O jogo de futebol
como processo sistêmico ([1])
Gottfried Stockinger
([2])
O mundo dos jogadores na rede do jogo é um exemplo
clássico de formação de sistemas sociais autopoiéticos. Se observarmos do ponto
de vista do sistema "equipe", o sistema social está bem delineado,
são 11 jogadores, sendo que 3 podem ser substituídos, incluindo o goleiro. O
resto é ambiente: as regras e a arbitragem, o gramado, o vento; ou trata-se de
sistemas no ambiente, como o público e a direção técnica do time.
Observando
este sistema (temporário, constituído conscientemente pelo tempo de 90 minutos,
mais os acréscimos) na sua comunicação, as primeiras limitações que reduzem a
complexidade do seu jogo aparecem ao nível das regras, que delimitam o campo de
ações possíveis. Trata-se, neste caso, de futebol e não handebol. As regras
reduzem a complexidade do jogo a um nível suportável. Embora no caso do futebol
algumas regras estejam sujeitas a desinterpretação, sobretudo no que se refere
à regra que versa sobre "impedimento". Para observar uma situação de
impedimento, o assistente de linha deve lançar dois olhares ao mesmo tempo: um
para o jogador da bola, e outro para o possível receptor desta, para ver se
este está em posição de impedimento ou não, no instante da bola ser lançada. Quando
se trata de um passe longo, mesmo um "olhar 43" não será suficiente
para determinar a situação, porque é impossível captar os dois (ou até mais)
jogadores envolvidos. E também faltas na área sofrem muitas vezes da mesma
cegueira e dão ou não em pênalti, dependendo da interpretação de regras.
Mas fora essas incongruências, que seriam em muitas
situações facilmente superáveis se as regras admitissem provas gravadas em
vídeo, as regras e a arbitragem funcionam como redutores de complexidade,
experimentadas e adaptadas durante mais de um século. O gramado, o vento e
outras condições são fatores ambientais por vezes consideráveis, mas raramente
decisivos. Embora haja a possibilidade de se aproveitar o vento para impor
curvas à trajetória da bola, ou, usando a força do vento a favor, o goleiro
marcar um gol "de primeira" ao dar saída à bola com a ajuda do vento,
que segue caindo na rede, subestimada pelo goleiro adversário. Cada campo e
gramado formam um ambiente próprio, com certas dimensões, que podem variar
bastante. O campo oficial, pela FIFA ([3]) mede 60 a 70 metros de largura e 100 a
110 metros de comprimento, ou seja, entre 600 e 770 metros quadrados, diferença
de 170 m2, um leque de variação de mais de um quarto do tamanho mínimo ao
tamanho máximo. Por isso há campos específicos que dão vantagem ao clube que os
conhece, para quem joga em casa, por exemplo.O público é um fator ambiental em
muito parecido com ruído que informa. Ruído de aplausos, ruído de xingamento,
ruído de decepção, e sobretudo o ruído do grito de gol, que é música para quem
o solta, e barulho infernal para quem precisa ficar calado.
O subsistema
técnico, via de regra reduzido a uma pessoa - o técnico - atua neste ambiente
do jogo de forma específica. Sua principal fase de operação já passou quando o
jogo inicia: ele trabalhou na instalação de um sistema de comunicação interna
da equipe, chamado de "tática". Ele voltará a atuar no intervalo do
jogo, e, sobretudo, depois do jogo, desta vez com observações de segunda ordem,
reflexivas. Posicionada desta maneira a complexidade ambiental, podemos passar
para a complexidade interna do sistema jogo.
