sábado, 21 de novembro de 2020

memoria e narrativa

Um memorial é uma forma de agradecimento às coisas e pessoas que não queremos esquecer, que não queremos que sejam esquecidas pelos que vierem depois de nós: um monumento à assimilação mimética. Comemora a descoberta surpreendente de que estudo a imitação através da imitação; de que sou a soma criativa de várias assimilações miméticas, e que, um dia, certamente também serei assimilado.

Nietsche disse que a felicidade estava no esquecimento. Mas, escrever as próprias memórias é também se esquecer delas e ser feliz. Tirá-las da cabeça e coloca-las no papel para todos. Porém, talvez, essa seja a causa da infelicidade!

Temos memórias inatas (filogenéticas, hereditárias) e memórias adquiridas (ontogenéticas). Somos os animais com a menor memória filogenética de espécie e com a maior memória social do planeta. Perdemos a capacidade de transmitir experiência através do DNA, mas, em compensação, desenvolvemos a habilidade, aparentemente única, de transmissão de experiência em memórias sociais externas para o aprendizado cultural. Os neurocientistas reconhecem três tipos de memória adquirida: a memória operacional ou de curto prazo (semelhante ao microprocessador de um computador), responsável por gerenciar as atividades cognitivas imediatas; a memória de longo prazo (que pode ser comparado a um HD, o disco rígido em que se armazenam programas e arquivos); e a memória externa ou social (análoga à internet para as máquinas).

Lembremos também que as memórias artificiais estão atualmente diminuindo a necessidade da memória biológica de curto-prazo e permitindo a expansão de nossas memórias de longo prazo; e que o presente memorial foi escrito em um período de transição entre dois regimes de registro temporal.

A ciência distingue dois tipos de memória de longo prazo: a memória declarativa (ou explícita) e a não-declarativa (ou implícita). A memória declarativa armazena a informação sobre algo que aconteceu, e a memória não-declarativa como isto aconteceu. E usamos partes diferentes do cérebro para realizar as duas ações.

A memória declarativa se subdivide ainda em: episódica (lembranças de eventos específicos) e semântica (lembranças de fatos, pessoas, lugares, objetos). A memória declarativa equivale a uma ‘gramática’ (um sistema operacional), subdividida em uma memória lexical cronológica e uma memória sintática, que combina as lembranças.


Memória ontogenética

Curto Prazo

Imediata e de trabalho/rotinas

Longo Prazo

Declarativa

Episódica

Semântica

Não Declarativa

De procedimento;

Associativa;

Não associativa; e

de representação perceptual.

Coletiva

Representação cultural, meta memória

Memória filogenética

Inata, hereditária

Fonte: elaborado pelo autor

A memória não declarativa ou implícita, por sua vez, também tem diferentes modalidades: a memória de procedimento (que recorda de habilidades, como tocar um instrumento musical ou andar de bicicleta); a memória associativa (adquirida por condicionamento), a memória não associativa (aprendizado involuntário) e a representação perceptual (os sonhos, a imaginação, a emergência de insights, dicas, soluções lógicas, ‘mensagens’).

A memória não declarativa é aquela que apreendida através de Mimese, da imitação criativa, que interpreta o objeto imitado. Na máquina, ela se dá através da simulação e de emuladores, modeladores da linguagem binária. Emulação é a replica virtual, a duplicação reconfigurada do objeto. Na mimese, há uma consciência interpretante, criativa e crítica; que sutilmente compara o objeto copiado ao seu modo, agregando-lhe outras referências. Assemelha-se ao que Vilém Flusser chama de ‘devoração’, à assimilação antropofágica de conteúdo simbólico e sua reinterpretação.

Somos a soma das pessoas que admiramos e que imitamos criativamente em nossa personalidade, meu texto é uma síntese dos textos que mimetizei. Na cultura, no entanto, há apenas reprodução, mesmo que uma reprodução que planeja e reestrutura seus próprios parâmetros de organização. Há homens mecanicamente emuladores, papagaios de outros; mas não há máquinas criadoras de novos padrões ontológicos.

A analogia entre as memórias artificiais e biológicas termina aqui. Não apenas porque a Mimese difere muito da simulação, mas, sobretudo, porque o acesso às meta-memórias culturais difere da troca de dados através da internet. Há, na verdade, uma grande confusão sobre memórias coletivas, pois alguns pensam na memória filogenética da espécie, outros na memória não-declarativa e outros ainda nas memórias sociais. 

Joel Candau (2018) faz a mais completa revisão dos estudos a respeito da memória. Para ele, memória e identidade formam uma contradição dialética indissociável. A memória é uma reelaboração cognitiva permanente do passado e a identidade é elaborada, definida e redefinida na interação social no contexto presente. A memoria é uma narrativa organizada pela identidade e a identidade, uma imagem formada pela memória. Ambas, no entanto, estão a serviço do futuro, de um projeto, do devir. Da contradição entre a memória e a identidade, nasce um destino. 

