quinta-feira, 7 de novembro de 2019

PORQUE NÃO SOU MARXISTA


PORQUE NÃO SOU MARXISTA

Marcelo Bolshaw Gomes[1]


Com a ascensão da extrema-direita e da ignorância orgulhosa de si ao poder no Brasil, toda esquerda passou a ser taxada de ‘comunista’ e toda sociologia de ‘marxista’. Isto produziu a necessidade de explicação dos que sendo contra o governo e adepto das ciências sociais, não se sentem comunistas ou marxistas. Para quem lê Anthony Giddens e/ou Manuel Castells, ser ou não ser marxista não é a questão. Na verdade, perdeu-se uma grande diversão intelectual, pois confundidos com os marxistas, não se pode mais provoca-los como antigamente, sem fortalecer a ignorância da direita.

Mas, me chamaram de ‘marxista cultural’ – aqueles que dizem que não são marxistas, mas que, no fundo, são a mesma coisa: “adeptos de teorias críticas que condenam as pessoas ricas e bem sucedidas, insuflando os menos favorecidos contra a ordem social” – segundo me explicaram. E, assim, ao invés de tirar brincadeira com meus amigos marxistas, agora são eles (que concordando com a direita) zoam comigo, cobrando que eu assuma “meu lado marxista”.
Em primeiro lugar, é preciso dizer que o Marx é um grande pensador (do final do século passado) e que o marxismo como teoria sociológica materialista (fundamentada pela economia) quase não sobreviveu ao poli determinismo estrutural de Max Weber (2004) ao investigar como a ética protestante foi decisiva para o espírito do capitalismo.

O marxismo sobreviveu como sociologia graças a Gramsci, Althusser, Habermas e outros.  Aliás, o próprio Marx não é muito ‘marxista’ em seus textos mais literários, como O 18 de Brumário de Luís Bonaparte (2011). Mas, infelizmente, nem os atuais marxistas nem seus críticos atuais leem Marx ou os sociólogos que se seguiram. E para esclarecer meu ponto de vista tanto à direita quanto à esquerda, imaginei apresentar algumas lacunas da perspectiva materialista a partir da ótica idealista, em que o subjetivo interpreta o objetivo, determinando-o.

O motor da história e a terceira classe

Um dos conceitos marxistas centrais é ‘a luta de classes’. Ela é o coração político da teoria marxista e talvez seja a única noção que tenha chegado viva aos nossos dias. Ela é amplamente utilizada (por ambos os lados) como sendo o fator explicativo principal de todas as desigualdades e dos conflitos sociais.

Para teoria marxista, a luta de classes é a ‘encarnação’ sociológica da contradição irreconciliável entre capital e trabalho. Mas será que essa contradição é mesmo estruturalmente irreconciliável? E será que essa contradição econômica sempre se expressa historicamente na luta entre as mesmas classes? Há várias versões teóricas de ‘luta de classes’ fora da teoria marxista, que tentam reinterpretar a contradição entre Capital e Trabalho.

Para o sociólogo contemporâneo Manuel Castells (2008), “o capital é global; o trabalho, local”. As relações sociais entre o capital e o trabalho sofreram uma transformação profunda. A mão-de-obra está desagregada em seu desempenho, fragmentada em sua organização, diversificada em sua existência e dividida em sua ação coletiva. Capital e trabalho tendem cada vez mais a existir em diferentes espaços e tempos: o espaço de fluxos e o espaço dos lugares, tempo instantâneo de redes computadorizadas versus tempo cronológico da vida cotidiana. Assim é o “capitalismo informacional” em oposição ao antigo capitalismo industrial.

Outra reinterpretação desconcertante da luta de classes e da relação entre capital e trabalho, ainda mais radical e subversiva do que a própria concepção marxista, é a da sociologia estrutural-construtivista[1] de Pierre Bourdieu, em pelo menos dois pontos: a redefinição de Capital e a introdução de uma terceira classe na luta.

Bourdieu (2000a, 53-54) distingue quatro tipos de Capital: o Econômico propriamente dito; o Capital Cultural (conjunto das qualidades intelectuais transmitidas pela escola e pela família); o Capital Social (conjunto das relações sociais de que dispõe o agente); e, finalmente, o Capital Simbólico.

