quinta-feira, 29 de outubro de 2020

feminismo1

 

FEMINISMO, LUTA DE CLASSES E MOVIMENTOS IDENTITÁRIOS

Este texto é para você que - como Nancy Fraser - acha que a afirmação de identidades individuais divide a luta política contra o capitalismo.



Marcelo Bolshaw Gomes1

  1. Introdução

Por uma questão de honestidade, temos que declarar apriori que a liberdade (de escolha e do Ser2) é inversamente proporcional à identidade cultural e pessoal, imagens de pertencimento que fazemos de nós mesmos - que sempre inclui apenas alguns poucos elementos simbólicos em detrimento de muitos. A identidade é uma entidade exclusora, que aprisiona simbolicamente o homem. O homem livre é aquele que não se identifica com nada, não tem raça nem sexo, que não é ninguém. Assim, toda identidade territorial é um convite para o fascismo. E até mesmo a identidade humana em relação ao meio ambiente nos parece limitar novas possibilidades.

Portanto, somos totalmente suspeitos para tratar de um tema que não nos diz respeito: que a luta política pela afirmação das identidades étnicas e de gênero estão fragmentando os movimentos sociais e os partidos de esquerda. E, talvez, por isso mesmo, por não termos 'lugar de fala' sobre o tema, tenhamos sim alguma coisa nova a dizer a respeito. Justamente pela 'não identidade' com os diversos pontos de vista desse debate.

Um primeiro ponto a esclarecer é que o movimento feminista não parece ser um movimento identitário equiparável às lutas anti racistas e LGBT. Mas, uma parte do movimento feminista acolheu essa bandeiras e acabou se confundindo com elas. Hoje é comum ver a extrema direita (Trump, Bolsonaro, etc) combater o feminismo criticando moralmente seus aliados.

O mesmo equivoco ocorre com a esquerda ortodoxa, que considera que o feminismo e seus agregados estão 'dividindo o movimento' político anti capitalista e levando a extrema direita novamente ao poder. Para esses: “A classe nos une, o gênero nos divide” (VAZQUEZ 2018). E, assim, é preciso derrotar o capitalismo antes e o patriarcado, depois. E é esse argumento que vamos aqui contestar3.

  1. Homens falando de mulher

Para essa contestação descabida, convocamos alguns autores 'bem' masculinos, portanto, também suspeitos e ao mesmo distantes do debate atual: Morin, Bourdieu e Enriquez.

Para Edgar Morin (1977), a contracultura representou uma 'revolução feminina' (e não necessariamente feminista) em termos de valores. Morin acredita que a entrada das mulheres no mercado de trabalho e na vida social as tornou sujeitas de si, gerando uma 'desobjetificação' do feminino e da natureza. Para ele, a natureza deixa de ser representada como um objeto a ser explorado, deixa de ser visto como algo 'econômico' e quantitativo para ser como algo ecológico e qualitativa. O valor de troca uniforme-serial do modelo industrial é substituído pela noção de biodiversidade em diferentes níveis, de que a riqueza está, não em possuir uma grande quantidade de uma única coisa, mas pequenas quantidades de muitas coisas.

Outra contribuição masculina relevante é a de Pierre Bourdieu, em seu livro A Dominação Masculina (2002). Bourdieu não utiliza o conceito de 'Gênero', mas sim os de 'violência simbólica', 'habitus' e 'arbitrário cultural' para caracterizar os mecanismos de submissão semi voluntários. Para ele, é o poder simbólico que impõe significações culturais como legítimas, dissimulando e naturalizando as relações de força que as sustentam. Segundo Bourdieu, a dominação masculina é uma forma particular de violência simbólica. Uma entre outras. E não aquela que fundamenta todas as outras. Há também um certo estruturalismo sem saída, um determinismo estrutural, em que os agentes em conflito não percebem a realidade além do seu campo de ação.

Na ótica dominante, o feminino está sempre ligado à necessidade, à terra, à explicação; enquanto o masculino reconhece-se no sonho, nos céus e no planejamento do futuro. A infraestrutura está por baixo; a superestrutura, em cima. Talvez por isso, o materialismo tenha sido tão invocado pelas classes dominadas e os mitos tenham tantas vezes sida considerada ideologia da classe dominante - porque essas imposições simbólicas culturais enraizavam-se na própria dominação de gênero. Ou o que equivale a dizer que não existe como mudar a reprodução das desigualdades entre os sexos porque nós mesmos estamos envolvidos nessa reprodução.

