NA ONDA DO
SURFISTA PRATEADO
Marcelo Bolshaw Gomes[1]
Resumo: O presente texto estuda o personagem Surfista
Prateado (Silver Surfer),
super-herói das histórias em quadrinhos norte-americanas da Marvel Comics. Utiliza-se a análise
narrativa para entender o entrelaçamento singular de alguns de seus conceitos
fundamentais: funções dramáticas que desempenha, os arquétipos aos quais é
associado, seu desejo e motivação, seus conflitos éticos, a dimensão ampliada
do universo como seu círculo de existência e o significado de sua conversão.
Conclui-se que o Surfista Prateado não é apenas um símbolo de transcendência
espiritual, como enfatiza Andraus (2008), mas também está associado ao
arquétipo do eterno estrangeiro, ao destino trágico de vagar permanentemente
através de universos passageiros.
Palavras-chave: Comunicação midiática1; Estudos narrativos2; Histórias em Quadrinhos3;
Abstract: This paper investigates the Silver Surfer character,
superhero stories in American comics of Marvel Comics. It uses narrative
analysis to understand the unique intertwining of some of its fundamental
concepts: dramatic functions it performs, the archetypes to which it is
associated, your desire and motivation, their ethical conflicts, the added
dimension of the universe as your circle of existence and the meaning of his
conversion. It is concluded that the Silver Surfer is not only a symbol of
spiritual transcendence, as emphasized Andraus (2008), but is also associated
with the archetype of the eternal foreigner, the tragic fate of wandering
permanently through universes passengers.
Keywords: Media Communication1; Narrative
Studies 2; Comics3;
1.
Introdução
O Surfista Prateado é uma criação de Stan
Lee e Jack Kirby. Surgiu pela primeira vez no arco de histórias em quadrinhos
do Quarteto Fantástico conhecido como ‘A Trilogia de Galactus’ (Fantastic Four #48 de 1966). Em pouco
tempo, o personagem tornou-se um dos heróis mais importantes do Universo Marvel,
sendo repaginado do ponto de vista editorial em diferentes momentos por vários
artistas.
A Marvel lançou a revista do herói em
1968, com arte de John Buscema (desenhista do bárbaro Conan). Em 1971, o
Surfista Prateado participa do grupo de super-heróis - ao lado de Namor, Hulk e
Doutor Estranho. Há também participação do surfista em outras histórias, como
com o Homem-Aranha. Em 1989, surge a minissérie Parábola, texto de Stan Lee e arte de Jean Girard (Moebius). Em
1998, o surfista ganha uma série de 13 episódios de desenhos animados de curta
duração. Outro momento marcante na história editorial do herói prateado é a
minissérie Réquiem (2007) escrita por
J. Michael Straczynski (criador de He-man
e Babylon 5, entre outros) e
desenhada por Esad Ribic, em que o Surfista se desintegra e desaparece para
sempre. Também em 2007, o Surfista Prateado protagoniza o filme "Fantastic Four: Rise of the Silver Surfer"
- baseado na Trilogia de Galactus.
Está presente em vários videogames da Marvel como personagem jogável para todos
os consoles.
A estória do surfista prateado nos
remete a uma entidade cósmica chamada Galactus, o devorador de mundos, um ser
semelhante a um buraco negro que se alimenta impessoalmente da energia de
universo. Norrin Radd, um nobre do planeta Zenn-La, se oferece para servi-lo
como arauto, para que Galactus poupe seu planeta. A barganha funciona e Galactus
poupa Zenn-La; porém, apaga a memória de Norrin Radd, transformando-o no
Surfista Prateado, um ser com poderes extraordinários, condenado a buscar
planetas para satisfazer a sua fome.
Assim foi sua vida até chegar à
Terra, planeta em que ele conhece o Quarteto Fantástico, recupera a memória e,
comovido pela nobreza dos humanos, impede que seu chefe se alimente. Como
punição por sua traição, o devorador de mundos, nas primeiras versões, o
aprisiona na terra. Nas versões mais recentes, Galactus amaldiçoa o surfista
como um viajante perpétuo dos universos. Desde então, ele vaga sem destino pelo
espaço sem esperança de um lar, de uma família ou de encontrar quem o aceite.
2.
