quarta-feira, 17 de julho de 2019

Star Wars


GUERRA NAS ESTRELAS ACABA
Resumo: o presente texto descreve e analisa o universo narrativo Star Wars e discute seu papel tanto dentro do gênero de ficção científica audiovisual quanto para o campo dos Estudos Narrativos.

1.      Introdução
Star Wars (Guerra nas Estrelas) é uma franquia criada pelo cineasta George Lucas, estruturada em um esqueleto narrativo de doze filmes de longa-metragem: três trilogias de filmes épicos de ficção científica ‘opera soap’, um filme de animação e dois de estórias derivadas. Com A ascensão do Skywalker, programado para dezembro de 2019, Lucas pretende finalizar a narrativa principal, após 42 anos.  
O primeiro filme foi lançado em 1977 e se tornou um fenômeno inesperado de cultura midiática internacional, dando início à "blockbusters age" – período de superproduções cinematográficas que viram franquias com brinquedos, jogos, livros e outras mídias. Além disso, recebeu sete Oscar’s, teve a maior bilheteria de sua época e popularizou a ficção científica ‘opera soap’ como gênero, permitindo que outras franquias (como Star Treak e Galactica) surgirem e se desenvolvessem. 
O filme teve duas sequências - O Império Contra-ataca (1980) e Retorno do Jedi (1983) -  formando a trilogia original, em que Luke Skywalker, Han Solo e Princesa Leia lutam pela Aliança Rebelde contra o Império Galáctico e a luta contra Darth Vader, um ex-Jedi que sucumbiu ao Lado Sombrio da Força. O vilão é pai dos irmãos protagonistas Luke e Leia. Eles se recusam a matar o próprio pai e acabam fazendo com que o vilão retribua o favor, quebrando o círculo negativo de reprodução da força.
Dezesseis anos depois, surge uma segunda trilogia de filmes, chamada de ‘prequela’ - A Ameaça Fantasma (1999), Ataque dos Clones (2002) e A Vingança dos Sith (2005) - desta vez contando como foi o período anterior, como o jovem Jedi Anakin Skywalker se transformou em Darth Vader e da República substituída pelo Império.
Em 2008 foi lançado o longa-metragem de animação Star Wars: The Clone Wars, um spin-off piloto para série de animação de televisão do mesmo título, narrando os acontecimentos entre os filmes Ataque dos Clones e A Vingança dos Sith.
A Disney comprou a franquia em 2012, e anunciou uma última trilogia, que retoma a linha do tempo narrativo no futuro, composta por O Despertar da Força (2015), Os Últimos Jedi (2017) e A ascensão do Skywalker (2019). Trinta anos após a queda do Império (descrito no Retorno do Jedi, terceiro filme da primeira trilogia), Luke Skywalker está desaparecido e conflito agora é entre Nova República e a Primeira Ordem, do lado sombrio. Han e Leia tiveram um filho, Kylo, que foi para o lado sombrio e desejar ser como seu avô Darth Vader. Há também um novo personagem feminino Rey, a aspirante à cavaleira Jedi e ao protagonismo positivo da força. Esses dois personagens encarnam os polos da narrativa nos dois primeiros filmes, enquanto para o personagem de Luke Skywalker – considerado o ‘escolhido’ para unificar a força – coloca-se a questão da ‘ascensão’, a tradição Jedi de se manter consciente após a morte.
Além da nova trilogia e de uma reorganização do universo narrativo da franquia[2], a Disney também produziu dois filmes ‘spin-offs’, isto é, histórias de personagens secundários derivadas da macro narrativa[3]: Rogue One (2016) e Solo (2018). Rogue One narra a história de um grupo da Aliança Rebelde que se une em torno da destruição da Estrela da Morte; e acontece entre os eventos narrados nos filmes A Vingança dos Sith (o terceiro da segunda trilogia) e Uma Nova Esperança (o primeiro filme da trilogia original). E Solo é um história que se passa dez anos antes e explora as primeiras aventuras de Han Solo e Chewbacca.
