Repensando
os marcos da formação do Brasil
Marcelo Bolshaw Gomes[1]
RESENHA:
SOUZA, Jessé de. A modernização seletiva: uma
reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília, Editora da Universidade de
Brasília, 2000. 276 páginas.
A sociologia de Jessé de Souza está em evidência atualmente devido a seus últimos livros A tolice da inteligência brasileira (2015);
A radiografia do golpe (2016); e A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato
(2017) - que tratam do cenário político brasileiro contemporâneo e do ódio ao
pobre pelas elites. Alguns textos resumindo esses trabalhos foram publicados
pelo revista Carta Capital e também pelo Le Monde
Diplomatique.
Também há vários vídeos e entrevistas com o autor na internet, em que suas
ideias principais são apresentadas[2].
No entanto, esses livros mais
recentes são também mais políticos do que sociológicos, escritos para um
público não acadêmico, de forma a ampliar sua audiência além do meio
universitário.
Do ponto de vista acadêmico
e científico, A modernização Seletiva
(2000) é a principal obra do Souza, em que ele critica a sociologia da
inautenticidade (Sergio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Roberto DaMatta) e
flerta com as ideias de Gilberto Freire sobre o escravismo colonial como
instituição basilar da formação da cultura brasileira, vivo em nossos dias como
desigualdade social.
Por que o capitalismo
industrial no Brasil não deu certo? Por que a modernização das nossas instituições
é incompleta ou superficial? O que exatamente permanece de problemático e
arcaico na modernidade brasileira? Foi por causa da colonização portuguesa –
responde o senso comum formado por uma longa lista de preconceitos, textos e
autores. O colono português no Brasil foi mais promiscuo, sentimental, já era
mestiço de várias etnias, católico por conveniência, preguiçoso, socialmente
irresponsável e outras tantas características negativas responsáveis por nossa
desgraça cultural: a inautenticidade.
A concepção da ‘herança
ibérica maldita’ é apreendida de forma involuntária por nossa cultura, sendo a
compreensão dominante dos brasileiros sobre si mesmos: “a ideia de um Brasil
modernizado ‘para inglês ver’, uma modernização superficial, epidérmica e ‘de fachada’
(...)”. (SOUZA, 2000, p. 11).
E o projeto de Souza é
descrever a singularidade do processo histórico de modernização brasileiro e
romper com as noções comuns que os brasileiros têm de seu próprio país e de si
mesmos. É sobretudo essa ideia naturalizada do senso comum (de que a influência
portuguesa é responsável por uma modernização aparente ou parcial) que Souza
desmitifica com a noção de modernização seletiva e heterogênea, descontruindo
alguns mitos da sociologia brasileira de dimensão estrutural: o personalismo de
Sérgio Buarque de Holanda; o patrimonialismo de Raymundo Faoro; e a dicotomia cultural
entre pessoa privada e indivíduo público, proposta por Roberto da DaMatta.
O personalismo e o
sentimentalismo lusitanos são enfatizados por Sérgio Buarque de Holanda no
livro Raízes do Brasil (1995) como elementos formadores do ‘Homem Cordial’: “um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que
permanece viva e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano”
(HOLANDA, 1995, p. 147).
Para
Holanda, a cordialidade impede que o povo brasileiro entenda corretamente o
significado da esfera pública, há uma fusão simbólica entre o Estado e a
família. A cordialidade é uma valorização exacerbada da personalidade, dos
favores pessoais e políticos, do nepotismo e do clientelismo.
Souza o critica com razão:
A ética personalista permeia toda a análise de Buarque e consolida o tema
clássico do ‘para inglês ver’, ou seja, da autolegitimação de uma baixa estima
nacional pelo disfarce, pelo embuste, pensado de modo a garantir uma
transitória aprovação dos outros povos, portanto de fora para dentro,
completa o quadro da modernização inautêntica e epidérmica como nosso traço
mais característico. O personalismo e o iberismo permanecem como nossa herança
mais profunda. (2000, p. 167).
No entanto, há um exagero em
reduzir o conceito de populismo de Holanda a mera produção ideológica derivada
do personalismo e do homem cordial. O populismo é um conceito importante para
descrever e explicar a realidade política brasileira (e latino-americana) e não
uma noção ideológica forjada pela elite acadêmica para justificar a
desigualdade social decorrente da instituição escravista[3].
Outro autor criticado por
Jessé Souza como integrante da sociologia da inautenticidade é Raymundo Faoro e
seu livro Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (1979). Faoro ressalta o caráter
patrimonialista do estado brasileiro, herdeiro da formação do Estado português no
século XII e do uso do direito romano como modelo de pensamento, em que as elites
latinas se apropriam do espaço público, ‘privatizando-o por dentro’.
[...] “a nossa formação social seria, portanto, defeituosa devido à
permanente influência da herança estatal portuguesa, a qual impediu o país de
livrar-se do atraso social e econômico” (SOUZA, 2000, p. 182-183).