Definições
O primeiro passo da análise narrativa
de um determinado personagem é compreender sua função dramática na estória. Não
apenas se ele é protagonista, antagonista ou coadjuvante; mas também o gênero
da narrativa, se é heroica, romântica, religiosa, ou de outro tipo. Nem todo
protagonismo é heroico.
Um herói é um protagonista que “faz
coisas erradas pelos motivos certos”. É uma definição de comportamento muito
boa - abrange outras definições como a do mito do herói-transgressor de Levi
Strauss[2]
ou a do mito do herói espiritual de Campbell[3]
- e implica também em personagens-coadjuvantes que “façam a coisa certa (aparentemente)
pelos motivos certos” (a autoridade moral, os outros personagens da narrativa, a
sociedade do herói); também em personagens-antagonistas (os vilões) que “façam
as coisas erradas pelos motivos errados”.
Outra característica marcante em boa
parte das histórias heroicas são narrativas de conversão, em que vilões que
passam a tentar ‘fazer o bem’. Geralmente esse comportamento caracteriza ‘os
falsos heróis’, aqueles que “fazem o certo pelos motivos errados” – ou seja: o
contrário simétrico ao verdadeiro herói que faz coisas erradas pelos motivos
certos. Nas estórias atuais há viradas e transformações, todos heróis são
falsos, ou melhor: todos somos personagens contraditórios e complexos. O
‘motivo certo’ é algo ainda que procuramos entender.
E o Surfista Prateado representa essa
contradição. Ele foi aliado de um vilão destruidor e encontra vários personagens
que o acusam pela sua colaboração no passado. Ele busca sempre fazer o que é
certo, inclusive ajudando seus inimigos (o próprio Galactus), quando isso lhe
parece justo. Ele não é movido pela vingança, buscando sempre soluções
pacíficas para os conflitos. Em nenhum momento, o surfista pensa em vencer seus
adversários, mas sim e torna-los aliados em função de seu único objetivo:
voltar ao planeta Zenn-La e aos braços de sua amada Shalla-Bal.
3.
Panteão cósmico
As narrativas contemporâneas da mídia
são uma nova forma de mitologia, voltada para o futuro (e não apenas para o
passado – como a mitologia clássica). Estudar essas narrativas midiáticas é
investigar a organização dos símbolos no imaginário coletivo atual. Há
universos narrativos mais centrados na dicotomia entre o bem e o mal, como as
estórias dos contos de fada, muitas vezes afirmando crenças do simbolismo
dominante – tanto em relação à política como à religião.
As narrativas de super-heróis e de ficção
científica, por outro lado, são socialmente críticas, laicas e até
antirreligiosas: os deuses são alienígenas e a magia foi substituída pela
tecnologia.
O personagem Galactus, por exemplo, que
personifica a destruição e escraviza o surfista como um batedor avançado dos
mundos que deseja devorar, não é eticamente ‘mau’. Ele age assim porque é sua
natureza ser o devorador de mundos. Ele foi o único sobrevivente da última
contração do universo que luta para sobreviver até o fim da expansão cósmica iniciada
pelo Big-Bang.
Aliás, Galactus é das entidades
cósmicas dentro do universo Marvel que se comportam como deuses. Há também Uatu
ou O Observador. Ele faz parte da raça alienígena dos Vigilantes. Eles se
dedicam a observar os acontecimentos do Universo e são terminantemente
proibidos de interferir no curso da história. Uatu é o vigia responsável pela
Terra e já interferiu mais de uma vez para salvá-la, o que o levou a ser
julgado (revista Captain Marvel #39) e marginalizado por outros vigias.
Existem ainda Thanus (vilão
recorrente no universo Marvel); Adam Warlock (que vive preso em uma anomalia em
que o tempo se repete sempre); os irmãos gêmeos Infinito e Eternidade (dualidade
masculino-feminina formada através das projeções da consciência de todos os
seres vivos); entre outros personagens.
Assim, o surfista interage com outros
super-heróis Marvel, com humanos e com seres de outros planetas em seu círculo
de existência transitória, mas sua origem está nessa dimensão ampliada do
universo, em uma coexistência cósmica com seres com vidas de longa duração –
principalmente nas narrativas da série de desenhos animados.
4.