Para tal
começaremos com a observação de primeira e segunda ordem da interação entre a
ação do jogador e o trajeto da bola, denominada simplificadamente de interação
jogador-bola. Ao observar a interação jogador-bola na concatenação dos lances
do jogo, se revelam eventos que reduzem extrema complexidade. O comportamento
trivial/racional do jogador em relação à bola é desafiado, não consegue
"dar conta do recado" e se decompõe no preciso momento da interação,
do toque, do passe, e, sobretudo do drible, como uma das formas mais complexas
de jogo individual. Seus elementos são condensados em uma nova dimensão de
comunicação que se abre: complexidade não racional, mas emotiva (experimentada
pelo jogador como sensação, feeling). A complexidade não pode ser reduzida
racionalmente. É impossível calcular, no tempo disponível, cada movimento do pé
e da bola. Experiência anterior (guardada como memória nos músculos, corpo e
cérebro) é invocada e aplicada ao caso concreto (tiro, passe, drible, parar a
bola etc.). A habilidade aumenta com a prática, se diferencia cada vez mais e
pode levar quase a perfeição. A necessidade de reduzir a complexidade a ponto
de sobrar apenas uma opção, num curtíssimo espaço de tempo, ativa um
processamento compactado de informação, de caráter "emocional". Ele
"comanda" o lance. Tomemos o exemplo de um lance de recepção e
repasse de bola, um processo padronizado no jogo de futebol, muito praticado
nos treinos.
E observemos
em câmera lenta: a bola vem, por exemplo, da esquerda, de trás, com uma
velocidade de 50km/h, com 100 rotações/minuto de efeito. A velocidade própria
do jogador receptor é de 15km/h, o ângulo de recepção em relação ao corpo é de
30 graus. Nestas condições, a bola deve ser recebida e a sua posse defendida
imediatamente. Como é que o jogador faz para "calcular" todos estes
fatores? Quem joga bola sabe (e quem não joga, mas observa, imagina) que esta
pergunta não há como passar pela cabeça do jogador. Pelo contrário: se o
jogador ocupasse sua cabeça com esta pergunta, tentando calcular os fatores,
para depois transmitir o resultado ao pé, a bola já teria passada por falta de
reação, em tempo, do jogador. Ou ele teria se preocupado tanto e pisado na
bola. O cálculo tem de ser eliminado para possibilitar uma ação concentrada do
jogador. A recepção da bola sob pressão de tempo elimina o cálculo trivial e
ativa outra forma de percepção, baseado em complexidade contingente, ou seja,
no aproveitamento de acasos para formar um (sub-) sistema de ação . Esta forma
de ação, aliás, a mais comum tratando-se de futebol, trata a situação com a
rapidez exigida, mas paga o preço pela falta de exatidão. (Apenas com tempo
infinito disponível, um tratamento seguro da bola seria possível).
Vemos que a "causa" do domínio da bola
pelo jogador não pode ser vista numa transmissão de informação calculável. A
informação do subsistema jogador-bola é gerada a partir de um "ruído"
interno, que se expressa em movimentos complexos, processados pelo sistema
psíquico "jogador", que se encontra no ambiente do sistema
"jogo". Nenhum grito vindo do banco do técnico terá alguma influência
benéfica no momento da recepção da bola sob pressão ambiental (sobretudo do sistema
"adversário" no ambiente). Não há tempo suficiente para troca de
informação; ela é gerada no instante e só depois ela pode ser avaliada enquanto
informação. Antes não passava de uma expectativa que gerou ação.
A complexidade tem de ser reduzida para que haja
qualquer ação do jogador. A situação contingente é normalmente resolvida quando
a bola é dominada. Só então a dica do técnico de passar a bola para
frente-esquerda tem chances de ser ouvida e aceita. Logo em seguida o tempo é
compactado de novo, e uma nova situação complexa surge para preparar e terminar
o passe ou chute. As situações mais interessantes no futebol são, sem dúvida,
as chances de gol. Há "causas" que levam ao gol? Se não há causas
causais, certamente há situações com maior ou menor probabilidade de marcar um
gol.