O
argumento central de Holanda e Faoro (que a nossa incapacidade para vida
pública e para igualdade jurídica entre indivíduos é resultado de nosso legado
cultural lusitano) é aprofundado por Roberto DaMatta, em Carnavais, Malandros e Heróis – por uma sociologia do dilema brasileiro (1997)[4].
DaMatta acredita que a chegada de D.
João VI ao Brasil é o marco zero da sociedade brasileira, através da
constituição de um estado burocrático (o vice-reino) e de um mercado (a
abertura dos portos às nações amigas). Essa dupla fundação dá origem ao
dualismo entre ‘casa’ e ‘rua’; contrapondo o ‘indivíduo’ (unidade elementar da
esfera pública impessoal) à ‘pessoa’ privada, existente no âmbito da família,
dos afetos, do cotidiano (2000, 184). Para DaMatta, o elemento pessoal do
cotidiano é dominante em relação ao institucional-abstrato; o que faz com que a
racionalidade institucional perca sempre para o caráter emocional e pessoal. Isso
acaba ‘institucionalizar’ a teoria do jeitinho brasileiro, uma imagem do senso
comum da ‘ideologia’ do brasileiro médio sobre si próprio” (SOUZA, 2000, 189-196).
O jeitinho seria a sobreposição da pessoa ao indivíduo, da casa à rua, do
privado ao público, da posição social de alguns sobre as regras comuns a todos.
Essa ‘flexibilidade’ diante dos dispositivos disciplinares modernos seria então
uma forma de sociabilidade própria dos brasileiros, uma característica
cultural.
Tanto a versão privatista
de DaMatta que enfatiza a liberdade do mercado; como a versão estatista de
Faoro que ressalta a corrupção da esfera pública; quanto a versão culturalista
de Holanda que prioriza a vida civil; apontam a herança ibérica como o grande
fator negativo na modernização do Brasil.
A sociologia da
inautenticidade está assim enraizada no senso comum e é polinizada através da própria
cultura brasileira, de forma ideológica, para perpetuar sutilmente nossa
submissão e inferioridade em relação à modernidade ocidental. Aos desmistificar
os conceitos de ‘Homem Cordial’, ‘Patrimonialismo latino’ e ‘desigualdade
pessoal’, Souza também vê o processo histórico de modernização das instituições
brasileiras de modo seletivo e singular, sem atender aos modelos universais de
desenvolvimento. Somos únicos e os únicos capazes de produzir ferramentas para
compreensão sociológica da singularidade de nossa realidade.
Para Souza, o escravismo
colonial é a principal instituição na formação social do Brasil. E, assim, a
desigualdade social está na base de toda história institucional do país. A
sociologia da inautenticidade coloca a corrupção herdada sociabilidade ibérica
como caraterística central da brasilidade apenas para esconder a desigualdade
social.
Em sua crítica à sociologia da inautenticidade, Souza se aproxima dos
trabalhos de Gilberto Freire[5].
No Brasil colônia, a única instituição existente - antes do estado, antes do
mercado, antes da sociedade civil (igreja, escola) era a família patriarcal. A
senzala era a infraestrutura econômica e a casa grande, a superestrutura
política e cultural. E a família reinava acima de tudo. Para Freyre, a
arquitetura colonial expressa o modo de organização social e política do Brasil
arcaico, o patriarcalismo, em que os coronéis das capitanias hereditárias são
proprietários da terra ‘e de tudo que nela se encontrasse’. Em Casa-Grande & Senzala, Freyre coloca
a miscigenação étnica como estratégia de colonização no centro do processo histórico
da cultura brasileira. A diversidade cultural determina a desigualdade social,
o pluralismo étnico se traveste de democracia racial.
Enquanto
Gilberto Freyre coloca a miscigenação étnica como fator central da cultura
brasileira; Darcy Ribeiro sugere a identidade antropofágica como produto
histórico desta miscigenação[6].
Souza se aproxima desses autores por eles não priorizarem o papel da herança
ibérica maldita e entenderem a miscigenação como um fator positivo da
singularidade brasileira, mas deles se distancia em função de seu foco fechado
sobre a questão escravista.
A
contribuição crítica de Jessé Souza contra a sociologia da inautenticidade nos
ajuda a entender o Brasil a partir de suas próprias particularidades, como
resultado de um processo histórico singular e seletivo de modernização
encoberto por nossa intelectualidade e naturalizadas por nós mesmos no senso
comum. Por outro lado, não há ainda um diálogo com a antropologia e com a
tradição multicultural dos estudos brasileiros.
(Hiper)
Referências bibliográficas
AVRITZER, Leonardo. A
singularidade brasileira. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 16 no 45 fevereiro/2001.
CORDEIRO, Eros Belin de Moura. A
modernização brasileira segundo visão de Jessé Souza. Constituição,
Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito
Constitucional. Curitiba,
2009, n. 1, Ago-Dez. p. 50-75.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis – Por uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de
Janeiro: Editora Rocco, 1997.
FAORO, Raymundo.
Os donos do poder: formação do
patronato político brasileiro.