Características
Em outro lugar, argumentou-se que o
super-herói tem duas características: a dupla identidade (o personagem-leitor)
e ser uma repaginação ideológica de um mito, através de um determinado
‘contrato de leitura’, de um determinado contexto sócio histórico de imaginação
do personagem. No passado, o Super-Homem e o Capitão América eram heróis
hegemônicos (se vestiam com a bandeira dos EUA), enquanto o Batman e o Homem de
Ferro eram milionários rebeldes, sem superpoderes mas com acesso à tecnologia
avançada. As narrativas mais recentes (no cinema, principalmente), alteram
bastante esse esquema ideológico do pacto de leitura da guerra fria.
O Surfista Prateado não tem identidade
secreta. Ele perdeu sua ‘humanidade’ (deixou de ser Norrin Radd) e deseja
voltar a tê-la. E, do ponto de vista ideológico, o surfista tenta ser neutro em
relação aos conflitos, mas acaba se envolvendo.
No planeta do Dr. Moreau, ele toma o
partido de uma raça escravizada por outra, é escravizado também, consegue
libertar-se e tenta, sem sucesso, libertar o planeta oprimido. Em outras
situações, as tentativas de ajuda do surfista acabam gerando problemas maiores
ou são mal interpretadas. Ele acaba sempre se sacrificando por pessoas que não
o reconhecem.
Pode-se associar o símbolo do
surfista ao arquétipo do louco, o número zero do Tarô, que representa o eterno
passageiro, o ‘moto-perpétuo’, a consciência do universo sempre impermanente. O
surfista está sempre em trânsito, sempre procurando voltar para o lugar do qual
saiu. E o único ‘Destino’ possível é a tentativa sem esperança de retorno a sua
‘Origem’. Ele é privado de seu passado e de seu futuro, é um prisioneiro do
eterno presente.
Além dessa ‘espiritualidade laica’ embutida
no panteão cósmico do universo; e de sua ‘neutralidade política’ impossível em
relação às injustiças sociais dos planetas que visita, o Surfista Prateado como
personagem tem ainda características pessoais e estilísticas bem específicas.
Em nossa sociedade, os surfistas têm
um comportamento singular em relação a outros desportistas. Em contato direto
com a natureza, literalmente à margem da sociedade (ou à beira-mar), eles
desenvolvem um individualismo não competitivo, semelhante ao comportamento
felino - uma série de características subjetivas dos praticantes desse esporte
que são incorporadas às suas personalidades: a honra, a paciência, o gosto pelo
equilíbrio, o respeito à natureza, o prazer lúdico da criatividade, a solidão
do viajante ...
Acrescente-se a essas qualidade
comuns aos surfistas, o temperamento frio e introspectivo (pouco afeito a
piadas ou a exageros afetivos), os pensamentos sempre filosóficos e líricos, a
atitude pacífica e nobre. E, principalmente, o visual todo branco prata da
energia cósmica das estrelas. A prata, segundo Andraus, se referindo
especificamente ao Surfista Prateado, é “símbolo de pureza e de purificação da
alma” (ANDRAUS, 2008, p.4).
Ele não come nem se alimenta. É
incapaz de mentir. Não tem necessidades nem desejos. Sua prancha é feita da
mesma energia cósmica de seu corpo e se comunica telepaticamente com o
surfista.
5.
Conclusão
Gazy Andraus estuda o Surfista
Prateado como símbolo do self, como um herói crístico – ao lado de Thor e do
Superman. Os três foram banidos de seus lugares de origem para viver na terra
uma existência heroica.
No caso do surfista em particular,
Andraus enfatiza ainda sua relação simbólica com o Quarteto Fantástico, em que
o herói funciona como um quinto elemento (o Coisa seria a terra; Sr. Fantástico
(o homem-elástico) representaria a água; Moça-Invisível, o ar; e Tocha-Humana,
o fogo).
A tese principal de Andraus - de que
o Surfista Prateado é um protagonista cuja narrativa descreve um processo do
tipo espiritual, passível de ser pensado pela Jornada do Herói de Campbell –
certamente é verdadeira. Porém, é preciso admitir que o personagem não se
encaixa bem no conceito transgressor e violento de herói de Lévi-Strauss. O
surfista não tem o desejo de vingança ou de reparação das injustiças que
sofreu. E é justamente isso que o torna um herói tão ‘cool’.
