segunda-feira, 4 de junho de 2018

O QUE É VIOLÊNCIA SIMBÓLICA


1.       O perigo da imprecisão
Há uma imprecisão significativa quando se fala de ‘violência simbólica’. A noção foi elaborada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu em diferentes contextos e em várias partes de sua extensa obra, e, nos últimos anos, caiu no senso comum, sendo bastante utilizada pelos movimentos feministas e étnicos. Paradoxalmente, uma das definições de ‘violência simbólica’ é justamente a que a vê como uma coerção naturalizada, considerada legítima por parte dos que a sofrem. A violência simbólica sobre os corpos seria exercida sem coação física, mas com danos psicológicos e morais. Ela é invisível, consentida, ritualizada como algo comum, como algo comum que faz parte da vida e de sua lógica intrínseca.
Devido sua imprecisão, a noção de violência simbólica foi criticada por outros pensadores importantes como Michel Foucault e Jürgen Habermas. Foucault considera que toda violência física em si é simbólica, e vice-versa; e Habermas, considera que o físico é exterior ao simbólico e que a noção é apenas uma metáfora, ou uma duplicação da verdadeira violência. Tais críticas, no entanto, longe de desqualificar a noção de Bourdieu apontam para o fato de que a violência simbólica ocupa um espaço intermediário que escapa aos seus críticos, uma interseção preciosa entre o real e o simbólico.
O próprio termo ‘simbólico’ também encerra diferentes interpretações. Pierce afirma que o Símbolo é a representação de um signo por outro, uma metalinguagem. Freud acha o Simbólico é a sublimação transcendente de nossos desejos recalcados. Bourdieu utiliza o termo freudiano, mas com uma abrangência diferente, falando de ‘economia de bens simbólicos’ e de ‘poder simbólico’ como uma forma de subverter e ampliar o pensamento sociológico. 
2.       Definição e aplicações
Em um primeiro momento, a definição de violência simbólica é referente ao sistema educacional se confunde com o aspecto perverso do habitus. A violência simbólica é a interiorização da crueldade exterior e a exteriorização de seus recalques. Nesses primeiros trabalhos sobre a escola, principalmente em A Reprodução – Elementos para uma teoria do sistema de ensino (2014), a noção de habitus é mais determinista[1], a reprodução inconsciente do passado e explica porque a ação social repete esquemas subjetivos, resultantes da interiorização das regras da estrutura social, que os agentes passam adotar 'naturalmente'.
A noção de violência simbólica vem do consentimento dos dominados. Ela é uma imposição dos dominantes diante da submissão voluntária dos dominados. No caso da escola, ela se manifesta como uma ‘indiferença às diferenças’ no processo de transmissão do capital cultural. Todos são tratados como ‘iguais’ embora sejam ‘diferentes’. E esse enquadramento simbólico de todos à igualdade torna-se um fator violento de desqualificação da maioria. A uniformização das diferenças é uma violência simbólica.
Em um segundo momento, a noção de violência simbólica estará associada ao exercício do poder simbólico. Essa é a proposta dos livros A economia das trocas simbólicas (2003), em que a violência é a imposição estrutural de trocas simbólicas desiguais; e O poder simbólico (2001), em que a violência simbólica é apresentada como a prática social de dominação estrutural. Para Bourdieu, a posição de todos agentes no espaço social depende do volume e da estrutura de seu Capital (1996, 53-54). Há quatro tipos: Capital Econômico propriamente dito; Capital Cultural (conjunto das qualidades intelectuais produzidas pelo sistema escolar ou transmitidas pela família); Capital Social (definido pelo conjunto das amizades de que dispõe um indivíduo ou um grupo); e Capital Simbólico (correspondente ao conjunto de rituais ligados à honra e ao reconhecimento).
E a violência simbólica se dá justamente pela falta de equivalência desses diferentes tipos de capital entre as pessoas ou instituições. E esse ponto de vista está presente nos dois principais livros de Bourdieu: As regras da arte - Gênese e estrutura do campo literário (1996) e A Distinção – Crítica social do julgamento (2007).
Há ainda os livros Sobre a Televisão (1997) e A Dominação Masculina (1999) em que a noção de violência simbólica é aplicada em casos específicos.
Sobre a televisão é um texto militante. Bourdieu combate o poder da visibilidade midiática da TV em sua tentativa de usurpar o poder simbólico. Para ele, a televisão aspira pelo monopólio da violência simbólica (Max Weber disse que o estado detém o monopólio da violência) e é preciso detê-la. Não se trata, portanto, de uma análise descritiva sobre o campo de comunicação em relação a outros campos. O mesmo pode ser dito do jornalismo e da opinião do sociólogo sobre essa atividade profissional.
Já o livro A dominação masculina é importante porque demonstra a violência simbólica contra a mulher (principalmente o sequestro da identidade dominada pelo dominador) produz um padrão a ser repetido com outros ‘outros’: empregados, estrangeiros, subalternos, etc. Os dominados passam a se identificar (com a imagem de) seus dominadores e se sentem desqualificados como agentes.
A violência simbólica aqui é a repetição constante e contínua desta desvalorização da identidade dominada até que ela própria não acredite mais em si e concorde em ser um elemento secundário diante da identidade dominadora. Assim, por exemplo, a indústria cultural faz com que os latinos morenos idolatrem atores e atrizes caucasianos, louros e olhos azuis; copiando-lhes a aparência e o estilo de vida consumista, faz com eles não valorizem a própria cultura e os próprios valores. O capitalismo uniformiza as culturas impondo as ideias e padrões estéticos dos países dominantes.
E, assim, o comportamento machista e o imperialismo cultural são apontados como exemplos específicos de ‘violência simbólica’.
3.       Ditados
Lacan foi outro grande estudioso do simbólico. No famoso texto sobre a fase do espelho, ele demonstra que o simbólico é um campo cognitivo intermediário entre o real e o imaginário, entre o verdadeiro e o falso. As narrativas são simbólicas. E, entre as narrativas, talvez ‘as mais’ simbólicas sejam os ditados morais. Eles não só ditam (prescrevem) como as coisas devem ser, mas sobretudo eles ditam (descrevem) como as coisas sempre são. São normas de naturalização naturalizadas e normatizadas.
O ditado “quem dá o pão, dá o pau; quem dá o pau, dá o pão” – por exemplo – não apenas legitima a violência em virtude da dependência econômica mas também responsabiliza o dominador pelo sustento do dominado. Ele é um contrato informal de reciprocidade entre a violência simbólica e a física. Ou ainda: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Quem dá ordens (ou manda) é quem tem poder (dominação e/ou capacidade). A competência de ordenar é resultante do atributo de poder fazê-lo. E mais: há uma ameaça embutida aqui. Pois quem não pode mandar, deve obedecer. A menos que esteja louco e enfrente a violência simbólica. O ditado assim é uma forma de violência simbólica e a própria violência simbólica. 
A regulamentação simbólica da violência simbólica pode chegar a níveis elevados de sofisticação: “Sou responsável pelo que falo, não pelo que você escuta”. Nesse caso, há uma defesa da inocência do emissor diante da liberdade de interpretação do receptor. No entanto, a violência simbólica ocorre com quem a recebe, mesmo que sem intenção de ofender por parte de quem a induz. A violência simbólica é mais sofrida que infligida. Todos somos vítimas e ninguém se lembra do papel de algoz. Aliás, hoje chama-se ‘gatilhos’ e ‘estressores’ aos fatores sociais que desencadeiam os comportamentos violentos.
4.       Conclusão
Os estudos atuais sobre violência não utilizam mais a ideia de ‘violência simbólica’ porque existem definições melhores para descrever as situações reais em termos sociológicos. Conti (2015), por exemplo, distingue três dimensões para pensar a violência: a direta (nível: evento; fenômeno: agressão), a cultural (nível: linguagem; fenômeno: legitimação) e a estrutural (nível: processo; fenômeno: dominação). A violência direta é composta por homicídios, roubos, sequestros, estupros, tortura e atos criminosos em geral. A violência cultural é formada pelo machismo, pelo nacionalismo, pelo elitismo, entre outras formas de identidade exclusivas e exclusoras. E a violência estrutural é organizada a partir da privação, da marginalização, da discriminação. Essas três dimensões interagem entre si, gerando um esquema chamado ‘triângulo da violência’.
Ao mesmo tempo que a noção cunhada por Bourdieu deixou de ser utilizada conceitualmente para descrever a violência do ponto de vista sociológico, ela também foi naturalizada politicamente pelos movimentos sociais, que passaram a utilizá-la não apenas para definir os casos de constrangimento de várias minorias, mas também como uma forma de contra violência. A violência simbólica passou a ser utilizada para revidar, compensar ou conscientizar-nos das desigualdades estruturais da sociedade. O terrorismo poético, por exemplo[2].