Para Bourdieu, a posição dos agentes no espaço (nos campos) depende do volume e da estrutura de seu Capital. Um campo pode ser definido como uma rede estruturada de agentes e instituições ou uma configuração de relações objetivas entre posições, onde os agentes estão em concorrência pelos seus troféus específicos, seguindo regras (de ingresso, de premiação e de exclusão) igualmente específicas. A distribuição dos capitais entre as classes sociais (agentes do campo econômico) são desiguais e há ainda a introdução classe média. Bourdieu observa que, em várias sociedades, as classes intermediárias, às margens do processo produtivo e da luta de classes, se dedicaram a produção de bens simbólicos. A igreja na idade média, por exemplo. Porém, a modernidade para se desenvolver teve que gestar uma 'automização' da produção de bens simbólicos em relação ao conjunto da reprodução social e a diferenciação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. [2]

Segundo Bourdieu, nas sociedades altamente diferenciadas como a nossa, o cosmos social é constituído do conjunto desses 'campos', microcosmos sociais relativamente autônomos, espaços de relações objetivas que são o lugar de uma lógica e de uma necessidade especificas e irredutíveis às que regem os outros campos. Por exemplo: o campo artístico, o campo religioso e o campo econômico obedecem a lógicas diferentes. Em cada campo específico existe um conjunto de interesses compartilhados que garantem sua existência e funcionamento[3]. E o que permite estruturar os Campos é a posse de diferentes tipos de Capital.

Nessa lógica, a “cultura dominante não é a cultura da classe dominante” como pensava o marxismo. A cultura dominante é a cultura da classe média. As classes dominantes seriam predominantemente incultas, mais afeitas ao luxo e ao conforto, à ostentação e à boemia; enquanto as artes, a memória, a cultura de uma forma geral seria uma ocupação do que vivem às margens da luta entre as classes principais. E o próprio Bourdieu se situa, na condição de sociólogo, como um produtor simbólico.

Jean Paul Sartre dizia, na segunda parte da Crítica da Razão Dialética (2000), que o existencialismo era um território, consciência pequeno-burguesa, encravado no marxismo-leninismo, consciência de classe do proletariado. Bourdieu dá um passo à frente em relação à consciência de classe, mas também a explicação da dinâmica histórica entre as classes.

Mas, sobretudo, a sociologia de Bourdieu abre a possibilidade de pensar um projeto de sociedade a partir dos interesses da classe média (ecologia, direito humanos, o feminismo, as ‘pautas de identidade’). E essa possibilidade de elaboração de um projeto político próprio (da classe média) surge ao mesmo tempo em que a sociedade civil passa a se organizar em ONGs frente ao Estado (guardião da igualdade dos agentes individuais) e ao Mercado (defensor da liberdade dos agentes econômicos coletivos).

Já existem até apropriações opostas dessa possibilidade: Habermas (2003), a esquerda, deseja organizar a sociedade civil para ampliar a esfera pública em uma democracia deliberativa; Giddens (2001a, 2001b, 2003), a direita, defende a diminuição do estado através da terceirização da esfera pública para sociedade civil. Hoje, em uma situação social infinitamente mais complexa daquela em viveu Karl Marx, a classe média e a sociedade civil se tornaram o ‘fiel da balança’ – tanto nas disputas políticas entre direita e esquerda, quanto verticalmente na luta de classes sociais.

 Salvos por sobre-determinação

Marx, quando se refere ao conjunto da sociedade, distingue a existência concreta dos homens de suas formas de consciência social. A existência concreta equivale à ‘infraestrutura econômica’ e às ‘forças produtivas’ resultantes da interface entre os homens e a natureza; e as formas de consciência social, à ‘superestrutura social’ e às relações dos homens entre si, à luta política e cultural entre as classes sociais.

Como pensador dialético, Marx acredita que infraestrutura e superestrutura se condicionam mutuamente, mas, que, ‘em última instância’, são as necessidades humanas que predominam sobre seus hábitos e costumes. As mudanças sociais, nessa perspectiva, ocorrem inicialmente na infraestrutura produtiva; e, em um segundo momento, nas esferas reprodutivas das condições de produção: a superestrutura.

