O
PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO e O ENCANTAMENTO OCIDENTAL
Para Bruno Latour (2009), a
modernidade é um duplo artifício de simulação entre a Natureza e a Sociedade,
de forma que, através de uma série de falsas oposições, elas sejam
diferenciadas. A este dispositivo, Latour denomina "o duplo artifício do
laboratório (ou a força epistemológica do empírico e do experimental) e do
Leviatã (ou a força hermenêutica do pensamento por modelos e da
intersubjetividade)". No laboratório há uma natureza transcendente,
parcialmente construída, mas que nos ultrapassa em sua totalidade, e uma
sociedade imanente, sempre presente em todos os nossos atos triviais; no âmbito
do pensamento social, ou na metáfora do Leviatã, há, inversamente, uma natureza
imanente aos homens e uma sociedade que é mais do que a soma de seus elementos.
Mas, ao separar as relações
políticas das científicas – mas sempre apoiando a razão sobre a força e a força
sobre a razão chega-se a uma natureza selvagem e inútil (sem sociedade) e uma
sociedade artificial e morta (sem natureza).
A modernidade é uma dupla representação
em que a natureza explica o que é verdadeiro e a sociedade, o falso; em que o
poder científico representa apenas as coisas (o mundo objetivado) e o poder
político representa somente os homens. Aprendemos, na escola, que enquanto a
verdade científica é objetiva e natural; e que a verdade política é
essencialmente social, subjetiva e relativa. E nos sentimentos superiores aos
povos arcaicos porque separamos a natureza da sociedade.
Com base na crítica radical ao
etnocentrismo proposta por Latour, Viveiro de Castro (1996; 2002) enunciou a
noção de ‘perspectivismo ameríndio’ – uma contribuição brasileira à
antropologia – a inversão filosófica da ótica selvagem sobre o pensamento
científico. E desde então o ‘perspectivismo’ se tornou um exercício
paradigmático obrigatório e o mundo moderno passou a ser visto com olhos
pré-coloniais. Surgiram pensadores selvagens como Airton Krenakc e mesmo os
antropólogos críticos ao perspectivismo de Viveiros, como Turner (2009),
reconhecem o mérito epistemológico de seu modelo interpretativo.
Mas, o que o saber ocidental tem de
interessante para um selvagem? Em que a racionalidade universalista dos gregos
que forma o pensamento científico 'encanta' os povos de saber selvagem
enraizados em suas realidades específica?
A beleza, por exemplo, é definida
pelo número PHI (1,618), pela proporção matemática universal que existe na
natureza. A beleza, assim, tem um lado cultural, relativo ao lugar e ao tempo
em que se situa, mas, sobretudo, reside nessa proporção universal. A própria
matemática, e depois dela, a física, são expressões sofisticadas dessa cultura
que deseja assimilar todas as outras dentro de si. A lei da gravidade é válida
para ambos os gêneros, para todas as etnias, para todos os credos.
Os selvagens também acreditam que
seus saberes são universais e absolutos. Mas, eles não são. Eles não são
aplicáveis fora do contexto em que foram concebidos.
Para Rousseau, democracia não é para
os homens, pois somos violentos, passionais e mentirosos. A democracia é um
governo para os deuses. A verdadeira relação da democracia com os jogos
olímpicos não é que essa forma de governo se assemelhe a um jogo cuja regra os
jogadores devem respeitar, mas sim o fato que em ambos exigem de seus
participantes a superação de seus limites em um constante aperfeiçoamento,
porque em ambos os homens aspiram a se tornar deuses. E essa é a grande
originalidade da cultura grega, herança dos povos ocidentais: o desejo de se
libertar dos deuses através da tecnologia e da astúcia. O herói Odisseu é
aquele que afirma a liberdade humana diante do Olimpo. Em todas as outras
culturas tradicionais e religiões, a liberdade é vista como negativa.
“Eles
acreditam em um deus morto” – disse rindo um dos selvagens, quando
finalmente entendeu o que o padre lhes dizia. “Pior: eles acreditam que foram eles que O mataram” – disse o outro
entre gargalhadas.
A anedota perspectivista, além da crítica
ao cristianismo, mostra o espanto dos ameríndios com a liberdade subjetiva dos
colonizadores. Liberdade e culpa, expressa em um comportamento obsessivo, repressivo
e subversivo ao mesmo tempo do próprio corpo e de sua animalidade.
Também é preciso dizer que não
existe apenas um perspectivismo, mas vários. Caso a anedota fosse entre nativos
da cultura maia e asteca, conhecidas pela auto flagelação espiritual e pelo
sacrifícios masoquistas, o Deus morto teria um significado desconcertante e
especial. E o que perguntariam as tribos tupis de cultura guerreira, como os
Potiguaras ou os Tupinambás? “Com que
arma os homens ocidentais mataram Deus? Certamente com sua ciência e a
tecnologia dela derivada” – concluiriam os nativos.
Latour sustenta que, ao contrário do
que afirma Nietzsche, Deus não morreu na modernidade. Ele não está mais
presente nem na natureza e nem na sociedade, mas “continua vivo nos corações
aflitos”. A dissociação entre corpo e alma teve como resíduo colateral uma
tristeza de superioridade. E foi essa 'composição estranha' entre loucura
e violência, entre tecnologia e estupidez, esse encantamento ocidental de
uma única universalidade absoluta, que seduziu os ameríndios a imitar os corpos
europeus. Aceitar não apenas a colonização das almas, mas, sobretudo, a ‘disciplinarização’
dos corpos, das rotinas da industrialização da vida moderna.
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