2.      Autocrítica
O livro Universos Sci Fic (GOMES, 2016) descreve cinco universos narrativos de ficção científica audiovisual: Star Trek, Stargates, Baylon 5, Galactica e Alien versus Predator. Vincula-se ali a narrativa de ficção científica ao impacto imaginado da tecnologia sobre a vida; e o universo Star Wars nesse contexto era apenas um ‘capa espada’ futurista, importante para popularização do gênero como público midiático, mas sem muito significado no desenvolvimento intertextual do gênero narrativo.
Outro motivo de antipatia foi o documentário Dune, de Alejandro Jodorowsky que mostra, não apenas a influência decisiva dos cinco livros de Frank Hebert mas também a apropriação temática, estética e de design de vários elementos reinterpretados por Jodorowsky/Moebius pela franquia Star Wars. Em relação aos romances de Hebert havia a mistura de futurismo tecnológico com uma nobreza medieval, o tema das duas gerações de escolhidos, a narrativa épica atravessando gerações. E em relação a proposta de Jodorowsky, havia a concepção visual, dos figurinos, das naves e até alguns efeitos especiais. A estrutura mitológica e simbólica de Star Wars veio de Duna. Escrevi um artigo para o blog.[4]
Porém, não há como negar o enorme impacto social do universo narrativo Star Wars na cultura contemporânea. É a maior franquia da história do cinema, com a soma dos filmes e produtos equivalente a mais que 30 bilhões de dólares.
Por preconceito contra o sucesso comercial, costuma-se subestimar o universo Star Wars em relação a vários outros aspectos importantes da franquia. Um dos aspectos relevantes frequentemente negligenciado é a importância deste universo nas práticas de transmediação narrativa – justamente um dos eixos centrais da investigação sobre ficção científica audiovisual. Antes da Disney, as narrativas do universo expandido (hoje descanonizadas e postas como ‘lendas’) eram secundárias em relação a narrativa cinematográfica. Atualmente, existem projetos multimídia integrados[5].
Há diversas séries de animação para TV[6], vários jogos de tabuleiro[7], brinquedos (a série Lego é um clássico), jogos eletrônicos[8], romances[9], histórias em quadrinhos[10] e inúmeros eventos de fãs são realizadas anualmente para festejar o universo, como Star Wars Celebration.
Existe até um mapa celeste da franquia em que as histórias da saga são referenciadas no céu astronômico. Assim, da mesma forma que os nativos aprendem a olhar as estrelas através de suas narrativas míticas (a etnoastronomia); as crianças atuais conhecem o céu através das narrativas de ficção científica de Star Wars. O que à primeira vista parece um enredo ‘capa espada futurista’ é uma forma contemporânea de mitologia, uma narrativa simbólica complexa de nossa realidade.
3.      Temas míticos, transmídia e estudos narrativos
Não é nenhuma novidade que Lucas, associou temas mitológicos clássicos à intertextualidade da ficção científica, através do uso de arquétipos universais (formas transculturais identificadas por C. G. Jung) e do monomito - a jornada do herói proposta de Joseph Campbell (1990; 1995). O herói decaído (Anakin\Ben Solo), os conflitos edipianos entre pai e filho (Anakin\Obi-Wan, Luke\Vader e Kylo Ren\Han Solo), o protagonismo feminino através de mulheres fortes (Padmé\Leia\Rey), entre outros temas mitológicos clássicos reinterpretados em um contexto de ficção científica.  
Um dos elementos narrativos originais da saga, que não se encontra em nenhuma outra história mítica ou ficcional, é a "Força" - um "campo de energia criado por todas os seres vivos, que nos cerca, nos permeia e mantém a galáxia unida". Essa energia onipresente pode ser utilizada tanto para o bem como para o mal, o lado sombrio, que pode possuir seus detentores, preenchendo-os de ódio, agressão e maldade. Coloca-se assim um tema moral dos contos de fadas (a luta do bem contra o mal) dentro do contexto ‘realista’ da ficção científica.
