sábado, 14 de abril de 2018

ÓDIO ÀS ELITES


Repensando os marcos da formação do Brasil

Marcelo Bolshaw Gomes[1]

RESENHA:
SOUZA, Jessé de. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 2000. 276 páginas.

A sociologia de Jessé de Souza está em evidência atualmente devido a seus últimos livros A tolice da inteligência brasileira (2015); A radiografia do golpe (2016); e A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato (2017) - que tratam do cenário político brasileiro contemporâneo e do ódio ao pobre pelas elites. Alguns textos resumindo esses trabalhos foram publicados pelo revista Carta Capital e também pelo Le Monde Diplomatique. Também há vários vídeos e entrevistas com o autor na internet, em que suas ideias principais são apresentadas[2].
No entanto, esses livros mais recentes são também mais políticos do que sociológicos, escritos para um público não acadêmico, de forma a ampliar sua audiência além do meio universitário.
Do ponto de vista acadêmico e científico, A modernização Seletiva (2000) é a principal obra do Souza, em que ele critica a sociologia da inautenticidade (Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Roberto DaMatta) e flerta com as ideias de Gilberto Freire sobre o escravismo colonial como instituição basilar da formação da cultura brasileira, vivo em nossos dias como desigualdade social.
Por que o capitalismo industrial no Brasil não deu certo? Por que a modernização das nossas instituições é incompleta ou superficial? O que exatamente permanece de problemático e arcaico na modernidade brasileira? Foi por causa da colonização portuguesa – responde o senso comum formado por uma longa lista de preconceitos, textos e autores. O colono português no Brasil foi mais promiscuo, sentimental, já era mestiço de várias etnias, católico por conveniência, preguiçoso, socialmente irresponsável e outras tantas características negativas responsáveis por nossa desgraça cultural: a inautenticidade.
A concepção da ‘herança ibérica maldita’ é apreendida de forma involuntária por nossa cultura, sendo a compreensão dominante dos brasileiros sobre si mesmos: “a ideia de um Brasil modernizado ‘para inglês ver’, uma modernização superficial, epidérmica e ‘de fachada’ (...)”. (SOUZA, 2000, p. 11).
E o projeto de Souza é descrever a singularidade do processo histórico de modernização brasileiro e romper com as noções comuns que os brasileiros têm de seu próprio país e de si mesmos. É sobretudo essa ideia naturalizada do senso comum (de que a influência portuguesa é responsável por uma modernização aparente ou parcial) que Souza desmitifica com a noção de modernização seletiva e heterogênea, descontruindo alguns mitos da sociologia brasileira de dimensão estrutural: o personalismo de Sérgio Buarque de Holanda; o patrimonialismo de Raymundo Faoro; e a dicotomia cultural entre pessoa privada e indivíduo público, proposta por Roberto da DaMatta.
O personalismo e o sentimentalismo lusitanos são enfatizados por Sérgio Buarque de Holanda no livro Raízes do Brasil (1995) como elementos formadores do ‘Homem Cordial’: “um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece viva e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano” (HOLANDA, 1995, p. 147).
Para Holanda, a cordialidade impede que o povo brasileiro entenda corretamente o significado da esfera pública, há uma fusão simbólica entre o Estado e a família. A cordialidade é uma valorização exacerbada da personalidade, dos favores pessoais e políticos, do nepotismo e do clientelismo.
Souza o critica com razão:
A ética personalista permeia toda a análise de Buarque e consolida o tema clássico do ‘para inglês ver’, ou seja, da autolegitimação de uma baixa estima nacional pelo disfarce, pelo embuste, pensado de modo a garantir uma transitória aprovação dos outros povos, portanto de fora para dentro, completa o quadro da modernização inautêntica e epidérmica como nosso traço mais característico. O personalismo e o iberismo permanecem como nossa herança mais profunda. (2000, p. 167).
No entanto, há um exagero em reduzir o conceito de populismo de Holanda a mera produção ideológica derivada do personalismo e do homem cordial. O populismo é um conceito importante para descrever e explicar a realidade política brasileira (e latino-americana) e não uma noção ideológica forjada pela elite acadêmica para justificar a desigualdade social decorrente da instituição escravista[3].
Outro autor criticado por Jessé Souza como integrante da sociologia da inautenticidade é Raymundo Faoro e seu livro Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (1979). Faoro ressalta o caráter patrimonialista do estado brasileiro, herdeiro da formação do Estado português no século XII e do uso do direito romano como modelo de pensamento, em que as elites latinas se apropriam do espaço público, ‘privatizando-o por dentro’.