Para defender marxismo de ataques de pensadores weberianos e estruturalistas – que o acusam de ‘mono causal’ em sua ênfase econômica e advoga um determinismo de múltiplos fatores estruturais (religiosos, políticos, culturais) – Louis Althusser (1979) propôs uma adaptação de uma categoria lacaniana: a ‘sobre-determinação estrutural’ ou a determinação em ‘primeira instância’. Nesse modelo, há fatores que são determinantes aparentemente ou em um primeiro momento (como a religião); mas a determinação final continua sendo orientada pelos interesses econômicos coletivos. Assim, apesar da estrutura social ser determinada por fatores subjetivos, ela continua determinada por nossas necessidades objetivas de uso e troca. As castas indianas, por exemplo, são classes sociais com uma sobre-determinação étnica e religiosa.

A ‘centralidade da mídia’ pode ser definida, nessa perspectiva althusseriana como uma sobre-determinação estrutural dos fatores ideológico e cultural produzidos artificialmente. Os meios de comunicação tornaram-se os mediadores centrais das relações sociais. Assim, é possível que hoje a informação determine o preço dos produtos e até o valor acionário das empresas, sem que isto se constitua em um rompimento com a lógica da mercadoria e com o capitalismo. Para dar resposta à centralidade da comunicação e sobreviver como teoria ao estruturalismo e à fenomenologia, a sociologia marxista se tornou taticamente ‘idealista’ e estrategicamente materialista.

Outra atualização decisiva da teoria marxista é o trabalho do italiano Antônio Gramsci (2000). Ele é abertamente idealista pois defende uma ‘revolução cultural’, isto é, a tomada das instituições superestruturais pela consciência coletiva primeiro para mudar as relações de produção da infraestrutura depois. Gramsci vê na Cultura não apenas uma forma de alienar os trabalhadores de sua consciência coletiva, mas, sobretudo a possibilidade de torná-los conscientes de suas condições de vida. A Cultura mais que ideologia da classe dominante é vista como uma forma de consciência social, capaz de desencadear revoluções. Ele também foi um dos primeiros a destacar o papel dos intelectuais na organização da cultura, principalmente na segunda etapa de cada modo de produção. Nessa ótica, tal quais os plebeus no Império Romano ou a Igreja no Regime Absolutista, as classes intermediárias da cultura do pós-guerra, criadas às margens da produção material, representam um papel decisivo: a defesa dos interesses coletivos das classes dominantes em detrimento de seus interesses individuais, sob a forma de uma centralização do poder político ou ‘intervenção estrutural do Estado na economia’. Nesses momentos, os intelectuais (as classes médias) ou se tornam tecnocráticos ou revolucionários – em função de sua opção na luta de classes.

Gramsci distinguia dos tipos de práxis: o fazer e o agir. O Fazer corresponde a atividade coletiva dos homens em relação ao meio ambiente, as chamadas ‘práticas sociais’ por Bourdieu e Althusser; e o Agir referente a ação social dos homens entre si. A tecnologia é o ‘saber fazer’ e a ética, o ‘saber agir’. Haveria ainda a ‘práxis das práxis’, a relação dialética entre o Fazer (a ação involuntária das massas) e o Agir (a ação consciente das pessoas). É a história que ‘faz’ os homens ou são os homens que fazem a história? A história ‘faz os homens que fazem a história’. Mas, os homens fazem a própria história e não sabem que a fazem. A revolução, segundo esse credo, acontece quando os homens ‘tomam as rédeas da própria história’ e passam a fazê-la conscientemente.  Para Gramsci, tudo começa e acaba na consciência.

Amor e ódio a Habermas

Conheci as ideias de Habermas, mais precisamente o livro sobre a ampliação da esfera pública (2003), no início dos anos 80 – conjugadas com o pensamento de Gramsci[4]. A ampliação da esfera pública equivaleria à organização da sociedade civil (de Gramsci) e à revolução cultural, a chegada ao poder através da superestrutura.

Nesse contexto, Habermas era utilizado como fundamento teórico de uma estratégia política importada da Europa, abertamente reformista diante de outras estratégias que se pretendiam revolucionárias. E, assim, a primeira impressão foi que não passava de um marxista conservador, herdeiro de Adorno e da escola de Frankfurt, que desejava ser crítico mas continuava a pensar de forma elitista.