Comecemos pela chance menos esperada, mas nem por
isso menos provável: o gol feito num contra-ataque. Na verdade, o contra-ataque
ou conter cria uma chance quase que impossível dentro da lógica esperada do
jogo. Ele parte, via de regra, de uma situação atacante-defensor, onde o
defensor aproveita falhas no domínio de bola do atacante. Nesse preciso,
momento, ele passa e reagir explosivamente, se apossa da bola, e o
contra-ataque é iniciado. Instantes antes, a equipe adversária estava no
ataque, se "sentiu" no ataque, todas as expectativas estavam voltadas
para frente, até a defesa avançou para apoiar o ataque. Aí o acaso (junto com a
habilidade de um defensor) cria o paradoxo: de repente, os atacantes estão sem
a bola, e os defensores do mesmo time também; a bola está completamente fora do
sistema "time". A situação atual nada tem a ver com o que aconteceu
antes. A surpresa é o fator principal do novo atacante marcar o gol, talvez
sozinho, o que ainda é mais surpreendente.
As situações possíveis no futebol são infinitas,
mais do que há átomos no universo.O jogo nunca é perfeito, está sujeito a
desvios casuísticos. O adversário espera sua chance. E o chute perfeito precisa
de "sorte". E mesmo uma bola mal chutada pode alcançar um outro
jogador da mesma equipe, parecendo que o passe estava certo. Mais um giro e:
gol! Muita sorte...Qual a causa? Alguns jogadores dizem "sentir" tal
sorte: "Eu bati na bola de bicicleta e senti que ela ia entrar no canto
superior. Quando a galera soltou o grito, eu já estava chorando de alegria,
deitado no chão”. Fazer um gol depende de seleções de vários níveis, por
exemplo:
a)
que o jogador atacante, em posição de tiro, escolha o
alvo certo (por exemplo um dos cantos superiores do gol);
b) da diferença da posição do pé em relação à
posição e rotação da superfície da bola;
c)
ambos em dependência das posições mais ou menos
complementares do jogador defensivo do adversário (o que complica bastante).
Seleção se transforma aqui em processo
autodeterminado que é regido pelas suas próprias leis do acaso. E sabe-se que o
acaso não é totalmente casuístico. (A lei de grandes números diz, por exemplo,
que a longo prazo tudo sai igual. As chances estão distribuídas, dependem
"apenas" da habilidade do time de criá-las e aproveitá-las.) A
influência sobre o chute ao gol abrange no máximo 2 a 3 lances de jogo. Os
lances anteriores (via de regra no meio campo) visam apenas manter a bola na
posse da equipe atacante, sem influência direta para a marcação de um gol. A
maioria dos chutes não acerta o alvo, mas ou menos numa proporção de 1:10.
Quando se chuta ao alvo, a estatística mostra uma taxa de acerto de 12%, no
campeonato brasileiro da primeira divisão de 1993 ([4]).
E o futebol brasileiro não é o pior, como se sabe. (até perder para a
Austrália!!!) Cerca de oito a nove chutes de dez que almejam (o termo que mais
se aproxima é apontam ) intencionalmente o gol não entram. Isso ocorre sem que
o jogador tenha tido a intenção de não acertar, pelo contrário. Por outro lado,
1 de cada 20 gols foi marcado contra, certamente sem nenhuma intenção, segundo
a mesma fonte. Sendo assim, não é de se admirar que muitos gols são hoje
marcados de "bola parada", em situações padronizadas, de esquanteio
ou de tiro livre. Na Eurocopa das Nações de 1996, quase cada segundo gol saiu
de uma tal situação ([5]).
Para usar o
pensamento sistêmico: os fatores de marcação de gol não estão apenas nas
habilidades dos jogadores, mas sim num processo de comunicação complexo entre
bola e jogadores. Já que no futebol a criação de posições de tiro
("chances") é fundamental, vale a pena observar a evolução da relação
entre o ataque do time e a defesa adversária. Nos últimos 60 anos, apesar de
ter melhorado a técnica e a atlética, a tendência foi, até bem pouco tempo, para
cada vez menos gols por jogo. Nos campeonatos mundiais, a média que era de 4.42
gols/j até os anos 50 caiu para 3.1g/j nos anos 60, continuando descer para
2.54g/j nos anos 80. Em 1990, apenas 2.1g/j foram marcados (ver tabela abaixo).