[...] “a nossa formação social seria, portanto, defeituosa devido à permanente influência da herança estatal portuguesa, a qual impediu o país de livrar-se do atraso social e econômico” (SOUZA, 2000, p. 182-183).
O argumento central de Holanda e Faoro (que a nossa incapacidade para vida pública e para igualdade jurídica entre indivíduos é resultado de nosso legado cultural lusitano) é aprofundado por Roberto DaMatta, em Carnavais, Malandros e Heróis – por uma sociologia do dilema brasileiro (1997)[4]. DaMatta acredita que a chegada de D. João VI ao Brasil é o marco zero da sociedade brasileira, através da constituição de um estado burocrático (o vice-reino) e de um mercado (a abertura dos portos às nações amigas). Essa dupla fundação dá origem ao dualismo entre ‘casa’ e ‘rua’; contrapondo o ‘indivíduo’ (unidade elementar da esfera pública impessoal) à ‘pessoa’ privada, existente no âmbito da família, dos afetos, do cotidiano (2000, 184). Para DaMatta, o elemento pessoal do cotidiano é dominante em relação ao institucional-abstrato; o que faz com que a racionalidade institucional perca sempre para o caráter emocional e pessoal. Isso acaba ‘institucionalizar’ a teoria do jeitinho brasileiro, uma imagem do senso comum da ‘ideologia’ do brasileiro médio sobre si próprio” (SOUZA, 2000, 189-196). O jeitinho seria a sobreposição da pessoa ao indivíduo, da casa à rua, do privado ao público, da posição social de alguns sobre as regras comuns a todos. Essa ‘flexibilidade’ diante dos dispositivos disciplinares modernos seria então uma forma de sociabilidade própria dos brasileiros, uma característica cultural.
Tanto a versão privatista de DaMatta que enfatiza a liberdade do mercado; como a versão estatista de Faoro que ressalta a corrupção da esfera pública; quanto a versão culturalista de Holanda que prioriza a vida civil; apontam a herança ibérica como o grande fator negativo na modernização do Brasil.
A sociologia da inautenticidade está assim enraizada no senso comum e é polinizada através da própria cultura brasileira, de forma ideológica, para perpetuar sutilmente nossa submissão e inferioridade em relação à modernidade ocidental. Aos desmistificar os conceitos de ‘Homem Cordial’, ‘Patrimonialismo latino’ e ‘desigualdade pessoal’, Souza também vê o processo histórico de modernização das instituições brasileiras de modo seletivo e singular, sem atender aos modelos universais de desenvolvimento. Somos únicos e os únicos capazes de produzir ferramentas para compreensão sociológica da singularidade de nossa realidade.
Para Souza, o escravismo colonial é a principal instituição na formação social do Brasil. E, assim, a desigualdade social está na base de toda história institucional do país. A sociologia da inautenticidade coloca a corrupção herdada sociabilidade ibérica como caraterística central da brasilidade apenas para esconder a desigualdade social.
Em sua crítica à sociologia da inautenticidade, Souza se aproxima dos trabalhos de Gilberto Freire[5]. No Brasil colônia, a única instituição existente - antes do estado, antes do mercado, antes da sociedade civil (igreja, escola) era a família patriarcal. A senzala era a infraestrutura econômica e a casa grande, a superestrutura política e cultural. E a família reinava acima de tudo. Para Freyre, a arquitetura colonial expressa o modo de organização social e política do Brasil arcaico, o patriarcalismo, em que os coronéis das capitanias hereditárias são proprietários da terra ‘e de tudo que nela se encontrasse’. Em Casa-Grande & Senzala, Freyre coloca a miscigenação étnica como estratégia de colonização no centro do processo histórico da cultura brasileira. A diversidade cultural determina a desigualdade social, o pluralismo étnico se traveste de democracia racial.
Enquanto Gilberto Freyre coloca a miscigenação étnica como fator central da cultura brasileira; Darcy Ribeiro sugere a identidade antropofágica como produto histórico desta miscigenação[6]. Souza se aproxima desses autores por eles não priorizarem o papel da herança ibérica maldita e entenderem a miscigenação como um fator positivo da singularidade brasileira, mas deles se distancia em função de seu foco fechado sobre a questão escravista.
A contribuição crítica de Jessé Souza contra a sociologia da inautenticidade nos ajuda a entender o Brasil a partir de suas próprias particularidades, como resultado de um processo histórico singular e seletivo de modernização encoberto por nossa intelectualidade e naturalizadas por nós mesmos no senso comum. Por outro lado, não há ainda um diálogo com a antropologia e com a tradição multicultural dos estudos brasileiros.