Porém, certa vez, assisti a uma exposição da Teoria da Ação Comunicativa, quando essa obra ainda não havia sido traduzida, e fiquei absolutamente encantado com as noções de racionalidade instrumental (da objetividade das coisas), racionalidade estratégica (dos sujeitos individuais e coletivos) e a ação comunicacional (ou a intersubjetividade coletiva). A ação comunicativa seria mais que racional, pois englobaria o inconsciente, o involuntário, o corpo inteiro. E essa intersubjetividade total era a ampliação da sociologia da ação social weberiano dentro do marxismo, equivalente a noção funcionalista de interação de Talcott Parsons (uma vez que nessa época não havia ainda internet nem comunicação interativa).

Passaram-se muitos anos e o fato de que outros leitores de Habermas entendessem a sua intersubjetividade como um debate racional e não como uma interação social me causava espécie. Uma redução da ação comunicativa à racionalidade estratégica! – lamentava. Para mim, os leitores brasileiros de Habermas seguiam influenciados pela difusão inicial de suas ideias, orientada por interesses partidários.

Recentemente, no entanto, li a Teoria da Ação Comunicativa (2012). Habermas tanto é institucionalista, que enfatiza o papel da comunicação na democracia na discussão política das racionalidades instrumentais e estratégicas; como também neocontractualista, que ressalta a formação de uma vontade política através de uma intersubjetividade cultural. A ‘democracia deliberativa’ é a cereja do livro, em que Habermas vê dois aspectos: participação consciente e interação involuntária. A democracia deliberativa é a união da ação comunicativa com a racionalidade estratégica contra a razão instrumental.

Nos anos 90, a noção de ‘democracia deliberativa’ - estruturada em um tripé entre o Estado (o campo da igualdade jurídica), o Mercado (o campo econômico) e a Sociedade Civil (o campo das comunidades) - foi retomada por Giddens e Thompson, voltando ao front teórico-político. Giddens considera a terceirização da sociedade civil como solução tanto para fazer frente ao estado inchado e ineficiente e ao estado mínimo neoliberal. A ampliação da esfera pública do estado se daria através de ONGs.

Já Thompson (1995, 1998) pensa em uma democracia deliberativa orquestrada pela mídia, que deveria ter autonomia em relação ao estado e ao mercado, sendo organizada a partir da sociedade civil. A comunidade seria a guardiã da comunicação, mediadora dos interesses políticos e econômicos. Porém, essas reinterpretações foram anteriores ao advento das redes digitais![5]

Crítica pós-moderna

Reparem que tanto Althusser quanto Gramsci e Habermas em suas tentativas de ‘salvar’ o marxismo o colocam dentro de um cenário considerado idealista por Marx, cenário que enfatiza mais a ação que seu condicionamento estrutural pelo contexto. Isto se dá em virtude de termos conquistado uma percepção intelectual mais clara de que a realidade não existe em si, independentemente dos agentes que a observam e elaboram. Hoje o materialismo não passa de uma das realidades possíveis de um universo quântico.

Porém, o golpe fatal na sociologia marxista foi desferido pelo lado empírico e concreto: o pensamento pós-moderno de Foucault e Deleuze e a desconstrução de três fundamentos que o marxismo herdou de Hegel: a totalidade, a causalidade e a dialética.

Segundo a ótica pós-moderna, toda totalidade é totalitária, pois impõe um centro e uma determinada perspectiva do conjunto. A diversidade das partes na formam um todo; o social não pode ser tomado em seu conjunto, sem que seus elementos sofram amputações e simplificações.

