domingo, 24 de novembro de 2019

enfim, a autocrítica


OS ERROS DO PT

Marcelo Bolshaw Gomes[1]

Se você tem críticas pra fazer ao PT, faça. Mas se eu ficar toda hora fazendo autocrítica, aí nem precisamos de oposição. Eles sabem dos nossos erros, mas também sabem que fomos quem mais fez pelo Brasil. Twitter do Lula 07:22 - 20 de novembro de 2019

Introdução
Mesmo com medo de dar munição ao inimigo, essa extrema direita ignorante, que na falta de provas de crimes agora exige a autocrítica dos erros; mesmo com medo de ser confundido com o 'antipetismo' e ser linchado pela militância, resolvi atender ao pedido do ex-presidente Lula e formular algumas críticas fraternas ao Partido dos Trabalhadores.
A crítica não tem a ver com a ideia de “apontar falhas, erros e equívocos alheios” ou de brandir o espírito de contradição que a tudo nega e minimiza, sem critérios ou parâmetros. A crítica é a atividade de interpretar um discurso em um sentido diferente do que é imaginado pelo enunciador. É, portanto, oposto a uma leitura passiva, que aceita incondicionalmente a interpretação do que lhe está sendo dito. Porém, em um ambiente autoritário, em que subserviência às ideias das autoridades é a regra silenciosa, a polêmica é vista como encrenca e o crítico, como um desagradável criador de casos, jogando-se fora assim o que há de mais rico na convivência humana: o confronto das inteligências, o diálogo entre diferentes interpretações de mundo.
Já a 'autocrítica' não é uma confissão ou a expiação pública de pecados. É claro que muitos querem humilhar o PT, fazendo com ele seja responsabilizado pelos erros em que acreditam (o partido deveria ter pago a dívida pública com recursos internacionais, Lula não deveria ter se entregado à justiça, deveriam ter apoiado Ciro Gomes, entre outros achismos). A situação se agrava com a falta de humildade dos petistas e da capacidade de admitir os próprios erros.
Autocrítica, mais do que a competência aprender com os próprios erros, é a capacidade de reconhecer os erros que não se cometeu. E só os próprios petistas podem avaliar onde e como foi que erraram.
No entanto, sou anarquista e nas últimas eleições fiz campanha para frente de esquerda que se formou contra o candidato fascista. Também sou espiritualista e sigo a máxima do Hoponopono: O que eu não gosto em você, corrijo em mim. Então, incentivado por Lula, me coloco no lugar do PT e realizo em seu nome a tão solicitada autocrítica, consciente de que não desejo destruir mas sim colaborar com o desenvolvimento comum, tenho vários níveis de crítica em relação ao PT que gostaria de compartilhar aqui: as opções estruturais e ideológicas do partido; os erros táticos e conjunturais; e, finalmente, os erros históricos.
Diferenças ideológicas
Em 1981, me identifiquei com as declarações do então sindicalista polonês Lech Walesa em seu encontro com Lula em Roma. Walesa criticou a criação da CUT por dividir o movimento sindical ao meio e lamentou que os trabalhadores brasileiros tivessem escolhido o modelo de ‘partido de massas’ como principal ferramenta de organização e luta – algo que a social democracia já teria feito e fracassado. Argumentos simples que, com o tempo se mostraram válidos. O PT, por força de sua atuação parlamentar, se distanciou de sua origem operária.
Por outro lado, a prática de disputar a liderança de sindicatos, associações de moradores, entidades estudantis - herdada do modelo leninista dos antigos partidos clandestinos dos tempos da ditadura - levou a uma prática de aparelhamento político dos movimentos sociais. O partido passa falar através das entidades.
E o PT não é o único a perpetuar essa prática oportunista e antidemocrática. O PC do B acabou com a representatividade da UNE. O PSOL tenta aparelhar o movimento LGBT. O PT, no entanto, além de ser maior nessa 'liderança social da sociedade civil', acaba organizando movimentos sociais totalmente artificiais, o movimento LULALIVRE, por exemplo, é composto por entidades dirigidas por militantes do partido.