(Hiper) Referências bibliográficas
AVRITZER, Leonardo. A singularidade brasileira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 16 no 45 fevereiro/2001.
CORDEIRO, Eros Belin de Moura. A modernização brasileira segundo visão de Jessé Souza. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2009, n. 1, Ago-Dez. p. 50-75.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis – Por uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. ed. Porto Alegre: Globo, 1979.
FLUSSER, Vilem. Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem. Rio de Janeiro: Eduerj, 1989.
_______. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Global Editora, 2004.
_______ Ordem e progresso. São Paulo: Global Editora, 2004
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. 19ª edição. Prefácio de Antônio Cândido. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
RIBEIRO, Darcy - O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SOUZA, Jessé. Max Weber e a ideologia do atraso brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 38, 1998.
______ Subcidadania e Naturalização da desigualdade. Política & Trabalho, João Pessoa, v. 22, p. 67-97, 2005.
______ A Construção Social da Subcidadania. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
______. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
______. Os batalhadores brasileiros: Nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: UFMG, 2010. (Coleção Humanitas)
______. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo, Leya, 2015.
______ A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: Leya, 2016.
______ A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

(Hiper) Referências audiovisuais
O Povo Brasileiro. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Gênero: Documentário. Coproduzida pela TV Cultura, pela GNT e pela FUNDAR. Ano de Lançamento: 1976. Duração: 280 min. País: Brasil.



[2] Como, por exemplo, o programa Voz Ativa de 05/2/2018, da Rede Minas:  <https://www.youtube.com/watch?v=h73_QFGOfB4&feature=youtu.be>
[3] Para Holanda, o populismo brasileiro se estruturou a partir das elites escravistas diante “do poder moderador do imperador de Don Pedro II”; e foi reinventado por Getúlio Vargas contra essas mesmas elites. O conceito (que já foi ampliado por diversos autores para abarcar outras manifestações semelhantes na América Latina) até hoje tem poder explicativo para descrever a realidade política brasileira. A ideia de “nostalgia do poder moderador” acima das elites escravistas do Brasil Império, desenvolvida por Holanda, também é essencial para explicar do papel histórico de Luís Inácio Lula da Silva e do paradigma institucional do ‘presidencialismo de coalizão’, estruturado pela Constituinte de 1988. Vejam aqui.
[4] Principalmente no ensaio Sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil (1997, 187-259).
[5] Casa-Grande & Senzala (1996), publicado em 1933, aborda as estruturas sociais da Brasil colônia e é o primeiro de uma trilogia de livros de Gilberto Freyre sobre a formação histórica da cultura brasileira, que inclui ainda Sobrados e Mocambos (2004ª) sobre o Império, publicado pela primeira vez em 1936; e Ordem e Progresso (2004b) sobre o período republicano, em 1957.
[6] Outra aproximação possível (com outros estranhamentos interessantes) é entre Jessé Souza e o pensamento de Darcy Ribeiro. Em O povo brasileiro (1996), Ribeiro afirma que identidade brasileira é singular em relação a de outros povos colonizados; tanto em relação aos povos testemunhais (andinos e mexicanos), que guardam os traços distintivos de antigas civilizações Inca e Asteca; como também em relação aos povos em que as características culturais dos colonizadores passaram a ser dominantes, como os argentinos e canadenses. Nos povos em que a identidade étnica nativa é forte (como na Bolívia, por exemplo), há uma rejeição popular da cultura colonizadora. Já nas culturas em que a identidade nativa é insignificante, como na Colômbia, todos se consideram descendentes dos colonizadores. No primeiro caso, há uma rejeição da cultura colonizadora; no segundo, há, não apenas uma aceitação, mas, sobretudo, uma identificação completa entre a população e a cultura colonizadora. Para Ribeiro, a cultura brasileira nem rejeita (fechando-se em uma cultura de resistência popular) nem se identifica (reproduzindo os valores externos) com o colonizador. A cultura brasileira devora antropofagicamente o colonizador. Assim, a identidade brasileira assimila a cultura colonizadora e a reinterpreta. A essa qualidade de assimilação e reinvenção cultural, Darcy Ribeiro dá o nome de ‘ningüéndade’ – a identidade da não-identidade, a cultura do zé ninguém, aquele que não se reconhece na imagem do outro, mas também ousa elaborar uma imagem própria. A cultura brasileira é um projeto aberto ao que está por vir e não uma referência simbólica do passado sobre à atualidade. ‘Um povo sem memória, mas com grande esperança’. Assim, miscigenação não nos torna iguais nem nos faz um mix de qualidade e defeitos étnicos. Ela é uma apenas identidade vazia. Por isso que somos "o país do futuro" e um eterno "gigante adormecido em berço esplêndido".

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