Relativista e adepto da simultaneidade não-midiática de tempo-espaço, o pensamento pós-moderno também não crê em causalidade ou determinação estrutural. Seu mundo é feito de singularidades imprevisíveis. Todos os fatores se condicionam mutuamente sem que nenhum seja necessariamente determinante. E assim, o poder não é ‘propriedade’ de uma classe que o teria conquistado, mas um conjunto de estratégias materializadas em práticas, técnicas e disciplinas diversas e dispersas. Foucault e Deluze também contestam a ideia de que o Estado funciona como centro de organização social: “o poder não nem global nem local, não está em lugar nenhum, mas infinitesimalmente difuso no espaço”. De forma que, o poder também não está subordinado a um modo de produção ou a uma infraestrutura econômica. O poder é imanente à vida social e não comporta nenhum tipo de unificação transcendente ou centralização globalizante. Assim, também seria falsa a formulação de acordo com o qual, o poder agiria ora por coerção, ora por consenso.

Incorporando a perspectiva da física contemporânea, o pós-moderno imagina um universo de partes sem todo, um contínuo de tempo-espaço sem determinismos estruturais, em que tudo se condiciona e é relativo ao observador. As práticas sociais, as estratégias cognitivas, os dispositivos são impessoais, recorrências históricas intersubjetivas sem agentes, em padrões de organização aparentemente aleatórios para esconder as relações de poder sobre os corpos.

A diferença sociológica mais significativa é a mudança nos modos de dominação baseadas na disciplina para novas formas de controle social. Foucault e Deleuze descrevem a passagem das instituições de confinamento e disciplina (do adestramento individual do corpo a rotinas) para uma sociedade de controle em redes a céu aberto, através de “cifras e senhas”. Sociedade de controle se tornaria possível ainda graças ao comportamento instituído pelo regime da “moratória ilimitada’ – um aperfeiçoamento psicopolítico da culpa cristã – uma obsessão psicológica pelo ressarcimento da dívida social individualizada (1998, 219).

O pensamento de Foucault e Deleuze transformaram radicalmente o pensamento sociológico, influenciando todos os pensadores que se seguiram a eles. E, na minha opinião, é muito mais subversivo, radical e revolucionário do que o marxismo em sua crítica à sociedade.

Conclusão

Então foi assim (encontrando algo ainda mais crítico e radical) que deixei de ser marxista (e freudiano também).

Mas, isso não significa que eu o considere uma teoria inteiramente ultrapassada ou que não valorize algumas de suas versões contemporâneas. O geógrafo Milton Santos, por exemplo, responde a vários pontos da crítica pós-moderna (a história como dimensão do espaço social, a noção de território substituindo a de propriedade privada, entre outros). Ou ainda, a feminista Ângela Davis, que descreve a exploração invisível das mulheres embutida no trabalho masculino ou as relações do engendramento das intersecionalidades entre o complexo prisional e o complexo industrial-farmacêutica. Esses pensadores merecem respeito porque utilizam o pensamento de Marx para pensar suas realidades específicas, sem querer nem repeti-lo mecanicamente nem reformá-lo com idealismos. Eles não pretendem dar continuidade ou ressuscitar o marxismo original, mas se utilizam das ferramentas de análise marxistas em seus próprios projetos teóricos. Acho que também é possível incluir Edgar Morin aí.[6]

Muitas outras mudanças sociais aconteceram e o marxismo não consegue (nem poderia) compreende-las em sua teoria. Há uma evolução de uma riqueza mais quantitativa e uniforme (ter uma grande quantidade de algo) para uma baseada na diversidade e na qualidade. O modelo industrial foi substituído pelo de produção em rede (CASTELLS, 2009). A centralidade dos meios de comunicação institui um regime social de hipervisibilidade (de algumas pessoas, entidades e situações em detrimento de outras) e de simultaneidade de tempo-espaço (incluindo o surgimento de uma audiência não-presencial permanente).

Nos anos 80, a economia começou a se desmaterializar (com os bens simbólicos superando os físicos em valor e volume em âmbito global e o setor terciário (comércio e serviços) passou a suplantar a indústria na maioria no PIB dos países. O primeiro mundo não é mais formado pelos países industrializados, mas pelos países que detém as patentes dos produtos, agora fabricados pelo terceiro mundo, em virtude da mão de obra e da matéria prima mais baratas. Os países ricos terceirizaram a indústria com seus problemas trabalhistas e ambientais. Em paralelo, o marketing passou a reorganizar a produção e as instituições sociais para a sociedade de consumo. A exploração industrial se transformou em exclusão informacional.