Este duplo caráter do partido (parlamentar e de organização dos trabalhadores) traz dois problemas: 1) o lado parlamentar do partido imagina que suas bases são associações de massa; e, 2) a população se sente manipulada ao invés de duplamente representada. O PT faz política voltado para dentro de si e confunde as necessidades de sua militância com os interesses da população.  Assim, o partido elabora uma narrativa heroica sobre si mesmo, através da qual interpreta os acontecimentos externos e se distancia da realidade da maioria.
No momento do encontro entre Lula e Walesa, eles eram os mais expressivos líderes operários do mundo e ainda não tinha sido presidentes. Apesar de seus convincentes argumentos anarquistas, Walesa fracassou em seu projeto de governo através do Solidariedade (central de sindicatos livres), sucumbiu ao alcoolismo. Também foi descoberto que seu catolicismo radicalmente anticomunista o levou a ser informante dos EUA. Enquanto isso, Lula, apesar das decisões por modelos ultrapassados (partido de massa e sindicatos partidarizados), fez um dos melhores governos que o Brasil já teve. Porém, para ser assimilado pelo sistema político, também foi assimilado pela máquina parlamentar.
Erros táticos
Então, o primeiro erro político sério foi aceitar o presidencialismo de coalizão ao invés de fazer uma ampla reforma política. Ao tentar perpetuar o parlamentarismo pela metade de FHC, o PT foi pego subornando deputados em troca de maioria parlamentar. Foi o escândalo do ‘Mensalão’. E esse seria um erro bem fácil de perceber e do qual os petistas deveriam ter feito uma autocrítica daquele momento. Mas, o sistema de propina foi repetida e veementemente negado pelo PT, ao mesmo tempo que foi lenta e dramaticamente revelado pela mídia e pelo supremo. Vários expoentes do PT se decepcionaram e saíram do partido, como Frei Beto, Heloisa Studart, Soninha Valença – para citar os mais conhecidos. Surgiram o PSOL e o PSTU.
Graças ao Bolsa-família e ao crescimento econômico, em sua reeleição, Lula recebeu os votos dos eleitores que, nas eleições passadas, votaram nos ‘fermandos’, as pessoas de menor renda e instrução; enquanto seus eleitores tradicionais do PT (as classes médias das universidades) votaram em seus novos adversários de esquerda: Cristovam Buarque (PDT) e Heloísa Helena (PSOL).
Desde então o PT vem cometendo erros (como qualquer um cometeria, diga-se de passagem), mas não assume mais a responsabilidade pelas consequências de suas escolhas e posições, atribuindo todos os seus fracassos às forças de direita e ao seu não reconhecimento pelo restante da esquerda. Erros todos cometemos. Porém, persistir em negar os erros, a esconde-los ou falsificá-los por vergonha ou má fé, significa continuar a repeti-los. A aliança com PSB em Pernambuco para tentar eleger Dilma senadora por Minas, ou estratégia eleitoral de lançar o inelegível Lula (acreditando que pressão popular será capaz de reverter a legislação eleitoral) ao invés de organizar uma ampla frente de esquerda por exemplo. O PT não só não se arrepende desses erros táticos, mas ameaça repeti-los em 2020.
Erros históricos 
Entre os grandes erros estruturais e os pequenos erros táticos, estão os erros históricos e/ou estratégicos – aqueles mais significativos. O PT não compreendeu o sentimento anti institucional das jornadas de 2013 e preferiu aderir ao sistema político e à realização da Copa do Mundo.
No final do segundo governo Lula, éramos a 8ª economia do mundo. Houve uma recessão mundial, que fez apenas uma ‘marolinhas’ por aqui. O Brasil descobriu que tinha um mercado interno e que podia crescer com autonomia em relação à economia internacional. A distribuição de renda, via o bolsa-família, teve um efeito macroeconômico inegável, com crescimento e baixa inflação.
Em 2010, a internet passa a desempenhar um papel decisivo nas eleições. Vários temas começam a ser agendados a partir das redes para a propaganda eleitoral: a comparação entre os governos Lula e FHC, descriminalização do aborto no Brasil, etc. A manipulação de informações pelas campanhas de ambos, especialmente na Internet, tornou difícil para os eleitores julgarem o que seriam os fatos verdadeiros e os boatos falsos associados a essas questões polêmicas. A essa altura, as elites brasileiras não escondiam mais sua insatisfação com a nova realidade social do país, com o acesso das camadas populares às universidades, aeroportos e outros espaços antes só frequentados pelas classes mais abastadas.