O que é mais notável, no entanto, é que a utilização de temas mitológicos dentro de uma lógica de produção narrativa audiovisual contemporânea teve como efeito imediato o aparecimento de estudos narrativos mais complexos, associando pensadores de histórias clássicas como Campbell a pesquisadores contemporâneos de narrativas multimídia como Henry Jenkins (2008)[11].
No Brasil, há, com efeito, estudos mais poéticos e estéticos, como Serialidade e tessitura da intriga (SEGUNDO, 2010), e estudos mais técnicos em relação à transmediação, como Comunicação, consumo e entretenimento (MASTROCOLA, 2011). Há também trabalhos sob aspectos específicos, como A cultura da convergência e os fãs de Star Wars (SILVEIRA, 2010), um estudo do comportamento dos fãs organizados em um coletivo (o “Conselho Jedi”) como fator determinante da cultura da convergência. Ou ainda estudos voltados para os jogos eletrônicos da franquia para múltiplos usuários – MMORPG, como A Galáxia de Lucas (ANDRADE, 2007).
Alguns estudos, no entanto, apresentam um equilíbrio entre os aspectos simbólico-narrativo e técnico-midiático. Este é o caso de A saga Star Wars como produto midiático: o consumo como experiência (MASSUTO, 2019) analisa como a construção de um mito midiático se tornou objeto de consumo de experiências memoráveis e como esse produto simbólico se transformou em uma marca Disney.
Outro estudo importante nesse sentido é Uma Análise do Storyworld de Star Wars (VIEIRA, 2017) que faz uma análise comparativa entre as estruturas do primeiro filme (Uma nova esperança, 1977) e o terceiro da segunda trilogia (O Despertar da Força, 2015), o primeiro dentro do cânone Disney.
Esses estudos apontam para uma grande diferença entre a narrativa original da saga e sua industrialização pelos novos detentores da franquia, atestando tanto o descontentamento do público e dos fãs com o novo conteúdo como também o aperfeiçoamento das estratégias em torno da coerência do universo narrativo.
4.      Conclusão
Ao longo deste breve artigo, descreveu-se sumariamente o universo narrativo Star Wars, não apenas em seus filmes principais, mas também nas narrativas veiculadas em outras mídias. Também destacou-se aqui as principais críticas e equívocos em torno da análise da saga, ressaltando o avanço provocado por suas histórias não apenas no desenvolvimento intertextual do gênero de ficção científica audiovisual, mas, sobretudo, no campo dos estudos narrativos, aliando análises mitológicas a descrições de estratégias transmídia.

Referências Bibliográficas
ANDRADE, Luiz Adolfo de Paiva. A Galáxia de Lucas - Sociabilidade e Narrativa nos Jogos eletrônicos. Mestrado em Comunicação, Universidade Federal Fluminense, Niterói: 01/05/2007 123 f. Disponível em: <https://www.academia.edu/7307460/A_Gal%C3%A1xia_de_Lucas_Sociabilidade_e_Narrativa_nos_Jogos_Eletr%C3%B4nicos> último acesso em 27/02/2019.
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo, Editora Cultrix/Pensamento, 1995.
_________ O Poder do Mito. Editora Palas Athena, São Paulo, 1990.
JENKINS, Henry, Cultura da Convergência, trad. de Susana Alexandria, 1ª edição. São Paulo: Editora Aleph, 2008.
JUNIOR, Claudio Ferraraz. Star Wars: um estudo sobre o universo da franquia cinematográfica. Mestrado em Imagem e Som, Universidade Federal de São Carlos, 01/12/2012 106 f. Disponível em: <https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/5607> último acesso em 27/02/2019.
GOMES, Marcelo Bolshaw. Universos sci-fi audiovisuais: estudos narrativos transmídia II. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2016a, v.1. p.102. Disponível em: <https://www.academia.edu/29845416/universos_Sci-fi> último acesso em 27/02/2019.
MASSUTO, Homero Odisseus. A saga Star Wars como produto midiático: o consumo como experiência. Mestrado em Comunicação, Faculdade Cásper Líbero, São Paulo: 30/08/2017 93 f. Disponível em: <https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2017/11/HOMEROODISSEUSMASSUTO.pdf> último acesso em 27/02/2019.
