sábado, 12 de outubro de 2019

Cinema e Percepção


Do Eu Superior ao Corpo 

O místico Ramana Maharshi (1972) desenvolve uma analogia entre cinema e percepção, em que se observa o processo cognitivo descendente, do abstrato para o concreto.

CINEMA
 PERCEPÇÃO
DIMENSÃO COGNITIVA
A luminosidade acessa ou ausente.
A consciência
A CONSCIÊNCIA
A lâmpada no interior do equipamento
O Eu superior, self ou esfera luminosa.
A lente diante da lâmpada
A Mente Coletiva
A MENTE
A luz da lâmpada atravessa lente formando um foco
A Consciência se projeta através da mente gerando a atenção e o tempo contínuo.
O EGO
A luz que atravessa a lente e ilumina a tela
A Consciência atravessa a Mente e o Ego formando uma Personalidade ou um eu observador (ou jiva).
O EU OBSERVADOR OU A PERSONALIDADE
A película, as memórias externas gravadas e enviadas de fora.
A imaginação simbólica, o fluxo das imagens narrativas, arquétipos, memórias.
A LINGUAGEM SIMBÓLICA
Os vários tipos de imagem na tela
Várias formas e nomes, que surgem como objetos percebidos à luz do mundo.
A REALIDADE HOLOGRÁFICA
Projetor de filmes
Corpo
REALIDADE EXTERIOR

Em um primeiro momento, a Consciência é a percepção. Representa a luz que projetada sob diferentes objetos. Se prestarmos atenção ao que vemos, os olhos se iluminam; se buscarmos perceber os sons, a consciência se focara em nossa capacidade auditiva; e assim por diante. Nesta analogia, a consciência é a atenção que se desloca segundo nossa percepção seletiva. Assim, como a luz é produzida por uma lâmpada, a consciência é produzida por um suporte, de uma esfera luminosa, o Self, Eu superior ou centelha divina. E este é o segundo momento da comparação de Mararshi.
O terceiro momento desta analogia consiste na lente que a luz da lâmpada transpassa na projeção de um filme e a Mente Coletiva e externa por onde consciência do Self passa ao perceber as diferentes dimensões (racional, sentimental, sensorial) da realidade. A mente aqui não é individual, e sim um filtro social, intersubjetivamente construído.
No quarto momento do processo, a Consciência projeta sua luz através da Mente Coletiva com assertividade, formando um foco, um centro direcional da consciência imediata chamado de 'atenção'. A criação do Ego, este centro de direcionamento da consciência, cria também o tempo contínuo, a narrativa do passado e as esperanças futuras.
No quinto passo da analogia de Maharshi surge a comparação entre a projeção do filme e o "Observador", isto e, um eu-foco formado para observar o pensamento, a mente e as percepções da consciência. Este observador é um determinado enquadramento autoconsciente que criamos para nos tratar na terceira pessoa e existe em várias meditações. Nesse ponto também se pode localizar a Personalidade – uma vez que apenas uma minoria observa ao próprio filme, preferindo simplesmente projetá-lo. Portanto, desenvolver um 'Eu Observador' ou um 'Eu Exibidor' (a Personalidade) vai depender da consciência em relação ao Ego e à Mente.
No sexto nível da analogia, surge um elemento externo: a película. E, internamente, os fotogramas do filme projetado correspondem às variadas formas mentais (arquétipos, memórias, imagens) que formam o pensamento e a imaginação simbólica. Agora, percebe-se que realidade é semelhante à projeção das imagens na tela do cinema. A diferença é apenas no modo de representação: no cinema as imagens são projeções bidimensionais; e a realidade é holográfica e solida.
Mas, também, tanto no cinema como na percepção, há as imagens de referências externas (sensoriais, mentais, emocionais); há imagens produzidas pela memória, outras pela imaginação. O sétimo nível da percepção, então, é a interpretação seletiva das imagens, em que classificamos involuntariamente os diferentes itens de nossa percepção.
E finalmente, há o mecanismo responsável pela projeção das imagens, a máquina ou o corpo. Este mecanismo recebe as imagens automaticamente e não tem consciência plena de seu significado. Chama-se aqui essa instância de espaço exterior. 

O importante nessa analogia entre cinema e percepção é visualizar o processo cognitivo em seu conjunto em sete etapas sucessivas: a consciência (a luz e o self), a mente coletiva, o ego, o observador/personalidade, a linguagem simbólica, a realidade interior e a realidade exterior.

MAHARSHI, Ramana. Quem sou Eu?  1972.

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

THE JOKER


A comunidade das mágoas e as elites psicopatas
Ser vítima é empoderar o Outro em detrimento de Si e ser psicopata é empoderar ao ego em detrimento dos outros. 
A condição emocional de vítima é produzida a partir de objetos de ódio e da partilha de ressentimentos em comunidades de afeto. 
O Outro é objeto de ódio, mas também é o herói salvador. Cria-se assim a elite psicopata. Chegam as eleições e as vítimas, incapazes de assumir responsabilidade e orientadas pelo espírito de rebanho, votam nos psicopatas do bem contra os psicopatas do mal, ou vice-versa. Tanto faz.
A ‘cultura de vítimas’ explica a falência da democracia representativa e a ascensão de Trump & Bolsonaro.
A utopia democrática anarquista só é possível sem o pacto entre ovelhas, pastores e lobos; quando cada um matar seu psicopata interior e empoderar a vítima dentro de si. 
O poder é injusto, corruto e violento em virtude do consentimento da maioria silenciosa. Porque a maioria prefere ‘lamber as próprias feridas’ ao invés de se empoderar e dividir o peso do futuro.

A difícil representação do irracional
O filme Joker (no Brasil, Coringa)[1] é estrelado por Joaquin Phoenix como Arthur Fleck, um palhaço fracassado que enlouquece, comete vários crimes e leva ao caos a cidade de Gotham.
O Coringa é uma carta do baralho que pode substituir todas as outras em vários jogos. A palavra ‘coringa’ passou a ser utilizada como adjetivo para um elemento múltiplo que pode substituir outros especializados, como um jogador que joga em várias posições.
A carta não faz parte dos naipes numerados e tem sua origem nos Arcanos Maiores do Tarô, O Louco, que representa o vazio (o número zero) e o eternamente passageiro. Como mito foi associado a deuses mensageiros (Hermes) e mentirosos (Loki), como personagem foi dramatizado como bobo da corte e as tradições cômicas e críticas que deram origem a palhaçaria. ‘Ser palhaço’ significa zombar de si mesmo, em oposição ao comediante, que zomba do outro. A palhaçaria surgiu então como uma forma de crítica indireta ao poder, de dizer a verdade de forma indireta.
Nesse contexto analítico, o personagem Coringa é o avô dos palhaços assassinos, o primeiro a espelhar uma crítica desconcertando a própria palhaçaria, que por detrás da alegria está o desejo de destruição da ordem social. “A alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo” – já nos avisa o ditado popular. O personagem encarna a vingança daquele que, de sofrer bulling e humilhações, passou a adotar a auto depreciação como uma forma engraçada de ser aceito por seus opressores.
As gerações mais recentes não sabem, mas o Coringa não era originalmente o arqui-inimigo de Batman. Ele era apenas mais um entre os muitos vilões bizarros do homem-morcego[2]. Porém, a partir de meados dos anos 80, três narrativas colocam o palhaço do crime em primeiro plano, como o antagonista central de sua história e não apenas de suas estórias: Batman: O Cavaleiro das Trevas (1986) de Frank Miller; A piada mortal (1988), texto de Alan Moore e desenhos de Brian Bolland; e Asylum Arkhaman (1990) roteiro de Grant Morrison, arte de Dave McKean.
Miller e Moore fazem de Batman uma representação heroica de nossa sombra psíquica, de nosso lado mais obscuro. Daí vem, inclusive, o nome 'Cavaleiro das Trevas'. O Coringa continua sendo inimigo do Batman, mas é ele quem o ocupa o lugar de protagonista narrativo da estória, representando a loucura e o caos, enquanto o homem-morcego é seu antagonista narrativo, representando a lei e a ordem, a racionalidade. O Coringa de Moore é mais poético e niilista; o de Miller mais irracional e imprevisível; mas, em ambos o personagem não é movido pelo dinheiro ou pelo poder, mas simplesmente pelo desejo de estabelecer o caos através da violência.
A irracionalidade do Coringa como tema central da narrativa de Batman como anti-herói reaparece na genial estória de Grant Morrison, Asylum Arkhaman (1990). O Asilo Arkham é um manicômio psiquiátrico localizado em Gotham City onde se concentram todos os vilões insanos de Batman[3].
Para compreende melhor esse anarquismo violento do palhaço criminoso, o filme de Todd Phillips / Joaquin Phoenix deseja explicar racionalmente como Artur se transformou neste Coringa arqui-inimigo do Batman. O criminoso crê que é filho bastardo de Thomas Wayne e meio irmão de Bruce (Batman no futuro).
No entanto, toda tentativa de explicar racionalmente um personagem que representa o irracional é redutora. O Coringa tem muitas faces e o filme acaba reduzindo o personagem a um dos aspectos daquilo que ele simboliza. O filme é bom, mas o personagem tornou-se patético e violento, perdeu a alegria inventiva, sua criatividade, o senso de humor que caracterizou outras versões (como a icônica interpretação de Cesar Romero na tele série de 1966 ou a performance de Jack Nicholson no filme de gótico de Tim Burton em 1989; ou mesmo a violência frenética de Heath Ledger nos filmes anteriores da franquia).



[1] Filme norte americano de 2019, dirigido por Todd Phillips, que co-escreveu o roteiro com Scott Silver; produzido pela Village Roadshow Pictures, DC Films, Sikelia Productions, Joint Effort Productions e Green Hat Films e distribuído pela Warner Bros. Pictures, faz parte da DC Black, uma série de filmes baseados nos personagens da DC separados do Universo Estendido DC.
[2] Nos anos 30 e 40, os inimigos eram o Coringa, Mulher Gato (a sensual Selina Kyle), Duas Caras (o ex-promotor Harvey Dent), Pinguim (Oswald Chesterfield Cobblepot), Chapeleiro Maluco (Jervis Tetch), o Charada (Edward Nygma) e o Espantalho (Jonathan Crane). Na Idade de Prata, surgiram Sr. Frio (Victor Fries), Hera Venenosa (Dra. Pamela Lillian Isley) e Ra's Al Ghul (líder da Liga das Sombras e pai de Talia Al Ghul, uma das paixões de Batman). Nos anos 80, temos Killer Croc (Waylon Jones), o Máscara Negra (Roman Sionis) e o Ventríloquo (Arnold Wesker) e seu boneco Scarface. Bane e Harley Quinn (Harleen Quinzel) surgiram nos anos 90, e, em 2003, o Silêncio (Thomas Elliot, amigo de infância de Bruce Wayne).
[3] A narrativa descontínua do roteiro de Morrison e a arte excecional McKean dão a essa Grafic Novel o status de obra de arte. Apesar do sucesso da estória em quadrinhos, Asilo Arkham ainda foi filmado, mas foi adaptado para vídeo game em dois jogos lançados para Xbox 360, Playstation 3 e PC.