O Surfista Prateado não é apenas um
símbolo de transcendência espiritual, mas também está associado ao arquétipo do
eterno estrangeiro, ao destino trágico de vagar permanentemente através de
universos passageiros. Como função narrativa, seu personagem é um protagonista
que tenta compreender e modificar sua relação com o antagonista, tornando-o um
aliado. Seu único desejo e motivação é o retorno ao seu planeta natal –
escondido por Galactus após sua libertação/traição.
Geralmente, a história do surfista se
divide entre antes, durante e depois de ficar preso na Terra. Antes de
encontrar o Quarteto Fantástico o surfista era apenas um sub vilão. Na terra,
se converteu em um super-herói. E depois tornou-se um viajante das estrelas,
dando um conteúdo poético a seu destino trágico.
A Marvel anunciou que os próximos
filmes dos Vingadores, previstos para 2017, serão baseados nas histórias em
quadrinhos ‘Guerra Infinita’ e ‘Aniquilação’ – em que o Surfista e Galactus têm
uma participação crucial. Nessas narrativas, praticamente todos os heróis da
Marvel se juntam contra Thanus; e vários personagens do universo Marvel são
repaginados ou desaparecem. Será que o surfista voltará a servir a Galactus
como arauto? Conseguirá finalmente voltar ao seu planeta natal? Ou sucumbirá
junto a seu mestre – como prevê a saga Réquiem?
6.
Referências bibliográficas
ANDRAUS, Gazy. A questão espiritual nas histórias em quadrinhos de
Thor, Surfista Prateado e Super-Homem. XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Natal, RN – 2
a 6 de setembro de 2008.
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil
Faces. São Paulo, Editora Cultrix/Pensamento, 1995.
______ O Poder do Mito. Editora Palas
Athena, São Paulo, 1990.
LEVI-STRAUSS, Claude. O
cru e o cozido: Mitológicas I. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
_____Do mel às cinzas:
Mitológicas II. São Paulo: Cosac
Naify, 2005.
_____A origem dos modos à
mesa: Mitológicas III. São
Paulo: Cosac Naify, 2006.
_____O Homem nú: Mitológica
IV. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
7.
Referências audiovisuais
Silver
Surfer – Minissérie de desenho
animado de 13 episódios. Ano produção: 1998. Dirigido por Roy Allen Smith e
Tony Pastor Jr. Outubro de 1998. Gênero: Ação, Animação, Ficção. Países de
Origem: Estados Unidos da América. Roteiro: Jack Kirby e Larry Brody. Elenco:
Gamora: Alyson Court; Amber: Aron Tager; The Master of Zenn-La (voice): Bernard
Behrens; Nietr: Camilla Scott; Shalla-Bal: Cedric Smith; Mentor: Chris Britton;
Zarek: Colin Fox; Uatu: David Calderisi; Kiar: David Hemblen; Supreme
Intelligence, Husseri: Dennis Akayama; Watcher Prime: Don Francks; Kalek:
Elizabeth Hanna; Kili the Troll:
Elizabeth Sheperd; Infinity: Gary Krawford; Thanos: Howard Jerome; Galactus: Jennifer Dale; Eternity: John Stocker; Ivar: Karl Pruner; Lady Chaos: Lawrence Bayne;
Zedaro: Len Doncheff; Raze: Lorne Kennedy; Planetary Essence: Marc Strange;
Lord Glenn: Michael Copeman; MacLag: Nicole Oliver; Gamma Jen Beth: Norm
Spencer; Drax the Destroyer: Oliver Becker; Adam Warlock: Paul Essiembre;
Silver Surfer/Norrin Radd: Rick Bennent; Votrick: Robert Bockstael; Pip the
Troll: Roy Lewis; Ego the Living Planet: Shirley Douglas; The Universal Sourge:
Tara Rosling; Frankie Raye/Nova: Valerie Buhagiar; e Shellaine: Alison Sealy-Smith.
Fantastic Four: Rise of the Silver
Surfer (Quarteto Fantástico e o
Surfista Prateado). Estados Unidos. 2007 • cor • 91 min. Direção: Tim Story.