Tabela: Gols marcados em Copas do Mundo:
|
||||
Ano da Copa
|
Gols marcados
|
Número de jogos
|
Gols por jogo
|
Média plurianual
|
1930
|
70
|
18
|
3.9
|
|
1934
|
70
|
17
|
4.1
|
|
1938
|
84
|
18
|
4.7
|
|
1950
|
88
|
22
|
4.0
|
(1930 - 1954)
|
1954
|
140
|
26
|
5.4
|
4.42
|
1958
|
126
|
35
|
3.6
|
|
1962
|
89
|
32
|
2.8
|
|
1966
|
89
|
32
|
3.0
|
(1958-1970)
|
1970
|
95
|
32
|
3.0
|
3.10
|
1974
|
97
|
38
|
2.6
|
|
1978
|
102
|
38
|
2.7
|
(1974-1986)
|
1982
|
146
|
52
|
2.8
|
2.54
|
1986
|
132
|
52
|
2.5
|
|
1990
|
107
|
52
|
2.1
|
2.1
|
Fonte: Folha de São Paulo,
8. 1. 94
|
Isso ocorreu
apesar das regras do jogo não terem mudado essencialmente por todo este tempo.
Os fatores principais são de ordem informacional:
a)
A previsibilidade de lances que levam a chances de gol
sobe com a quantidade de jogos realizados e refletidos ("efeito de
experiência").
b)
Todos os envolvidos no jogo, principalmente os
jogadores estão melhor preparados para possíveis variantes de jogo. As
expectativas mútuas se tornaram mais calculáveis.
c)
Aos ataques melhorados se contrapõem defesas ainda mais
(aperfeiçoadas) melhoradas. O desenvolvimento mais elaborado do jogo de defesa
(tendo como modelo o "cattenaggio" italiano, baseado num encadeamento
de jogadores de defesa) se explica pelo maior número de possibilidades de
defesa em comparação com o ataque. No tiro ao gol, a bola tem que acertar uma
certa área (7,15m x 2,2m); no tiro da defesa, a bola pode se direcionar para
qualquer área (menos para a própria baliza, é claro).
Esta
assimetria das chances de desenvolvimento do jogo de defesa em relação ao
ataque, não foi percebida quando se fundou o jogo de bola moderno, mais de 100
anos atrás. Hoje ela é utilizada conscientemente e começa a diferenciar tanto,
que certas regras estão sendo introduzidas para aumentar as possibilidades dos
goleadores.
Podemos falar
de uma pequena mudança de paradigma nas regras do futebol. Vejamos as seguintes
medidas já tomadas ou planejadas para aumentar as chances de gol e restabelecer, assim, o equilíbrio
original entre defesa e ataque (dando "brilho" ao jogo):
a)
Relaxamento da regra de impedimento: antes um atacante
tinha de se encontrar atrás do último jogador adversário (de campo), quando o
passe para ele foi lançado. Hoje ele pode-se encontrar na mesma altura.
b)
Pensa-se em abolir o impedimento em caso de remesso
lateral. Outros pensam em eliminá-lo por completo, o que na minha opinião
transformaria o futebol em jogo de basquete, sem meio campo.
c)
Quando a bola é devolvida ao goleiro, com o pé, este
não pode mais levantá-la com a mão, o que evita a "cera" e leva
momentos de suspense adicional ao jogo.
d)
O goleiro não pode ficar com a bola nas mãos por mais
de 4 segundos. Efeito semelhante ao anterior.
e)
Para incentivar o ataque e evitar jogos sem gol, 3
pontos (e não 2 como antes) são atribuídos ao vencedor. (Introduzido desde a
copa do mundo 94).
f)
Outras idéias veiculadas: aumento do tamanho do gol,
substituição do arremesso lateral pelo chute e outras mudanças de regra que
reequilibrem as forças entre defesa e ataque.
