1.
O
perigo da imprecisão
Há uma
imprecisão significativa quando se fala de ‘violência simbólica’. A noção foi
elaborada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu em diferentes contextos e em
várias partes de sua extensa obra, e, nos últimos anos, caiu no senso comum,
sendo bastante utilizada pelos movimentos feministas e étnicos. Paradoxalmente,
uma das definições de ‘violência simbólica’ é justamente a que a vê como uma
coerção naturalizada, considerada legítima por parte dos que a sofrem. A
violência simbólica sobre os corpos seria exercida sem coação física, mas com
danos psicológicos e morais. Ela é invisível, consentida, ritualizada como algo
comum, como algo comum que faz parte da vida e de sua lógica intrínseca.
Devido
sua imprecisão, a noção de violência simbólica foi criticada por outros
pensadores importantes como Michel Foucault e Jürgen Habermas. Foucault
considera que toda violência física em si é simbólica, e vice-versa; e
Habermas, considera que o físico é exterior ao simbólico e que a noção é apenas
uma metáfora, ou uma duplicação da verdadeira violência. Tais críticas, no
entanto, longe de desqualificar a noção de Bourdieu apontam para o fato de que
a violência simbólica ocupa um espaço intermediário que escapa aos seus
críticos, uma interseção preciosa entre o real e o simbólico.
O
próprio termo ‘simbólico’ também encerra diferentes interpretações. Pierce
afirma que o Símbolo é a representação de um signo por outro, uma
metalinguagem. Freud acha o Simbólico é a sublimação transcendente de nossos
desejos recalcados. Bourdieu utiliza o termo freudiano, mas com uma abrangência
diferente, falando de ‘economia de bens simbólicos’ e de ‘poder simbólico’ como
uma forma de subverter e ampliar o pensamento sociológico.
2. Definição e aplicações
Em um
primeiro momento, a definição de violência simbólica é referente ao sistema
educacional se confunde com o aspecto perverso do habitus. A violência
simbólica é a interiorização da crueldade
exterior e a exteriorização de seus recalques. Nesses primeiros trabalhos sobre
a escola, principalmente em A
Reprodução –
Elementos para uma teoria do sistema de ensino (2014), a noção de habitus é mais determinista[1],
a reprodução inconsciente do passado e explica porque a ação social repete
esquemas subjetivos, resultantes da interiorização das regras da estrutura
social, que os agentes passam adotar 'naturalmente'.
A
noção de violência simbólica vem do consentimento dos dominados. Ela é uma
imposição dos dominantes diante da submissão voluntária dos dominados. No caso
da escola, ela se manifesta como uma ‘indiferença às diferenças’ no processo de
transmissão do capital cultural. Todos são tratados como ‘iguais’ embora sejam
‘diferentes’. E esse enquadramento simbólico de todos à igualdade torna-se um
fator violento de desqualificação da maioria. A uniformização das diferenças é
uma violência simbólica.
Em um
segundo momento, a noção de violência simbólica estará associada ao exercício
do poder simbólico. Essa é a proposta dos livros A economia das trocas simbólicas
(2003), em que a violência é a imposição estrutural de trocas simbólicas
desiguais; e O poder simbólico (2001), em que a
violência simbólica é apresentada como a prática social de dominação
estrutural. Para Bourdieu, a posição de todos agentes no espaço social depende
do volume e da estrutura de seu Capital (1996, 53-54). Há quatro tipos: Capital
Econômico propriamente dito; Capital Cultural (conjunto das qualidades
intelectuais produzidas pelo sistema escolar ou transmitidas pela família);
Capital Social (definido pelo conjunto das amizades de que dispõe um indivíduo
ou um grupo); e Capital Simbólico (correspondente ao conjunto de rituais
ligados à honra e ao reconhecimento).
E a
violência simbólica se dá justamente pela falta de equivalência desses
diferentes tipos de capital entre as pessoas ou instituições. E esse ponto de
vista está presente nos dois principais livros de Bourdieu: As regras da arte - Gênese e estrutura do
campo literário (1996) e A
Distinção – Crítica social do julgamento
(2007).
Há
ainda os livros Sobre a Televisão (1997) e A Dominação Masculina (1999) em que
a noção de violência simbólica é aplicada em casos específicos.
Sobre a televisão é um texto militante.
Bourdieu combate o poder da visibilidade midiática da TV em sua tentativa de
usurpar o poder simbólico. Para ele, a televisão aspira pelo monopólio da
violência simbólica (Max Weber disse que o estado detém o monopólio da
violência) e é preciso detê-la. Não se trata, portanto, de uma análise
descritiva sobre o campo de comunicação em relação a outros campos. O mesmo pode
ser dito do jornalismo e da opinião do sociólogo sobre essa atividade
profissional.
Já o
livro A dominação masculina é
importante porque demonstra a violência simbólica contra a mulher (principalmente
o sequestro da identidade dominada pelo dominador) produz um padrão a ser
repetido com outros ‘outros’: empregados, estrangeiros, subalternos, etc. Os
dominados passam a se identificar (com a imagem de) seus dominadores e se
sentem desqualificados como agentes.