Produção: Avi Arad, Bernd Eichinger, Ralph Winter. Roteiro: Don Payne, Mark
Frost. Elenco: Ioan Gruffudd, Jessica Alba, Chris Evans, Michael Chiklis.
Género: Aventura, Ação. Música: John Ottman. Cinematografia: Larry Blanford.
Edição: William Hoy, Peter S. Elliot. Produção: Marvel Studios; Constantin
Film; Ingenious Film Partners. Distribuição: 20th Century Fox. Lançamento:
junho de 2007. Idioma: Inglês.
8.
Referências gráfico-visuais
Surfista Prateado: Parábola. Roteiro: Stan Lee. Arte: Jean Giraud - ‘Moebius’.
Cores: Mark Chiarello, John Wellington. Letrista: Júlio Nogueira. Tradutor:
Eduardo Tanaka, Bernardo Santana. Editor original: Joe Quesada, Margaret Clark.
Publicada originalmente em Silver Surfer, The (1988) n° 1/1988 - Marvel Comics
(Epic Comics), n° 2/1989 - Marvel Comics (Epic Comics). Editora: Panini. Publicado em: março de 2014.
Surfista
Prateado: Réquiem.
Roteiro: J. Michael Straczynski. Arte: Esad Ribic. Letrista: Júlio Nogueira.
Tradutor: Fernando Lopes, Jotapê Martins. Editor original: Joe Quesada, Axel
Alonso. Publicada originalmente em Silver
Surfer: Requiem (2007) n° 1/2007 - Marvel Comics. Editora: Panini.
Publicado em: novembro de 20
[1] Doutor
em ciências sociais, professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia
da UFRN.
[2]
Após, investigar durante 20 anos
diferentes culturas ameríndias, realizando uma ampla a análise estrutural de 813 mitos nativos das
duas Américas com algumas variantes; Lévi-Strauss publicou o maior e mais completo estudo sobre o mito do
herói (2004; 2005; 2006; 2011). O
mito de referência é o ‘desaninhador de pássaros’, que serve como fio condutor
de todas as análises que se seguem. A narrativa foi colhida pelo próprio
Lévi-Strauss quando esteve no Brasil, estudando os índios Bororo do Mato Grosso
e conta a história de um incesto cometido por um índio com sua mãe. Ao
descobrir a transgressão, o pai expulsa o filho. O herói vai para dimensões
desconhecidas e rouba o fogo de seres mágicos. Em algumas dessas lendas, o fogo
é dado em troca de uma aliança e de um casamento do herói nativo com a filha de
seres encantados. Então, dono de grande poder, volta à sua terra e mata o pai,
a mãe e todos que o humilharam no passado. O mito assim tanto prescreve o tabu
como sua transgressão heroica e destrutiva. Esses transgressores dos limites
entre natureza e cultura estão destinados a se tornarem senhores do fogo e da
guerra. A estrutura do mito do desaninhador de pássaros compreende e explica,
com suas variações, todas as narrativas em quatro etapas: a transgressão do
tabu, o castigo, a conquista do fogo e a vingança da exclusão através da destruição
generalizada. O fogo, nessa perspectiva, representa a tecnologia que transforma
a Natureza (o cru) em Cultura (o cozido). Enquanto alguns suspeitam que o fogo,
a aliança e o casamento representam a entrada do homem branco na vida indígena
ou a sua previsão mítica; outros consideram que os ‘homens do céu’ são seres
alienígenas. O fato que a descoberta do fogo desencadeou um desequilíbrio no
universo humano. Os homens praticamente não caçavam nem comiam carne antes do
advento do fogo controlado e até hoje não têm a anatomia e fisiologia adequadas
para serem carnívoros. O advento do fogo nos transformou, não apenas em animais
carnívoros, mas, sobretudo, em uma nova espécie predadora desequilibrando a
cadeia alimentar e o meio ambiente.
[3]
Joseph Campbell (1990, 1995), comparando diferentes narrativas mitológicas,
elaborou um modelo chamado de Jornada do Herói, em que o herói abandona a vida
ordinária, mergulha no desconhecido e retorna à dimensão cotidiana, composto 17
momentos. A ideia de universalidade psicológica das narrativas resulta no
conceito de ‘Monomito’, ou seja, de que todas as histórias são na verdade a
repetição de uma única estrutura narrativa.
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