Nesse novo contexto, os seguidores do pensamento pós-moderno acreditam que a cibercultura marca uma nova etapa de desenvolvimento social[7]. Já outros autores como Giddens (2003) consideram que a modernidade não acabou, apenas entrou em um estágio mais avançado de reflexibilidade. Para ele, a tradição é uma reflexibilidade entre o passado e o presente; e a modernidade, uma reflexibilidade entre o presente e o futuro. Com a contracultura, entramos em uma sociedade de risco (individualizando vidas em aventuras), em que a realidade moderna se globaliza ainda mais em relação aos bens simbólicos, hoje industrializados através da mídia por idioma. O certo é que tanto para os que pensam a sociedade atual através de centralidade da mídia na produção de bens simbólicos, quanto para os que acreditam no fim da modernidade, a contracultura é um marco histórico de várias mudanças sociais, não apenas em relação à interferência da comunicação no cotidiano, mas também em relação ao meio ambiente e ao universo feminino. De uma forma ou de outra, a centralidade dos meios de comunicação institui um regime social de hipervisibilidade (de algumas pessoas, entidades e situações em detrimento de outras) e de simultaneidade de tempo-espaço (incluindo o surgimento de uma audiência não-presencial permanente).

Bibliografia

ALTHUSSER, Louis. A Favor de Marx-Segunda Edição, Ed. Zahar, Rio de Janeiro, 1979.

BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. Coleção Estudos 20.  6a edição. São Paulo, Editora Perspectiva: 2009.

____ As regras da Arte - Gênese e estrutura do campo literário. Porto (Portugal), Editora Presença II: 2000a.

 ____ A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2000b.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede/ A Era da Informação: Economia, sociedade e cultura – Vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

___ O Poder da identidade/ A Era da Informação: Economia, sociedade e cultura – Vol. 2. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, l998.

___ Foucault. São Paulo: Brasilense, l985.

GIDDENS, Anthony. A terceira via. Rio de Janeiro: Record, 2001a.

_____ A terceira via e seus críticos. Rio de Janeiro: Record, 2001b.

_____ O Mundo em descontrole o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2003.

GRAMSCI, Antônio.  Cadernos de Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

____ Teoria do Agir Comunicativo: Racionalidade da ação e racionalidade social. Vol. I. Tradução de Paulo Astor Soethe.  Teoria do Agir Comunicativo: Sobre a crítica da razão funcionalista. Vol. II. Tradução de Flávio B. Siebeneichler. São Paulo. WMF Martins Fontes, 2012.

MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 2. 3ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.

MORIN, Edgar. O Método, volume primeiro, A natureza da natureza. Lisboa: Publicações Europa-América, 1977; O Método 2 - A Vida da Vida. Lisboa: Publicações Europa-América, 1980; O Método 3 - O Conhecimento do Conhecimento. Lisboa: Publicações Europa-América, 1986; e O Método 4 - As Ideias - Habitat, costumes, organização. Porto Alegre: Editora Sulina: 1998.

SARTRE, Jean-Paul. Crítica da razão dialética: precedido por questões de método. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira; apresentação da edição brasileira, Gerd Bornheim. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna – teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.