Menos fatalista e mais focado em uma explicação histórica de conjunto, a sociologia clínica de Eugenie Enriquez (1991) entende que o vínculo social de exploração entre os sexos é o modelo para a dominação entre grupos étnicos e, depois, de classes sociais. Se Bourdieu antecipa a noção de 'Gênero' de Joan Scott e das feministas pós estruturalistas; pode-se dizer que Enriquez equivale a Angela Jones e a interseccionalidade entre sexo, raça e classe.

Hoje existem várias mulheres que desenvolveram essa ideia de que a exploração feminina é anterior (e serve de base sobre a qual se ergue) a exploração social. Citamos algumas em seguida.

  1. As mulheres por elas próprias

Se você for marxista, acha que a exploração antecede a dominação. A dominação é necessário para exploração. Já se você for weberiano, ou mesmo gostar de Michel Foucault, pensa que a dominação – o desejo de impor sua vontade – é o fator primário e que a exploração econômica é apenas um usufruto da posse do outro. Porém, se você for uma mulher, essa distinção entre ser explorada e ser dominada não vai fazer muito sentido.

Mesmo assim existem feministas mais weberianas, como Barroso (2018) que problematiza a exploração e a dominação a partir da perspectiva de que o capitalismo está estruturalmente ligado ao patriarcado e ao racismo — não como legado, mas como necessidade. Enquanto outras preferem abordagens marxistas, como Kon (2002), que revisa discussões recentes sobre divisão de trabalho entre gêneros na economia política; discute a distribuição ocupacional por sexo, do ponto de vista histórico até as causas das diferenças salariais.

A mais contudente pensadora marxista é Silvia Federici (2019), que o 'trabalho reprodutivo' e 'de cuidados' que as mulheres fazem de graça é a base que torna possível o capitalismo. As mulheres, invisíveis, seriam a infraestrutura familar da infraestrutura social. Nos anos 70, Frederici foi uma das impulsoras das campanhas que começaram a reivindicar um salário para o trabalho doméstico realizado pelas mulheres sem nenhuma retribuição.

  1. Conclusão

E o que aprendemos com essas ideias?

Com Morin aprendemos que, para alterar a forma predatória pela qual o ser humano explora a natureza, não bastar extinguir a exploração do homem pelo homem, mas também a exploração do homem sobre a mulher. Com Bourdieu descobrimos que apesar do gênero ser uma violência simbólica não apenas contra as mulheres mas também contra os homens, esses últimos não são totalmente confiáveis no que se refere a abrir mão de seus interesses. Com Enriquez sonhamos com a possibilidade de reinventar o laço social.

As mulheres (sempre mais práticas sem contudo serem menos teóricas) nos ensinam todos os dias à resiliência e à adaptação aos novos tempos.

E, combinamos, meninos e meninas concordam que os tempos são realmente novos. A divisão social do trabalho por gênero colapsou. Acumulação primária de capital pela família se descapitalizou. O modelo patricarcal em que o capitalismo se organizou está ruindo.

No século que vem, os historiadores vão achar graça dos que acreditaram que as eleições de Trump e Bolsonaro eram mais importantes do que a mudança histórica global do comportamento feminino depois de muitos séculos de opressão. Eles ririam do fato de não percebemos que personagens como o presidente Trump e o capitão inominável serem meros catalizadores do futuro e que as mudanças estavam apenas começando.


REFERÊNCIAS


BARROSO, Milena Fernandes. Notas para o debate das relações de exploração-opressão na sociedade patriarcal-racista-capitalista. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 133, p. 446-462, set./dez. 2018 http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.153


BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro: Editora Bertrant Brasil, 2002.


ENRIQUEZ, E. Da Horda ao Estado - Psicanálise do Vínculo Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.


FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista; tradução de Coletivo Sycorax — São Paulo: Elefante, 2019. 388 p.


KON, Anita. Economia Política do Gênero: Determinantes da Divisão do Trabalho. Revista de Economia Política, vol. 22, nº 3 (87), pp. 473-490, julho-setembro/2002.


MORIN, Edgar. Cultura de Massas - o Espírito dos Tempos II (Necrose). Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1977.


VAZQUEZ, Ana Carolina Brandão. A classe nos une, o gênero nos divide: imbricações entre patriarcado e capitalismo. Argum., Vitória, v. 10, n. 2, p. 135-147, maio/ago. 2018.



1 Homem branco, heterossexual e pequeno-burguês.

2“Liberdade de Escolha” é a 'liberdade de alguma coisa', ou a capacidade de decidir entre diferentes possibiidades. E “Liberdade do Ser” é a 'liberdade para alguma coisa', o sentir-se capaz de adaptação e mudança.

3Argumento já bem contestado pelo feminismo interseccional: https://www.geledes.org.br/sindrome-cansei-da-feminista-branca-uma-resposta-nancy-fraser/