Candau estabelece três tipos de memória: a) memória de baixo nível ou protomemória (equivalente às memórias filogenéticas e às memórias não-declarativas); 2) memória de alto nível - constituída por lembranças e/ou por reconhecimentos; e 3) a metamemória – uma representação da memória atrelada à identidade e às noções de semelhança ou pertencimento. 

A rigor, para ele, não existiria uma memória coletiva biológica, mas sim a identidade reforçando os sentimentos de procedência, historicidade e pertencimento. Assim, sua análise não aceita expressões e figuras totalizantes supostos conjuntos estáveis, duráveis e homogêneos de  representações como realidades empíricas, embora os aceite como instrumento analítico ou como “configurações narrativas”. 

No polo oposto ao de Candau, existe também a hipótese dos campos morfogênicos elaborada por Rupert Sheldrake de que há memórias atemporais (espíritos, situações, arquétipos) armazenadas em um campo elétrico-magnético embutido na realidade. Nesse caso, a ‘mente mamífera’ (formada pelas memórias não declarativas de representação perceptual) funcionaria telepaticamente como uma internet biológica, uma ‘telenet’.

Não há, no momento de transição desse memorial, como saber sobre o impacto que as memórias artificiais (e a internet) terão sobre as biológicas. Tanto podemos desenvolver um ‘chip cerebral’ criando uma prótese telepática (aumentando nossa distancia da memória filogenética) como, ao contrário, readquirir e ampliar nossa capacidade de lembrança hereditária, diminuindo a necessidade de aprendizado e treinamento: o sonho do esquecimento feliz que Nietzsche desejou. Seja como for, esse memorial deseja descrever a riqueza de seu momento para que não seja esquecido.

Descrever o presente (sempre) para narrar (novamente) o passado e (re) imaginar o futuro.

Agostinho faz uma reflexão sobre o tempo e o ser. O tempo já foi (não existe mais) e será (ainda vai existir). Apenas no presente ele é no momento fugaz de sua captura pela consciência. Por outro lado, o tempo contínuo ‘só existe’ em sua representação na linguagem, através de relógios, tabelas lunares, calendários ou marcações arquitetônicas. Embora só exista no presente, o tempo precisa ser representado para ser medido.

Aliás, o primeiro memorial que se tenha notícia é o livro Confissões, de Santo Agostinho. Escrito de forma autobiográfica e teológica, contando sua vida de pecador e sua conversão ao cristianismo, o livro também tinha uma dimensão política, ajudando ao então padre a tornar-se bispo de Hipona. Hoje, o memorial (descritivo) é um documento em que se relata a história acadêmica e profissional, exigido em concursos públicos. Para Agostinho, há a lembrança das coisas dos homens, referente à consciência individual; e a lembrança das coisas de Deus, a memória do Inconsciente coletivo. Os dois lados da caverna de Platão, os hemisférios cerebrais.

Escrever por aforismos é estabelecer uma arqueologia da própria memória em módulos, um inventário de arquivos que nos caracterizam. E essa é nossa proposta aqui: descrever memórias através de aforismos sobre contextos de formação. A ideia foi organizar uma arqueologia de memórias históricas de forma fragmentada. Embora os aforismos pareçam desconexos, não guardando relação causal de continuidade entre si, na verdade, eles formam um mosaico de meu percurso biográfico e intelectual.

Escrever através de aforismos (ou pensar 'por marteladas' como disse Nietzsche) nos torna assistemáticos, deixando várias lacunas e pontas soltas. Os aforismos tornam-se densos, desconexos e sua sequência, aparentemente fragmentada; mas com um fio condutor que se torna visível durante a leitura: a produção dos transgressores pelas regras e a assimilação dos contrários – pelo sistema como negação da negação. Mais do que um sentimento de perda (do que nunca me pertenceu), essa constatação é libertadora, trazendo a leveza alegre da vida sem a responsabilidade de resolver os problemas do mundo. 

Dedico esses trabalhos a todos de quem assimilei conhecimentos (vocês vivem em mim) e aos futuros leitores que entenderem e assimilarem de alguma forma a experiência de vida oferecida por este memorial. E, por tudo isso, só me resta agradecer a oportunidade de reconhecer a liberdade deste exercício.

Fragmentos de um tempo presente - memorial acadêmico

Autobiografia teórica de um intelectual autista - memórias completas


Referências bibliográficas

BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. RJ: Jorge Zahar, 2005.

CANDAU, Jöel. Memória e Identidade. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2018.

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