MASTROCOLA, Vicente Martin. Comunicação, consumo e entretenimento: o interator na ficção seriada Star Wars. Mestrado em Comunicação e práticas de consumo, Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo: 01/03/2011 100 f. Disponível em: <http://tede2.espm.br/bitstream/tede/99/1/VicenteMartinMastrocola.pdf> último acesso em 27/02/2019.
SEGUNDO, João de Deus Barreto. Serialidade e tessitura da intriga: as atualizações poéticas em Star Wars (1977, 1980, 1983, 1999, 2002, 2005). Mestrado em Comunicação e Cultura Contemporânea, Universidade Federal da Bahia, Salvador: 01/07/2010 144 f. Disponível em: <http://poscom.tempsite.ws/wp-content/uploads/2011/05/Jo%C3%A3o-Barreto.pdf> último acesso em 27/02/2019.
SILVEIRA, Stefanie Carlan da. A cultura da convergência e os fãs de Star Wars: um estudo sobre o conselho Jedi. Mestrado em Comunicação e informação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre: 01/03/2010 205 f. Disponível em: <https://lume.ufrgs.br/handle/10183/25129 > último acesso em 27/02/2019.
VIEIRA, Antônio Henrique Garcia. Uma Análise do Storyworld de Star Wars: A New Hope e Star Wars The Force Awakens. Mestrado em Imagem e Som, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos 05/03/2017 125 f. Disponível em: <https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9588 > último acesso em 27/02/2019.


[1] Professor de Comunicação da UFRN. marcelobolshaw@gmail.com
[2] Todas narrativas associadas aos filmes anteriores foram descanonizadas pela Disney e lançadas como ‘lendas’, ou narrativas alternativas, para não entrar em contradição com as versões recentes
[3] Embora os filmes A Caravana da Coragem (1984) e Ewoks - A Batalha de Endor (1985), também criados por George Lucas, não sejam considerados oficialmente como parte da franquia Star Wars, pode-se dizer que ele faz parte de mesmo universo narrativo – que inclui ainda várias narrativas criadas por fãs.
[5] Shadows of the Empire (1996) foi um projeto multimídia ambientado entre The Empire Strikes Back e Return of the Jedi, que incluiu um romance de Steve Perry, uma série de quadrinhos, um videogame e action figures. The Force Unleashed (2008–2010) foi um projeto similar entre Revenge of the Sith e A New Hope, que incluiu um romance, um videogame de 2008 e sua sequência de 2010, uma graphic novel, um suplemento de RPG e brinquedos.
[6] Existem cinco séries de animação Star Wars: Droids (as aventuras dos robôs D2-R2 e C-3PO nos anos 80), Guerras Clónicas (2003-2005), A Guerra dos Clones (2008-2014), Rebels (2014-2018) e Resistance (2018). Apenas as duas últimas são canônicas para Disney.
[7] Star Wars: Escape from the Death Star (1977 e 1990); Monopoly e Trivial Pursuit and Battleship (1997 e nos anos seguintes); The Clone Wars Edition (2005); Original Trilogy Edition (2006); e RPGs: West End Games (1980 e 1990), Wizards of the Coast (2000) e Fantasy Flight Games (2010). Há ainda várias séries de ‘cards’ colecionáveis.
[10] A Marvel publicou os quadrinhos de Star Wars de 1977 a 1986. Nos anos 90, a editora Dark Horse Comics publicou as séries Dark Empire (1991-1995), Tales of the Jedi (1993-1998), X-wing Rogue Squadron (1995-1998), Star Wars: Republic (1998-2006), Star Wars Tales (1999–2005), Star Wars: Empire (2002–2006) e Star Wars: Knights of the Old Republic (2006–2010). Após a aquisição da Lucasfilm pela Disney, em 2015, a licença de quadrinhos da franquia voltou para a Marvel.
[11] Várias universidades internacionais desenvolvem estudos nesse sentido: https://www.thoughtco.com/top-universities-for-star-wars-fans-788268

Um comentário: