sábado, 18 de fevereiro de 2017

O surfista pratetado


NA ONDA DO SURFISTA PRATEADO

Marcelo Bolshaw Gomes[1]

Resumo: O presente texto estuda o personagem Surfista Prateado (Silver Surfer), super-herói das histórias em quadrinhos norte-americanas da Marvel Comics. Utiliza-se a análise narrativa para entender o entrelaçamento singular de alguns de seus conceitos fundamentais: funções dramáticas que desempenha, os arquétipos aos quais é associado, seu desejo e motivação, seus conflitos éticos, a dimensão ampliada do universo como seu círculo de existência e o significado de sua conversão. Conclui-se que o Surfista Prateado não é apenas um símbolo de transcendência espiritual, como enfatiza Andraus (2008), mas também está associado ao arquétipo do eterno estrangeiro, ao destino trágico de vagar permanentemente através de universos passageiros.
Palavras-chave: Comunicação midiática1; Estudos narrativos2; Histórias em Quadrinhos3;
Abstract: This paper investigates the Silver Surfer character, superhero stories in American comics of Marvel Comics. It uses narrative analysis to understand the unique intertwining of some of its fundamental concepts: dramatic functions it performs, the archetypes to which it is associated, your desire and motivation, their ethical conflicts, the added dimension of the universe as your circle of existence and the meaning of his conversion. It is concluded that the Silver Surfer is not only a symbol of spiritual transcendence, as emphasized Andraus (2008), but is also associated with the archetype of the eternal foreigner, the tragic fate of wandering permanently through universes passengers.
Keywords: Media Communication1; Narrative Studies 2; Comics3;



1.      Introdução
O Surfista Prateado é uma criação de Stan Lee e Jack Kirby. Surgiu pela primeira vez no arco de histórias em quadrinhos do Quarteto Fantástico conhecido como ‘A Trilogia de Galactus’ (Fantastic Four #48 de 1966). Em pouco tempo, o personagem tornou-se um dos heróis mais importantes do Universo Marvel, sendo repaginado do ponto de vista editorial em diferentes momentos por vários artistas.
A Marvel lançou a revista do herói em 1968, com arte de John Buscema (desenhista do bárbaro Conan). Em 1971, o Surfista Prateado participa do grupo de super-heróis - ao lado de Namor, Hulk e Doutor Estranho. Há também participação do surfista em outras histórias, como com o Homem-Aranha. Em 1989, surge a minissérie Parábola, texto de Stan Lee e arte de Jean Girard (Moebius). Em 1998, o surfista ganha uma série de 13 episódios de desenhos animados de curta duração. Outro momento marcante na história editorial do herói prateado é a minissérie Réquiem (2007) escrita por J. Michael Straczynski (criador de He-man e Babylon 5, entre outros) e desenhada por Esad Ribic, em que o Surfista se desintegra e desaparece para sempre. Também em 2007, o Surfista Prateado protagoniza o filme "Fantastic Four: Rise of the Silver Surfer" - baseado na Trilogia de Galactus. Está presente em vários videogames da Marvel como personagem jogável para todos os consoles. 
A estória do surfista prateado nos remete a uma entidade cósmica chamada Galactus, o devorador de mundos, um ser semelhante a um buraco negro que se alimenta impessoalmente da energia de universo. Norrin Radd, um nobre do planeta Zenn-La, se oferece para servi-lo como arauto, para que Galactus poupe seu planeta. A barganha funciona e Galactus poupa Zenn-La; porém, apaga a memória de Norrin Radd, transformando-o no Surfista Prateado, um ser com poderes extraordinários, condenado a buscar planetas para satisfazer a sua fome.
Assim foi sua vida até chegar à Terra, planeta em que ele conhece o Quarteto Fantástico, recupera a memória e, comovido pela nobreza dos humanos, impede que seu chefe se alimente. Como punição por sua traição, o devorador de mundos, nas primeiras versões, o aprisiona na terra. Nas versões mais recentes, Galactus amaldiçoa o surfista como um viajante perpétuo dos universos. Desde então, ele vaga sem destino pelo espaço sem esperança de um lar, de uma família ou de encontrar quem o aceite.
2.      Definições
O primeiro passo da análise narrativa de um determinado personagem é compreender sua função dramática na estória. Não apenas se ele é protagonista, antagonista ou coadjuvante; mas também o gênero da narrativa, se é heroica, romântica, religiosa, ou de outro tipo. Nem todo protagonismo é heroico.
Um herói é um protagonista que “faz coisas erradas pelos motivos certos”. É uma definição de comportamento muito boa - abrange outras definições como a do mito do herói-transgressor de Levi Strauss[2] ou a do mito do herói espiritual de Campbell[3] - e implica também em personagens-coadjuvantes que “façam a coisa certa (aparentemente) pelos motivos certos” (a autoridade moral, os outros personagens da narrativa, a sociedade do herói); também em personagens-antagonistas (os vilões) que “façam as coisas erradas pelos motivos errados”.
Outra característica marcante em boa parte das histórias heroicas são narrativas de conversão, em que vilões que passam a tentar ‘fazer o bem’. Geralmente esse comportamento caracteriza ‘os falsos heróis’, aqueles que “fazem o certo pelos motivos errados” – ou seja: o contrário simétrico ao verdadeiro herói que faz coisas erradas pelos motivos certos. Nas estórias atuais há viradas e transformações, todos heróis são falsos, ou melhor: todos somos personagens contraditórios e complexos. O ‘motivo certo’ é algo ainda que procuramos entender.
E o Surfista Prateado representa essa contradição. Ele foi aliado de um vilão destruidor e encontra vários personagens que o acusam pela sua colaboração no passado. Ele busca sempre fazer o que é certo, inclusive ajudando seus inimigos (o próprio Galactus), quando isso lhe parece justo. Ele não é movido pela vingança, buscando sempre soluções pacíficas para os conflitos. Em nenhum momento, o surfista pensa em vencer seus adversários, mas sim e torna-los aliados em função de seu único objetivo: voltar ao planeta Zenn-La e aos braços de sua amada Shalla-Bal.
3.      Panteão cósmico
As narrativas contemporâneas da mídia são uma nova forma de mitologia, voltada para o futuro (e não apenas para o passado – como a mitologia clássica). Estudar essas narrativas midiáticas é investigar a organização dos símbolos no imaginário coletivo atual. Há universos narrativos mais centrados na dicotomia entre o bem e o mal, como as estórias dos contos de fada, muitas vezes afirmando crenças do simbolismo dominante – tanto em relação à política como à religião.
As narrativas de super-heróis e de ficção científica, por outro lado, são socialmente críticas, laicas e até antirreligiosas: os deuses são alienígenas e a magia foi substituída pela tecnologia.
O personagem Galactus, por exemplo, que personifica a destruição e escraviza o surfista como um batedor avançado dos mundos que deseja devorar, não é eticamente ‘mau’. Ele age assim porque é sua natureza ser o devorador de mundos. Ele foi o único sobrevivente da última contração do universo que luta para sobreviver até o fim da expansão cósmica iniciada pelo Big-Bang.
Aliás, Galactus é das entidades cósmicas dentro do universo Marvel que se comportam como deuses. Há também Uatu ou O Observador. Ele faz parte da raça alienígena dos Vigilantes. Eles se dedicam a observar os acontecimentos do Universo e são terminantemente proibidos de interferir no curso da história. Uatu é o vigia responsável pela Terra e já interferiu mais de uma vez para salvá-la, o que o levou a ser julgado (revista Captain Marvel #39) e marginalizado por outros vigias.
Existem ainda Thanus (vilão recorrente no universo Marvel); Adam Warlock (que vive preso em uma anomalia em que o tempo se repete sempre); os irmãos gêmeos Infinito e Eternidade (dualidade masculino-feminina formada através das projeções da consciência de todos os seres vivos); entre outros personagens.
Assim, o surfista interage com outros super-heróis Marvel, com humanos e com seres de outros planetas em seu círculo de existência transitória, mas sua origem está nessa dimensão ampliada do universo, em uma coexistência cósmica com seres com vidas de longa duração – principalmente nas narrativas da série de desenhos animados.
4.      Características
Em outro lugar, argumentou-se que o super-herói tem duas características: a dupla identidade (o personagem-leitor) e ser uma repaginação ideológica de um mito, através de um determinado ‘contrato de leitura’, de um determinado contexto sócio histórico de imaginação do personagem. No passado, o Super-Homem e o Capitão América eram heróis hegemônicos (se vestiam com a bandeira dos EUA), enquanto o Batman e o Homem de Ferro eram milionários rebeldes, sem superpoderes mas com acesso à tecnologia avançada. As narrativas mais recentes (no cinema, principalmente), alteram bastante esse esquema ideológico do pacto de leitura da guerra fria.
O Surfista Prateado não tem identidade secreta. Ele perdeu sua ‘humanidade’ (deixou de ser Norrin Radd) e deseja voltar a tê-la. E, do ponto de vista ideológico, o surfista tenta ser neutro em relação aos conflitos, mas acaba se envolvendo.
No planeta do Dr. Moreau, ele toma o partido de uma raça escravizada por outra, é escravizado também, consegue libertar-se e tenta, sem sucesso, libertar o planeta oprimido. Em outras situações, as tentativas de ajuda do surfista acabam gerando problemas maiores ou são mal interpretadas. Ele acaba sempre se sacrificando por pessoas que não o reconhecem.
Pode-se associar o símbolo do surfista ao arquétipo do louco, o número zero do Tarô, que representa o eterno passageiro, o ‘moto-perpétuo’, a consciência do universo sempre impermanente. O surfista está sempre em trânsito, sempre procurando voltar para o lugar do qual saiu. E o único ‘Destino’ possível é a tentativa sem esperança de retorno a sua ‘Origem’. Ele é privado de seu passado e de seu futuro, é um prisioneiro do eterno presente.
Além dessa ‘espiritualidade laica’ embutida no panteão cósmico do universo; e de sua ‘neutralidade política’ impossível em relação às injustiças sociais dos planetas que visita, o Surfista Prateado como personagem tem ainda características pessoais e estilísticas bem específicas.
Em nossa sociedade, os surfistas têm um comportamento singular em relação a outros desportistas. Em contato direto com a natureza, literalmente à margem da sociedade (ou à beira-mar), eles desenvolvem um individualismo não competitivo, semelhante ao comportamento felino - uma série de características subjetivas dos praticantes desse esporte que são incorporadas às suas personalidades: a honra, a paciência, o gosto pelo equilíbrio, o respeito à natureza, o prazer lúdico da criatividade, a solidão do viajante ...
Acrescente-se a essas qualidade comuns aos surfistas, o temperamento frio e introspectivo (pouco afeito a piadas ou a exageros afetivos), os pensamentos sempre filosóficos e líricos, a atitude pacífica e nobre. E, principalmente, o visual todo branco prata da energia cósmica das estrelas. A prata, segundo Andraus, se referindo especificamente ao Surfista Prateado, é “símbolo de pureza e de purificação da alma” (ANDRAUS, 2008, p.4).
Ele não come nem se alimenta. É incapaz de mentir. Não tem necessidades nem desejos. Sua prancha é feita da mesma energia cósmica de seu corpo e se comunica telepaticamente com o surfista.
5.      Conclusão
Gazy Andraus estuda o Surfista Prateado como símbolo do self, como um herói crístico – ao lado de Thor e do Superman. Os três foram banidos de seus lugares de origem para viver na terra uma existência heroica.
No caso do surfista em particular, Andraus enfatiza ainda sua relação simbólica com o Quarteto Fantástico, em que o herói funciona como um quinto elemento (o Coisa seria a terra; Sr. Fantástico (o homem-elástico) representaria a água; Moça-Invisível, o ar; e Tocha-Humana, o fogo).
A tese principal de Andraus - de que o Surfista Prateado é um protagonista cuja narrativa descreve um processo do tipo espiritual, passível de ser pensado pela Jornada do Herói de Campbell – certamente é verdadeira. Porém, é preciso admitir que o personagem não se encaixa bem no conceito transgressor e violento de herói de Lévi-Strauss. O surfista não tem o desejo de vingança ou de reparação das injustiças que sofreu. E é justamente isso que o torna um herói tão ‘cool’.
O Surfista Prateado não é apenas um símbolo de transcendência espiritual, mas também está associado ao arquétipo do eterno estrangeiro, ao destino trágico de vagar permanentemente através de universos passageiros. Como função narrativa, seu personagem é um protagonista que tenta compreender e modificar sua relação com o antagonista, tornando-o um aliado. Seu único desejo e motivação é o retorno ao seu planeta natal – escondido por Galactus após sua libertação/traição.
Geralmente, a história do surfista se divide entre antes, durante e depois de ficar preso na Terra. Antes de encontrar o Quarteto Fantástico o surfista era apenas um sub vilão. Na terra, se converteu em um super-herói. E depois tornou-se um viajante das estrelas, dando um conteúdo poético a seu destino trágico.
A Marvel anunciou que os próximos filmes dos Vingadores, previstos para 2017, serão baseados nas histórias em quadrinhos ‘Guerra Infinita’ e ‘Aniquilação’ – em que o Surfista e Galactus têm uma participação crucial. Nessas narrativas, praticamente todos os heróis da Marvel se juntam contra Thanus; e vários personagens do universo Marvel são repaginados ou desaparecem. Será que o surfista voltará a servir a Galactus como arauto? Conseguirá finalmente voltar ao seu planeta natal? Ou sucumbirá junto a seu mestre – como prevê a saga Réquiem?
6.      Referências bibliográficas
ANDRAUS, Gazy. A questão espiritual nas histórias em quadrinhos de Thor, Surfista Prateado e Super-Homem. XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Natal, RN – 2 a 6 de setembro de 2008.
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo, Editora Cultrix/Pensamento, 1995.
______ O Poder do Mito. Editora Palas Athena, São Paulo, 1990.
LEVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido: Mitológicas I. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
_____Do mel às cinzas: Mitológicas II. São Paulo: Cosac Naify, 2005. 
_____A origem dos modos à mesa: Mitológicas III. São Paulo: Cosac Naify, 2006.   
_____O Homem nú: Mitológica IV. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
7.      Referências audiovisuais
Silver Surfer – Minissérie de desenho animado de 13 episódios. Ano produção: 1998. Dirigido por Roy Allen Smith e Tony Pastor Jr. Outubro de 1998. Gênero: Ação, Animação, Ficção. Países de Origem: Estados Unidos da América. Roteiro: Jack Kirby e Larry Brody. Elenco: Gamora: Alyson Court; Amber: Aron Tager; The Master of Zenn-La (voice): Bernard Behrens; Nietr: Camilla Scott; Shalla-Bal: Cedric Smith; Mentor: Chris Britton; Zarek: Colin Fox; Uatu: David Calderisi; Kiar: David Hemblen; Supreme Intelligence, Husseri: Dennis Akayama; Watcher Prime: Don Francks; Kalek: Elizabeth Hanna; Kili the Troll:  Elizabeth Sheperd; Infinity: Gary Krawford; Thanos: Howard Jerome; Galactus:  Jennifer Dale; Eternity:  John Stocker; Ivar:  Karl Pruner; Lady Chaos: Lawrence Bayne; Zedaro: Len Doncheff; Raze: Lorne Kennedy; Planetary Essence: Marc Strange; Lord Glenn: Michael Copeman; MacLag: Nicole Oliver; Gamma Jen Beth: Norm Spencer; Drax the Destroyer: Oliver Becker; Adam Warlock: Paul Essiembre; Silver Surfer/Norrin Radd: Rick Bennent; Votrick: Robert Bockstael; Pip the Troll: Roy Lewis; Ego the Living Planet: Shirley Douglas; The Universal Sourge: Tara Rosling; Frankie Raye/Nova: Valerie Buhagiar;  e Shellaine: Alison Sealy-Smith.