Apenas no
chute "puro" ao gol, representado pelo pênalti, quando a bola está
parada a 11m de distância do gol, as chances de marcar sobem para acima de 50%.
Ou seja: na maioria das vezes, a bola entre na rede. Defender um tiro de
penalidade máxima é, portanto, considerado um ato
heróico. O sistema social que se constrói entre goleiro e atirador é fascinante
de ser observado, com todos os seus arranjos, rotinas e truculências. No
pênalti pode ser observada a decisão do indecidível. A situação de duelo inicia
com a colocação da bola. Jogadores experientes lançam olhares aterrorizantes
para o adversário ou - abordagem alternativa - o ignoram por completo, mostrando
seu desprezo.
Diferente do
chute incerto ao gol em situações de ataque corriqueiras, o tiro de penalidade
máxima é esperado de ser tão certo, que atiradores espertos tendem a incluir
movimentos "casuísticos" na sua execução. Fazem uma "ginga"
com o corpo pouco antes de atirar a bola para despistar o goleiro. Tentam
fornecer-lhe informação "errada", olhando para esquerda e atirando
para a direita, por exemplo. A arte está em resolver uma situação em principio
bem sistêmica, indefinida. O jogador tenta, para tal, observar qualquer
movimento do goleiro instantes antes do seu pé de tiro se chocar com a
superfície da bola, dando-lhe direção, força e altura. Seja qual for o grau de
percepção, em última instância a situação fica indefinida até a bola se mover
"de verdade" numa determinada direção. Só neste preciso instante a
situação se decide, e tudo que era antes, as expectativas mútuas, frustradas ou
realizadas, deve ser reinterpretado à luz da realidade física, ou seja, da
trajetória que a bola toma. A decisão do indecidível aconteceu.
Os movimentos
do atirador e do defensor têm as suas causas na comunicação entre os jogadores.
Sem essa comunicação, os movimentos seriam meramente casuísticos. Para o
goleiro, quando ele está completamente indeciso, o melhor movimento é ficar
parado, no meio do gol. Inclusive muitos gols podiam ser defendidos em pênaltis
se o goleiro tivesse simplesmente ficado parado no seu lugar inicial. Ambos
sabem de suas expectativas mútuas: pois, por outro lado, o goleiro tenta
"adivinhar" o canto do jogador. O seu técnico talvez o tenha dito que
o atirador costuma preferir direito abaixo. Que sentido fará essa informação,
naquele momento? Diz apenas para ver se consegue checar se isso será o caso
também neste chute. Ou seja: relega o goleiro a mais observações, embora já
mais filtradas, menos complexas. O goleiro acha perceber que o chute vá à
direita, e inicia, no último momento, um movimento para lá. O jogador percebe,
reprograma o ultimo instante a direção do chute, e ... sai para o abraço. Ou
não. No duelo pela decisão do indecidível, não há delimitação da imaginação de
expectativas esperadas. Se o goleiro procura adivinhar a direção da bola, o
jogador, por sua vez, procura adivinhar qual dos cantos o goleiro acha
adivinhar. O executor da penalidade toma distância, corre e sinaliza esquerda,
para ver para onde o goleiro tende a se deslocar. (Pela regras, o goleiro não
pode se mover com os pés até a bola ser tocada; ele pode se mexer apenas com a
cabeça, o tronco e os braços).