__ A mídia e a modernidade – uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2004.





[1] 'Estruturalista' porque admite que existam estruturas objetivas no mundo social que condicionam a ação e a representação dos agentes e instituições. No entanto, esses tem autonomia e podem tanto transformar como conservar as estruturas objetivas que os condicionaram. Daí, então, 'o construtivismo'. A essa dupla valência do construtivismo estruturalista, em que as condições objetivas e os esquemas subjetivos interagem chama-se Práxis.  Bourdieu supera assim tanto o objetivismo estruturalista (com ênfase no condicionamento social) como o idealismo fenomenológico (que crê na preponderância das práticas sociais e dos seus esquemas subjetivos na construção da realidade social).
[2] Há extensas discussões no marxismo sobre as relações entre teoria x prática (ou vanguarda x massa); mas poucos conseguem ver essas contradições como conflitos de classe. Isto porque não interessa ao partido e às elites serem vistos como sendo de outra classe (a dos trabalhadores que produzem bens simbólicos) que manipula o proletariado (formado pelos trabalhadores manuais). Mas, há exceções como o marxista português João Bernardo. Ele defende que a terceira classe social (os gestores) já tomou o poder tanto no mundo socialista como no ocidente.
[3] No livro A economia das trocas simbólicas (2009), Bourdieu estuda a separação da produção de bens simbólicos de massa (a indústria cultural) da produção de bens simbólicos das elites, que será desenvolvida no livro As regras da Arte (2000a). No livro A distinção (2000b), Bourdieu estabelece um esquema fatorial entre as três classes e os tipos de capital.
[4] Na época, a luta contra a ditadura dividia a esquerda em três grupos: a extrema esquerda, formada por trotskistas partidários da guerrilha urbana, da revolução mundial e da adoção imediata de um governo de trabalhadores; a esquerda revolucionária, composta pela Ação Popular Marxista Leninista (APML), pelo PC do B e pelo PCBR, defensores da guerrilha rural, de um governo democrático provisório e de um desenvolvimento por etapas; e, finalmente, o bloco mais conservador, contrário a luta armada, formado pelo PCB e pelo MR8, que defendiam uma frente única contra a ditadura e a formação de um governo democrático como estratégia. O ‘partidão’ (nome popular do PCB) era conhecido no movimento estudantil como ‘Unidade’ e sempre articulava chapas únicas, utilizando o argumento do consenso para abafar qualquer diferença política. As bandeiras específicas eram particularidades que podiam dividir o movimento e eram sacrificadas em nome da frente única.
[5] E ninguém ajuda mais a entender as ideias de ‘mudança estrutural da esfera pública’ e de ‘democracia deliberativa’ do que a internet. Na verdade, as redes tornaram Habermas um teórico descritivo e subversivo, adequado para explicar as situações vividas agora; enquanto antes das redes digitais, na época em que escreveu seus livros, ele era um teórico prescritivo marxista conservador, que procurava apenas ampliar a democracia representativa através da comunicação massificada pela indústria cultural. Hoje, percebe-se facilmente que as redes sociais digitais funcionam como micro espaços públicos de debate (extra racionais) e formam vontades políticas, influenciando imediatamente deliberações das instituições e do Estado. Não exatamente como imaginou Habermas e seus seguidores, uma vez que o espaço público é formado por redes segmentadas e comunidades de afeto (e não pelo diálogo racional entre o poder deliberativo e as vontades políticas da opinião pública representadas por jornais ou partidos). Curiosamente, a vida deu razão à minha interpretação parcial de Habermas.
[6] A teoria da complexidade de Edgar Morin (1977; 1980; 1986; 1998), por exemplo, tem três operadores principais: o princípio dialógico (ou a dualidade dentro da unidade), o princípio da recursividade (ou da causalidade circular de retroalimentação múltipla) e o princípio hologramático (segundo o qual o todo também está contido em cada parte dentro do todo). Nem o universal e abstrato, nem o relativismo concreto de cada realidade local; a complexidade é o universo concreto - em suas múltiplas dimensões simultâneas: o todo é mais e menos que a soma de suas partes ao mesmo tempo. Morin é um pensador de origem marxista-hegeliana, sendo que: no lugar da totalidade, está a complexidade; ao invés de determinação estrutural, há recursividades sistêmicas (feedbacks); e, há a oposição dialógica assimilando e superando a contradição dialética, transformando conflitos destrutivos em diálogos produtivos. Observem como Morin repensa os conceitos hegelianos da estrutura marxista contrapostos com o radicalismo pós-moderno.
[7] Pierre Levy (1993), por exemplo, considera que as sociedade tradicionais anteriores à escrita se caracterizavam por um modelo de interação ‘um-um’, em que o emissor e receptor partilhavam de um único contexto e vivem em um tempo cíclico. Para ele, as sociedades modernas se caracterizam pela interação unilateral ‘um-muitos’, um contexto de transmissão e muitos de recepção. A escrita gerou a história, a noção de tempo contínuo e linear e a ilusão do observador externo. E as sociedades atuais em rede, segundo Levy, se organizam pelo modelo de interação ‘muitos-muitos’, em que todos transmitem e recebem, havendo um retorno ampliado ao contexto único dos interlocutores e à percepção de tempo simultâneo.

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