Fantastic Four: Rise of the Silver Surfer (Quarteto Fantástico e o Surfista Prateado). Estados Unidos. 2007 • cor • 91 min. Direção: Tim Story. Produção: Avi Arad, Bernd Eichinger, Ralph Winter. Roteiro: Don Payne, Mark Frost. Elenco: Ioan Gruffudd, Jessica Alba, Chris Evans, Michael Chiklis. Género: Aventura, Ação. Música: John Ottman. Cinematografia: Larry Blanford. Edição: William Hoy, Peter S. Elliot. Produção: Marvel Studios; Constantin Film; Ingenious Film Partners. Distribuição: 20th Century Fox. Lançamento: junho de 2007. Idioma: Inglês.
8.      Referências gráfico-visuais
Surfista Prateado: Parábola. Roteiro: Stan Lee. Arte: Jean Giraud - ‘Moebius’. Cores: Mark Chiarello, John Wellington. Letrista: Júlio Nogueira. Tradutor: Eduardo Tanaka, Bernardo Santana. Editor original: Joe Quesada, Margaret Clark. Publicada originalmente em Silver Surfer, The (1988) n° 1/1988 - Marvel Comics (Epic Comics), n° 2/1989 - Marvel Comics (Epic Comics).  Editora: Panini. Publicado em: março de 2014.
Surfista Prateado: Réquiem. Roteiro: J. Michael Straczynski. Arte: Esad Ribic. Letrista: Júlio Nogueira. Tradutor: Fernando Lopes, Jotapê Martins. Editor original: Joe Quesada, Axel Alonso. Publicada originalmente em Silver Surfer: Requiem (2007) n° 1/2007 - Marvel Comics. Editora: Panini. Publicado em: novembro de 20



[1] Doutor em ciências sociais, professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN.
[2] Após, investigar durante 20 anos diferentes culturas ameríndias, realizando uma ampla a análise estrutural de 813 mitos nativos das duas Américas com algumas variantes; Lévi-Strauss publicou o maior e mais completo estudo sobre o mito do herói (2004; 2005; 2006; 2011). O mito de referência é o ‘desaninhador de pássaros’, que serve como fio condutor de todas as análises que se seguem. A narrativa foi colhida pelo próprio Lévi-Strauss quando esteve no Brasil, estudando os índios Bororo do Mato Grosso e conta a história de um incesto cometido por um índio com sua mãe. Ao descobrir a transgressão, o pai expulsa o filho. O herói vai para dimensões desconhecidas e rouba o fogo de seres mágicos. Em algumas dessas lendas, o fogo é dado em troca de uma aliança e de um casamento do herói nativo com a filha de seres encantados. Então, dono de grande poder, volta à sua terra e mata o pai, a mãe e todos que o humilharam no passado. O mito assim tanto prescreve o tabu como sua transgressão heroica e destrutiva. Esses transgressores dos limites entre natureza e cultura estão destinados a se tornarem senhores do fogo e da guerra. A estrutura do mito do desaninhador de pássaros compreende e explica, com suas variações, todas as narrativas em quatro etapas: a transgressão do tabu, o castigo, a conquista do fogo e a vingança da exclusão através da destruição generalizada. O fogo, nessa perspectiva, representa a tecnologia que transforma a Natureza (o cru) em Cultura (o cozido). Enquanto alguns suspeitam que o fogo, a aliança e o casamento representam a entrada do homem branco na vida indígena ou a sua previsão mítica; outros consideram que os ‘homens do céu’ são seres alienígenas. O fato que a descoberta do fogo desencadeou um desequilíbrio no universo humano. Os homens praticamente não caçavam nem comiam carne antes do advento do fogo controlado e até hoje não têm a anatomia e fisiologia adequadas para serem carnívoros. O advento do fogo nos transformou, não apenas em animais carnívoros, mas, sobretudo, em uma nova espécie predadora desequilibrando a cadeia alimentar e o meio ambiente.
[3] Joseph Campbell (1990, 1995), comparando diferentes narrativas mitológicas, elaborou um modelo chamado de Jornada do Herói, em que o herói abandona a vida ordinária, mergulha no desconhecido e retorna à dimensão cotidiana, composto 17 momentos. A ideia de universalidade psicológica das narrativas resulta no conceito de ‘Monomito’, ou seja, de que todas as histórias são na verdade a repetição de uma única estrutura narrativa.

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