O goleiro, sabendo
que o outro tenta adivinhar qual o canto que ele tenta adivinhar, acha saber
também, que o adversário apenas finge um movimento qualquer para faze-lo
revelar seu pensamento. Por isso ele se joga no canto oposto do fingido pelo
jogador e .... defende a bola. O escritor austríaco Peter Handke publicou um
livro com o título "O medo do goleiro diante do pênalti". Livro muito
lido, e muito criticado pela visão que o título transmite. Na verdade, quem tem
medo do tiro é o atacante. O goleiro nada tem a perder. Se ele pegar a bola,
ele é herói, se ele deixar a bola passar, ele continua o mesmo bom goleiro de sempre. O jogador, muito tem a
perder, e pouco a ganhar. Se acertar fez o seu dever, mas se falhar, ô, é
severamente castigado. R. Baggio é um exemplo disso. A situação é desfavorável
para o atirador. Há aí uma das causas de falhas na execução de penalidades. O
medo de falhar desconcentra o jogador, o torna inseguro, indeciso. A analogia
exemplar de sistemas sociais com o jogo de futebol não seria completa, se não
incluísse também o mundo do torcedor. A sua opção pelo clube é cega,
irrevogável. O mundo é este, e não outro. "Sou Flamengo" é uma opção
para a vida. Da esposa é possível se divorciar. Não do clube. É traição. Um
traidor assim dificilmente encontrará simpatia mesmo em outras torcidas. Ele
não seria aplaudido em pé pelos vascaínos, ao se saber que ele abandonou o
"seu" Mengão. Esse enraizamento de valores não ocorre, no entanto num
processo longo e doloroso, até um torcedor se decidir de torcer por um só
clube. Quem entre no mundo do futebol já tem este médium simbólico quase pronto
para gravar nele. A gravação é um ato que ocorre em situação de múltipla
contingência. São muitas vezes acasos do cotidiano que levam a torcer por um
clube. Por exemplo: o acaso deste Clube ter sido campeão naquele ano em que
torcedor começou a atuar. Torcer por algo, a cada momento, o fazemos. E criamos
nosso mundo. O custo é a exclusão dos "outros". Os vascaínos e
fluminenses não percebem qual o melhor clube do mundo. Eles insistem no erro de
torcer por um mundo de ilusões, sobretudo na ilusão de poder ganhar do
Flamengo. Eles deviam saber, mas não querem. É por isso que são excluídos do
nosso mundo. Pelo menos enquanto torcedores. De resto, costumam ser os melhores
amigos, embora nunca 100%, porque afinal o outro não é aquilo que eu sou: sou
Mengo. É assim que torcida pensa e se sustenta enquanto um sistema
autopoiético.
Há alguns
momentos lúcidos, de observação de segunda ordem (reflexão), onde se abre uma
verdade maior: a do jogo de futebol enquanto jogo prazeroso de assistir, por
exemplo. Ou, coisa mais rara, quando você torce por dois clubes e os dois se
enfrentam. No primeiro caso acontece que você vai torcer por um bom jogo com
gols, e vai trocar sua torcida conforme o resultado atual. Se A ganha por 2:0,
você vai querer que B faça um gol para manter a partida aberta. (É partida
aberta que você quer, não é? Tá vendo, tal qual eu quando torço por ninguém, só
pelo jogo). Torcer pelo futebol, por um bom jogo requer a mudança de torcida
por um ou outro clube durante o jogo para manter o interesse em assistir a
partida. O segundo caso, torcer pelos dois clubes que estão no campo, é ainda
mais interessante, embora bem mais raro. Em princípio trata-se de uma aplicação
especial do primeiro caso. Sobretudo no Brasil, de extensão continental, alguns
torcedores têm tanto seu clube carioca como seu clube paulista, como clubes de
torcida secundária. A principal é de um clube provincial, por
exemplo Remo, de Belém. Por exemplo, uma pessoa torce por Vasco no Rio e por
Santos em SP. Quando os dois se enfrentam, o efeito é parecido com quem torce
por um jogo de bola, só que vem do outro lado: a torcedora quer continuar
torcendo por um clube, mas não consegue, é barrada na fronteira interna que ela
coloca ao torcer pelos dois.