Em junho de 2013, o Brasil passou, durante vários dias, por uma sequência de manifestações populares nas principais cidades do país. Quase dois milhões de brasileiros participaram de manifestações em 438 cidades. O movimento não foi organizado por entidades (e por partidos por detrás delas), rompendo com toda metodologia leninista de organização de protestos, prescritas no livro Que Fazer, de Lenin, a bíblia dos partidos de esquerda.
Ao tentar apresentar uma resposta à população, Dilma se viu bloqueada pelos partidos que sustentavam a base aliada do governo no Congresso. O próprio PT desqualificou o movimento, por não ser organizado por partidos e entidades sindicais. Dilma e o PT não entenderam. E, não levando os protestos em conta, partiram para disputar a reeleição presidencial através das mesmas práticas políticas partidárias parlamentares de sempre: procurando alianças com partidos grandes para garantir a maioria no parlamento e se apresentando como a garantia política da distribuição de renda e dos direitos sociais contra a direita neoliberal.
Mas, a dívida pública subiu vertiginosamente em 100 bilhões. O que foi que Dilma fez em cinco anos que deixou o país quebrado? Por que o governo petista gastou uma fortuna na construção de estádios e obras de mobilidade; em detrimento de escolas, de hospitais e das polícias? Por que os principais beneficiários das obras, aliados na reeleição de Dilma, foram os principais defensores do impeachment? Vítima da traição de seus próprios aliados, Dilma e o PT sucumbiram em virtude de um golpe branco.
Tanto Lula como o PT se recusam até os dias de hoje que tenham qualquer responsabilidade com o fracasso da Copa do Mundo e a explosão da dívida pública devido ao carnaval de obras públicas desnecessárias superfaturadas para as empreiteiras. É claro que foram pegos em uma armadilha, mas se recusam a admitir que foram enganados e equiparados ao que sempre combateram.
Imagine uma polícia que utiliza a delação premiada de traficantes para incriminar seus clientes viciados. O que acontecerá? Outros usuários surgirão. O mesmo se aplica à Lava-jato. Fazer com que os corruptores ativos dedurem os agentes de corrupção passiva, de modo seletivo, é claramente uma forma de perseguição política. Para se defender desta manobra evidente, é preciso admitir o crime menor e denunciar a cumplicidade entre os verdadeiros criminosos e a justiça que os investiga. No caso, o PT deveria admitir que as obras não eram necessárias e que foram feitas para triangular verbas para eleição - como sempre foi feito pelas classes dominantes.
Sem planos e sem erros
Que futuro o PT oferece? Qual utopia? Nenhuma, deseja apenas voltar ao passado, ao estado de bem estar social e às políticas de inclusão social e de renda mínima. E é a incapacidade de sonhar um futuro melhor que o impede de fazer autocríticas.
Não admitir que o PT tem parte – e grande parte – nessa crise equivale a dizer que o PT só construiu o importante legado de seus governos graças ao boom de commodities. E isso não é verdadeiro. Houve escolhas: algumas muito acertadas; outras nem tanto; e outras tremendamente desastrosas. Admiti-las é fundamental não ao passado, mas ao futuro. (...) E é justamente esse futuro que o PT precisa voltar a oferecer para as pessoas se quiser voltar a ganhar uma eleição. O modelo sob o qual o partido se construiu não existe mais. Entender isso é também voltar a vislumbrar o futuro. (...) E a dinâmica das redes polarizadas, onde as performances contam muito, contribuiu para tornar as posições eleitorais inconciliáveis. Humilhar bolsonaristas arrependidos na internet é só uma das muitas evidências de que os petistas não estão muito interessados em disputar voto, justamente porque essa disputa não mira o futuro, mas o passado. Então, nesse caso – e só nesse caso –, a autocrítica realmente parece não fazer muito sentido. Assim como para Bolsonaro é confortável ter o PT como centro gravitacional da oposição, para o petismo é bom ter Bolsonaro na presidência. (...) A questão é que o PT parece acreditar que, para um retorno triunfal do partido, bastam o fracasso da economia sob Bolsonaro e as saudades dos anos de ouro do lulismo. Outro erro capital. Mais um que os petistas dificilmente vão admitir.