Referências bibliográficas
BOURDIEU, P. As Regras da Arte: génese e estrutura do campo literário, Lisboa: Presença, 1996
____ Sobre a Televisão, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
____ O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2001.
____ A Economia das Trocas Simbólicas, São Paulo, Editora Perspectiva S.A., 2003
____ A Dominação Masculina, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999.
____ A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.
BOURDIEU. Pierre. PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 2014.
CONTI, T. V. (2015). Guerras Capitais – um estudo sobre as transformações na competição econômica e na rivalidade política internacional: a Hegemonia da Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a Alemanha de 1803 a 1914. Dissertação (Mestrado). Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 2015. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000946784
MIRANDA, Luciano. Pierre Bourdieu e o campo da comunicação: por uma teoria da comunicação praxiológica. Porto Alegre, RS: EDIPUCRS, 2005.




[1] Os especialistas (JOURDAIN, 2017, 49-53) destacam três conceitos de habitus em Bourdieu: o habitus determinista do livro A Reprodução (“a interiorização do exterior e a exteriorização do interior”); o habitus-inércia como uma força de resistência à mudanças em várias obras intermediárias; e, finalmente, o habitus probabilístico, formado por ‘esquemas de percepção, de julgamento e de comportamento’ incorporados semi conscientemente pelos agentes de A Distinção (2007).

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