5. ed. Porto Alegre: Globo, 1979.
FLUSSER, Vilem. Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem. Rio de Janeiro: Eduerj, 1989.
FREYRE,
Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira
sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1996.
_______. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Global Editora, 2004.
_______ Ordem e progresso. São Paulo: Global Editora, 2004
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Coleção Documentos Brasileiros. 19ª edição.
Prefácio de Antônio Cândido. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.
RIBEIRO,
Darcy - O povo
brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SOUZA, Jessé. Max Weber e
a ideologia do atraso brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
v. 38, 1998.
______ A Modernização Seletiva: Uma
Reinterpretação do Dilema Brasileiro. Brasília: UNB, 2000.
______ Subcidadania e
Naturalização da desigualdade. Política & Trabalho, João Pessoa, v.
22, p. 67-97, 2005.
______ A Construção
Social da Subcidadania. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
______. A ralé
brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009.
______. Os
batalhadores brasileiros: Nova classe média ou nova classe trabalhadora?
Belo Horizonte: UFMG, 2010. (Coleção Humanitas)
______. A tolice da
inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Paulo, Leya, 2015.
______ A radiografia
do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: Leya,
2016.
______ A elite do
atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
(Hiper) Referências audiovisuais
O Povo Brasileiro. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Gênero:
Documentário. Coproduzida pela TV Cultura, pela GNT e pela FUNDAR. Ano de
Lançamento: 1976. Duração: 280 min. País: Brasil.
[1] Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da
Mídia (UFRN).
[2] Como, por exemplo, o programa Voz Ativa de 05/2/2018, da Rede
Minas: <https://www.youtube.com/watch?v=h73_QFGOfB4&feature=youtu.be>
[3] Para Holanda, o populismo brasileiro se estruturou a partir das elites
escravistas diante “do poder moderador do imperador de Don Pedro II”; e foi
reinventado por Getúlio Vargas contra essas mesmas elites. O conceito (que já
foi ampliado por diversos autores para abarcar outras manifestações semelhantes
na América Latina) até hoje tem poder explicativo para descrever a realidade
política brasileira. A ideia de “nostalgia do poder moderador” acima das elites
escravistas do Brasil Império, desenvolvida por Holanda, também é essencial
para explicar do papel histórico de Luís Inácio Lula da Silva e do paradigma institucional
do ‘presidencialismo de coalizão’, estruturado pela Constituinte de 1988. Vejam
aqui.
[4] Principalmente no ensaio Sabe com
quem está falando? Um ensaio sobre a
distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil (1997, 187-259).
[5]
Casa-Grande
& Senzala (1996),
publicado em 1933, aborda as estruturas sociais da Brasil colônia e é o
primeiro de uma trilogia de livros de Gilberto Freyre sobre a formação
histórica da cultura brasileira, que inclui ainda Sobrados
e Mocambos (2004ª) sobre o Império, publicado pela primeira vez em 1936; e Ordem
e Progresso (2004b) sobre o período republicano, em 1957.
[6] Outra aproximação possível (com outros estranhamentos interessantes) é
entre Jessé Souza e o pensamento de Darcy Ribeiro. Em O
povo brasileiro (1996),
Ribeiro afirma que identidade brasileira é singular em relação a de outros
povos colonizados; tanto em relação aos povos testemunhais (andinos e
mexicanos), que guardam os traços distintivos de antigas civilizações Inca e
Asteca; como também em relação aos povos em que as características culturais
dos colonizadores passaram a ser dominantes, como os argentinos e canadenses. Nos
povos em que a identidade étnica nativa é forte (como na Bolívia, por exemplo),
há uma rejeição popular da cultura colonizadora. Já nas culturas em que a
identidade nativa é insignificante, como na Colômbia, todos se consideram
descendentes dos colonizadores. No primeiro caso, há uma rejeição da cultura
colonizadora; no segundo, há, não apenas uma aceitação, mas, sobretudo, uma
identificação completa entre a população e a cultura colonizadora. Para
Ribeiro, a cultura brasileira nem rejeita (fechando-se em uma cultura de
resistência popular) nem se identifica (reproduzindo os valores externos) com o
colonizador. A cultura brasileira devora antropofagicamente o colonizador.
Assim, a identidade brasileira assimila a cultura colonizadora e a
reinterpreta. A essa qualidade de assimilação e reinvenção cultural, Darcy
Ribeiro dá o nome de ‘ningüéndade’ – a
identidade da não-identidade, a cultura do zé ninguém, aquele que não se
reconhece na imagem do outro, mas também ousa elaborar uma imagem própria. A cultura
brasileira é um projeto aberto ao que está por vir e não uma referência
simbólica do passado sobre à atualidade. ‘Um povo sem memória, mas com grande
esperança’. Assim, miscigenação não nos torna iguais nem nos faz um mix de
qualidade e defeitos étnicos. Ela é uma apenas identidade vazia. Por isso que
somos "o país do futuro" e um eterno "gigante adormecido em
berço esplêndido".
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