhostusp.sti.usp.br/index.php/estetica/article/view/42

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SHIFMAN, Limor. Memes In Digital Culture. Cambridge: MIT Press, 2013.


1 Doutor em Ciências Sociais, professor-pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. marcelobolshaw@gmail.com

2 Segundo Ricoeur (1994, 1995, 1997), por exemplo, Mimese não é uma cópia, réplica do idêntico, porque a Diegese produz sentido através da interpretação (1994, 60). Para Ricoeur, Mimese é a imitação criativa ou representação interpretativa da ação, através do qual aprendemos atitudes, comportamentos e nos comunicamos; e Diegese (ou Intriga) é o agenciamento de fatos, sujeitos e cenários – elementos estruturantes das narrativas e da vida – segundo o desfecho desejado. Ricoeur também estabelece (1994, 85-132) três mimeses indissociáveis: a mimese criativa do enunciador; a auto configuração estrutural das narrativas; e a repetição cognitiva de cada leitor. A Diegese (ou Intriga) seria essa tríplice estrutura de Mimesis narrativas.

3 O sistema é algo que estabelece relações consigo mesmo e se diferencia dessas relações frente às de seu entorno. Há quatro formas de diferenciação: segmentação (horizontal), estratificação (vertical), centro-periférica e diferenciação de sistemas funcionais.