Murilo Cleto[2]
Conclusão
O impeachment da presidenta, na realidade um golpe branco, forjou uma expressiva frente de direita, um “grande pacto” envolvendo a mídia, o STF, os militares e os bancos para remover a esquerda do poder e fazer uma reforma previdenciária e diminuir o déficit público. O discurso contra a corrupção serviu para que a operação Lava-jato fizesse a prisão totalmente arbitrária de Lula – que foi julgado e condenado em tempo recorde para os padrões brasileiros, em conjunto com uma campanha de difamação sem precedentes. 
Com a inesperada eleição do candidato da extrema direita Jair Bolsonaro em 2018, acaba o período histórico conhecido como Nova República. Período que começou com a morte do presidente Tancredo Neves, foi estruturado pela Assembleia Constituinte de 1988 e caraterizado pelo predomínio fisiológico do PMDB, encoberto pela disputa ideológica entre o PT e o PSDB. A principal característica da Nova República foi o predomínio do poder legislativo sobre o executivo e o judiciário – através do dispositivo que permite, por maioria de 2/3, o Congresso legislar matérias constitucional e o presidencialismo de coalização (na verdade, o parlamentarismo disfarçado), com a indicação não apenas de ministros e de todos os cargos da administração federal direta e indireta. Com os presidentes Temer e Bolsonaro, no entanto, não surgiu um novo equilíbrio entre os três poderes.
O desejo de votar na extrema direita foi artificialmente criado pela mídia, mas também veio do profundo descrédito nas instituições democráticas que se corromperam (o congresso, o STF, os partidos políticos, etc). Havia um desejo legítimo de mudança não contemplado pela esquerda (a reestruturação do sistema de governança política) que a direita soube aproveitar em sua crítica radical à corrupção institucional. Os aplicativos de vídeo comunicação em telefones celulares foram determinantes no resultado da eleição, suplantando os meios de comunicação tradicionais. Vídeos pornográficos reclamando da ideologia de gênero associados à esquerda; cenas de violência e de injustiça, acobertados pelo governo; e muitas denúncias de corrupção. Essas mensagens, postas de forma emocionalmente apelativas, transmitidas pelo whatsapp permitem uma capilaridade invisível para os olhares antigos. A utilização do celular como mídia principal, em um ambiente de conspiração, postulando que a grande mídia mente e é controlado pelos poderosos é uma característica também presente na eleição de ontem, na de Trump e no plebiscito do Brexit. Nesses casos também houve uma grande quantidade de notícias mentirosas difundidas na rede de modo alternativo para comunidades.
As comunidades de afeto e interesse são os palcos da disputa política, o local em que se debate realmente. Disputa sem argumentos ou discursos, mas com catarses de ódio e os medos que elas causam. E a luta política é sobre a confiabilidade dos candidatos (mais do que pelas propostas ou pela ideologia). Qual dos dois está mentindo? Os que votam nulo resolvem essa pergunta afirmando que ambos. Mesmo que seja verdade, que a representação política tenha se tornado uma farsa, resta ainda o peso da escolha. Quem mente menos? Quem faz parte do sistema e luta pela sua manutenção? A descrença sistêmica tanto se converte em raiva pela direita quanto em medo pela esquerda. É a descrença sistêmica que faz alguns acreditarem em qualquer coisa, mesmo que não faça muito sentido. Existe apenas a canalização da insatisfação com as mentiras das instituições democráticas, contra as mudanças no mundo, contra a corrupção da qual todos fazem parte.
A culpa da vitória da direita é de todos nós, inclusive do PT.





[1] Jornalista, doutor em ciências sociais e professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. Escreveu o livro: Decifra-me ou te devorarei – A imagem pública de Lula no horário eleitoral em 1989, 1994, 1998 e 2002. Natal, Editora Universitária da UFRN (EDFURN): 2006


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