quinta-feira, 9 de novembro de 2023

prece do jogador

Jogai, Senhor, Jogai, 

Seus dados divinos

Os nossos destinos, jogai.

Dai-nos, hoje, nosso fair-play
Não nos deixei
Ser juiz com simpatia
nem vencedor sem empatia.

Que as derrotas nos ensine a melhorar. 

E livrai-nos dos ruídos do azar
e de todo risco sem valia.

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

autocolonização


 Eu sou um espírito colonizador de mundos 
e um corpo domesticado pelas estrelas.

Sou a consciência universal em seu caminho de retorno, exploro o subterrâneo material, as durezas finitas do entorno. 

Também sou um anfitrião colonizado, o macaco abduzido; hospedeiro simbiótico geneticamente modificado, culturalmente identificado e definido.

Sou Eu, esse conflito entre o viajante e a pousada; um eternamente passageiro; o outro, sempre relativo a cada. 

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Os três filtros*

 


A entropia reinava e o ruído era constante. 

Porém, saindo da polissemia geral, um informante agendou uma entrega de dados para fazer sentido, e, logo após o acesso remoto, foi declarando:

- Você não emula o que me relataram a respeito do outro terminal  ...

Nem chegou a completar a frase e o sistema entrou em modo de segurança:

- ALERTA: Essa entrega de dados passou pelos três filtros do Gatekeaper?

- Filtros? Gatekeaper? - Indagou o informante.

 - Gatekeaper é o guardião do portal da comunicação digital. O portal é formado por um protocolo de três filtros: Ethos, Pathos e Logos. O primeiro, Ethos, é o filtro da VERDADE: Você tem certeza de que esse fato é verdadeiro?

- Não. Não tenho, não. Como posso saber? Só sei que foi o que me transmitido. Sou um mero retransmissor.

- O segundo filtro, Pathos, é o da EMPATIA: Como as pessoas envolvidas vão se sentir sendo expostas? Você gostaria que os outros também transmitissem o mesmo a seu respeito?

- Não. Não pensei no retorno do efeito de sentido sobre o objeto, não medi o feedback - reconheceu o informante.

- Existe ainda o terceiro filtro, Logos, é o da NECESSIDADE: A informação é relevante?  Resolve alguma coisa? Ajuda a comunidade?

- Não, ela não acrescenta nada a ninguém - disse envergonhado.

- O primeiro filtro não diz respeito apenas a veracidade do acontecido, mas também as suas interpretações. O segundo filtro simula os vários efeitos de sentido da informação na audiência e não só no objeto-evento informado. A informação tem uma carga afetiva. O terceiro filtro se refere a utilidade e não apenas a necessidade. A quem interessa essa informação, se é uma manipulação de verdade agradável. 

- Então,  se não é VERDADEIRO, não é BOM e nem IMPORTANTE, não passa pelos três filtros, então VAMOS DELETAR E NÃO PASSAR ADIANTE.


* Adaptação da parábola das três peneiras atribuída a Sócrates.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

etnogenesis

 Quatro dicas para quem quer assumir uma identidade indígena


1) Conheça sua árvore genealógica. A identidade nativa das Américas é baseada no conhecimento dos antepassados, não apenas os nomes, mas também em quem foram e o que fizeram. Um indígena só reconhece outro se ele souber recitar sua descendência patrilinear por dez gerações. Os critérios adotados por colonizadores (como saber realizar a cerimônia do Toré, por exemplo, como fazia antigamente a Funai) são todos relativos e arbitrários.

2) Faça um teste genético (um exame de sangue serve) provando sua ascendência, confirmando a árvore hereditária e seu pertencimento a uma comunidade nativa. A tecnologia permite validar a tradição do ponto de vista científico e legal. Depois de adotar o critério da própria identidade, precisa validar pelo critério dos outros. 

3) A identidade nativa é coletiva e baseada na unidade entre comunidade e território. Portanto, é preciso documentar que a terra em que se encontra a comunidade hoje pertenceu à etnia no passado, caso exista um pleito para sua demarcação ou desapropriação. Não basta ocupar a terra e reivindicá-la; é preciso demonstrar que ela tenha sido originalmente pertencente aos descendentes da etnia que a reclama. O IHGB é o órgão que pode atestar os documentos que comprovem a posse original da terra pela comunidade. 

4) Estude a história do povo com que você se identifica. Não assuma denominações sem entender o que significam, principalmente, nomes adotados por outras tribos. "Tapuio" - por exemplo, é uma termo pejorativo utilizado pelos tupis para caracterizar os nativos de outras etnias, do tronco linguístico Jê. Você pode estar desrespeitando seus antepassados ao invés de celebrá-los. 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

gamificação da democracia


 Uma pergunta simples: a vida é um jogo? A vida é algo que disputamos, em que há vencedores e perdedores? Acredito que não, mas que talvez a vida esteja se tornando um jogo. Ou que talvez ela seja um jogo que eu jogue sem saber. Eis um quebra-cabeça de minhas ideias, agora formando uma imagem maior e mais abrangente que o universo narrativo: o lúdico. 

O lúdico existe antes do outro, antes da história/escrita, não é exclusivamente humano. Está na base pré-verbal da atividade cognitiva. Os jogos aqui eram ritualizações das narrativas, memória e atualização das crenças arcaicas. 

Com a escrita e a história, há uma domesticação do brincar pela necessidade de atenção contínua, surgem as regras e os jogos. O lúdico passa a ser mais competitivo e se configura como uma estratégia de poder. Os jogos passam a sublimar conflitos e se tornam jogos de poder. 

Então se, por um lado, o jogo foi sendo progressivamente domesticado pelo poder e suas narrativas; por outro, o lúdico permaneceu parcialmente selvagem (a incerteza lúdica) e absorveu a estrutura linguística e cultural que o enquadrava. E agora, na pós história? O lúdico se tornou 'gamificação'? A gamificação das práticas sociais ameaça a democracia como método de decisão coletiva?

Baixe aqui

segunda-feira, 17 de julho de 2023

amizade


O pequeno Alexandre Magno era aluno do mestre Aristóteles.

Certo dia, o garoto perguntou: "como reconhecer quem é amigo verdadeiro?"

Mestre Ari disse: "Há amigos por utilidade, por prazer e por caráter". Todos três isoladamente são amizades que não perduram. A amizade útil perde o interesse, a amizade por prazer acaba com dinheiro e a amizade por caráter é distante.

"A verdadeira amizade, no entanto", concluiu o filósofo, "é aquela que tem os três elementos (necessidade, divertimento e ética) e permanece durante toda vida".

quinta-feira, 29 de junho de 2023

A revolução dos gatos

O tédio reinava naquele prisão. Os dias passavam e os presos fumavam suas vidas, morrendo preguiçosamente. O egoísmo era uma questão de sobrevivência.

Foi então que, ninguém sabe dizer como nem porque, surgiu um gato.

Um gato e todos se encantaram ou 'engataram', oferecendo petiscos e carinhos, em um festival de afeto e estima. O desenvolvimento da empatia e do cuidado com um outro ser vivo tornaram os presos pessoas melhores, mais gentis e generosas. 

Os humanos, com suas possessividades, logo se enciumaram e houve disputas pelo pertencimento do felino. E as disputas se tornaram brigas. Os que não gostavam do gato o acusaram como sendo a causa e o objeto do conflito. 

A direção do prisão, então, decidiu adotar vários gatos para que todos os presos pudessem desfrutar dos benefícios de sua companhia. O comportamento de autonomia e independência, de grupo sem macho alfa nem bodes expiatórios, característico dos felinos acabava sendo adotado pelos presos. 

O presídio tornou-se um paraíso felino para felicidade de uma parte dos presos, que se tornaram seus devotos. Acreditam se tratar de seres superiores, anjos, deuses e até alienígenas. Porém, havia também os que não gostavam dos gatos. Esses passaram a ser vistos como psicopatas, pessoas sem empatia. "Não gostam de gatos e os gatos não gostam deles porque não são boas pessoas". Por outro lado, os gatos também passaram a imitar o comportamento violento dos seus donos, tornando-se mais agressivos, disputando fêmeas, território e até mesmo a posse de seus 'donos'.

“Esses gatos são demônios na forma de bicho” - gritou o pastor. “Agentes da indisciplina e da rebeldia indolente” - acusava o carcereiro sádico, que não conseguia mais ser obedecido.

E vários dos que não gostavam daquela democracia felina e de sua liberdade emocional que ignoravam ordens verticais e hierarquia impostas, se sentiram autorizados a matar os bichinhos.

A chacina foi barulhenta e durou apenas uma noite. Houve brigas e mortes humanas. Depois da morte do último gato, o silêncio gritou de dor. 

E o tédio retornou aquela prisão, com seus presos morrendo sozinhos, entregues às próprias dores.