A
violência simbólica aqui é a repetição constante e contínua desta
desvalorização da identidade dominada até que ela própria não acredite mais em
si e concorde em ser um elemento secundário diante da identidade dominadora. Assim,
por exemplo, a indústria cultural faz com que os latinos morenos idolatrem
atores e atrizes caucasianos, louros e olhos azuis; copiando-lhes a aparência e
o estilo de vida consumista, faz com eles não valorizem a própria cultura e os
próprios valores. O capitalismo uniformiza as culturas impondo as ideias e
padrões estéticos dos países dominantes.
E,
assim, o comportamento machista e o imperialismo cultural são apontados como
exemplos específicos de ‘violência simbólica’.
3. Ditados
Lacan
foi outro grande estudioso do simbólico. No famoso texto sobre a fase do
espelho, ele demonstra que o simbólico é um campo cognitivo intermediário entre
o real e o imaginário, entre o verdadeiro e o falso. As narrativas são
simbólicas. E, entre as narrativas, talvez ‘as mais’ simbólicas sejam os
ditados morais. Eles não só ditam (prescrevem) como as coisas devem ser, mas
sobretudo eles ditam (descrevem) como as coisas sempre são. São normas de
naturalização naturalizadas e normatizadas.
O
ditado “quem dá o pão, dá o pau; quem dá
o pau, dá o pão” – por exemplo – não apenas legitima a violência em virtude
da dependência econômica mas também responsabiliza o dominador pelo sustento do
dominado. Ele é um contrato informal de reciprocidade entre a violência
simbólica e a física. Ou ainda: “Manda
quem pode, obedece quem tem juízo”. Quem dá ordens (ou manda) é quem tem
poder (dominação e/ou capacidade). A competência de ordenar é resultante do
atributo de poder fazê-lo. E mais: há uma ameaça embutida aqui. Pois quem não
pode mandar, deve obedecer. A menos que esteja louco e enfrente a violência
simbólica. O ditado assim é uma forma de violência simbólica e a própria
violência simbólica.
A
regulamentação simbólica da violência simbólica pode chegar a níveis elevados
de sofisticação: “Sou responsável pelo
que falo, não pelo que você escuta”. Nesse caso, há uma defesa da inocência
do emissor diante da liberdade de interpretação do receptor. No entanto, a
violência simbólica ocorre com quem a recebe, mesmo que sem intenção de ofender
por parte de quem a induz. A violência simbólica é mais sofrida que infligida.
Todos somos vítimas e ninguém se lembra do papel de algoz. Aliás, hoje chama-se
‘gatilhos’ e ‘estressores’ aos fatores sociais que desencadeiam os
comportamentos violentos.
4. Conclusão
Os
estudos atuais sobre violência não utilizam mais a ideia de ‘violência
simbólica’ porque existem definições melhores para descrever as situações reais
em termos sociológicos. Conti (2015), por exemplo, distingue três dimensões
para pensar a violência: a direta (nível: evento; fenômeno: agressão), a
cultural (nível: linguagem; fenômeno: legitimação) e a estrutural (nível: processo;
fenômeno: dominação). A violência direta é composta por homicídios, roubos,
sequestros, estupros, tortura e atos criminosos em geral. A violência cultural
é formada pelo machismo, pelo nacionalismo, pelo elitismo, entre outras formas
de identidade exclusivas e exclusoras. E a violência estrutural é organizada a
partir da privação, da marginalização, da discriminação. Essas três dimensões
interagem entre si, gerando um esquema chamado ‘triângulo da violência’.
Ao
mesmo tempo que a noção cunhada por Bourdieu deixou de ser utilizada
conceitualmente para descrever a violência do ponto de vista sociológico, ela
também foi naturalizada politicamente pelos movimentos sociais, que passaram a
utilizá-la não apenas para definir os casos de constrangimento de várias
minorias, mas também como uma forma de contra violência. A violência simbólica
passou a ser utilizada para revidar, compensar ou conscientizar-nos das
desigualdades estruturais da sociedade. O terrorismo poético, por exemplo[2].
Referências bibliográficas
BOURDIEU, P.
As Regras da Arte: génese e estrutura do campo literário, Lisboa:
Presença, 1996
____
Sobre a Televisão, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
____ O poder
simbólico. Rio de Janeiro: Bertand
Brasil, 2001.
____ A
Economia das Trocas Simbólicas, São
Paulo, Editora Perspectiva S.A., 2003
____ A
Dominação Masculina, Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 1999.
____ A distinção: crítica social do julgamento.
São Paulo: Edusp, 2007.
BOURDIEU.
Pierre. PASSERON, Jean-Claude. A
reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis:
Vozes, 2014.
CONTI, T. V. (2015). Guerras Capitais – um estudo sobre as transformações na competição econômica e na rivalidade política internacional: a Hegemonia da Grã-Bretanha, os Estados Unidos e a Alemanha de 1803 a 1914. Dissertação (Mestrado). Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 2015. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000946784
MIRANDA,
Luciano. Pierre Bourdieu e o campo da
comunicação: por uma teoria da comunicação praxiológica. Porto Alegre, RS:
EDIPUCRS, 2005.
[1]
Os especialistas (JOURDAIN, 2017, 49-53)
destacam três conceitos de habitus em Bourdieu: o habitus determinista do livro
A Reprodução (“a interiorização do
exterior e a exteriorização do interior”); o habitus-inércia como uma força de
resistência à mudanças em várias obras intermediárias; e, finalmente, o habitus
probabilístico, formado por ‘esquemas de percepção, de julgamento e de
comportamento’ incorporados semi conscientemente pelos agentes de A Distinção (2007).
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