O HERÓI DE DUAS FACES
A dupla
identidade dos super-heróis
Marcelo Bolshaw Gomes[1]
Resumo: o presente texto discute a mediação narrativa da
dupla identidade dos super-heróis. Amparado nos estudos de Umberto Eco e Grant Morrison,
destaca-se três fatores irredutíveis nesse estudo: a transferência
não-analítica de emoções (estudadas pela psicanálise); a formação ideológica
resultante do contexto de enunciação e dos pactos de leitura; e o conteúdo
mítico e arquetípico dos heróis. Conclui-se que a mediação narrativa da dupla
identidade está se tornando uma nova forma de identidade nos ambientes
virtuais.
Palavras chave: Comunicação Midiática; Estudos Narrativos;
Histórias em Quadrinhos; Super-heróis;
Abstract: This paper discusses the narrative mediation of
the dual identity of superheroes. Bolstered in studies of Umberto Eco and Grant
Morrison, stands three irreducible factors in this study: the transfer of
non-analytical emotions (studied by psychoanalysis); the resulting ideological
formation of enunciation context and reading pacts; and the mythical and
archetypal content of heroes. We conclude that the narrative mediation of dual
identity is becoming a new form of identity in virtual environments.
Keywords: media communication; Narrative Studies; Comics;
Super heroes;
1.
Introdução
Há uma
estória conhecida sobre um ventríloquo, que após muitos anos trabalhando com um
boneco, passou a acreditar que o personagem tinha vida própria e o integrou
como amigo e conselheiro a sua vida pessoal. Fatos como esse, em que objetos
representam personagens míticos, são comuns em várias culturas – como nas
bonecas do maracatu nordestino.
Há duas
diferenças fundamentais entre o antigo herói mitológico e o super-herói contemporâneo.
A primeira é que nas antigas mitologias havia uma dialética entre o passado e o
presente, em que a tradição interpretava os fatos e os acontecimentos
confirmavam a tradição; enquanto na mitologia atual há uma dialética entre o
presente e o futuro. Para os antigos, os heróis mitológicos existiram em um
passado distante; hoje, os super-heróis vivem uma aventura aberta, com eventos
que estão acontecendo e que vão ainda acontecer.
A segunda
diferença fundamental é a dupla identidade. Na mitologia midiática, a
encarnação do mito (ou da entidade simbólica) é posto como uma dupla
representação de si, real e ideal - uma cara para cada um dos dois lados da
caverna de Platão – sendo que o eu verdadeiro é o Batman e Bruce Wayne, seu
disfarce social. O Super-Homem é um alienígena disfarçado de jornalista. A ideia
sugerida é que o personagem real é a máscara e não seu portador humano.
Umberto Eco
(2008, 248) foi o primeiro pensador a entender a importância da dupla
identidade. Em sua obra clássica, Apocalípticos e integrados, Eco
ressalta uma compensação da sensação de impotência do repórter Clark Kent (e
dos leitores) através da catarse de sua contraparte superpoderosa. A dupla
identidade narrativa dos heróis atuais reflete, assim, o desejo de superação
das frustrações do leitor comum, em um mundo injusto. A identidade dupla mito/homem
é então uma relação de sublimação.
2.
O fator ideológico
Porém, a
sublimação não é suficiente para explicar a dupla identidade. Mesmo com o
aparecimento contemporâneo de diversos super-heróis pansexuais, transgênero e
homoafetivos, eles não são machões que se transvestem em super-heroínas ou
dondocas que se tornam super-heróis.
Além da
psicanálise dos sentimentos e desejos reprimidos, há ainda um forte aspecto ideológico
nos super-heróis. Na verdade, uma ambiguidade ideológica, uma vez que ao mesmo
tempo em que representam valores socialmente dominantes (são abertamente
pró-americanos, por exemplo) também representam valores culturais críticos e
progressistas (feministas, ecológicos ou transgressores sobre algum aspecto).
No texto As
Histórias em Quadrinhos como objeto de estudo das teorias da Comunicação (FRANÇA, 2014,
267-286), os professores Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos
procedem a uma completa revisão histórica dos estudos acadêmicos sobre quadrinhos,
no mundo desde 1940 e no Brasil a partir de 1951, acentuando suas diferentes
abordagens: funcionalista (BOGART, 1973); marxista (DORFMAN
& MATTELART, 1980); estruturalista (FRESNAULT-DERUELLE, 1980); e estudos culturais
(MATTELART; NEVEU, 2004).
A maioria desses estudos era
centrado na crítica ideológica dos personagens das histórias em quadrinhos e
tinha por objetivo principal desmascarar a sugestão de valores simbólicos capitalistas
pela indústria cultural. Moacy Cirne (SOUZA, 2014) é a maior expressão
brasileira deste tipo de crítica ao aspecto ideológico dos quadrinhos.
É possível que os
super-heróis fossem menos ‘contra-hegemônicos’ até os anos 90, mas os antigos
heróis míticos também tinham ‘um lado rebelde’ frente à sociedade (e aos
deuses) – mesmo que de modo mais discreto. O próprio conceito de herói implica
(tanto para modelo da jornada de Campbell como para o modelo de análise
estrutural das narrativas de Lévy-Strauss e Greimas) em ser ‘um transgressor
legítimo’ – alguém que é simultaneamente rejeitado e aceito por sua comunidade.
Seja pelo bom comportamento
dos super-heróis no passado ou pelo exagero da crítica ideológica de seus
analistas, os primeiros estudos sobre quadrinhos acentuavam mais o lado
‘sistêmico’ dos heróis do que sua singularidade e desadequação social.
Apenas recentemente, com as
abordagens inspiradas na Análise do Discurso e na Semiótica Narrativa[2],
estabelecidos elementos formais para crítica analítica (SILVA, 2001) chegou-se a um
entendimento mais amplo da dimensão ideológica dos quadrinhos.
Por exemplo: A construção da realidade na história em
quadrinhos Alias: codinome investigações (LIMA, 2014) faz, a partir da Análise
do Discurso, uma história do protagonismo feminino em quadrinhos das primeiras
heroínas supererotizadas – ‘representações masculinas do feminino’ – até a
personagem Jéssica Jones, que largou a fantasia de heroína e o grupo de
super-heróis a que pertencia, se tornando uma investigadora particular cheia de
problemas pessoais.
Dentro
de toda essa ótica, os autores formatam uma mulher com suas fragilidades e
dificuldades buscando se encontrar naquele mundo em que vive e no seu caminho
como ser humano, sem necessariamente cair num estereótipo também comum da
mulher dramática, indefesa e preocupada mais com sua aparência. A Jessica Jones
de Bendis e Gaydos é uma personagem complexa, que foge da unilateralidade comum
na caracterização heroica e feminina dentro dos quadrinhos, a aproximando não
só de seu público como do humano em si: um ser perdido, com acertos e falhas,
em uma jornada de busca de sentido para si mesmo (2014, p. 57).
Lima ressalta a realidade opaca e cinzenta em que vive a personagem, em
oposição ao universo colorido e glamoroso dos super-heróis, do qual ela fez
parte um dia. Como se a narrativa, para retratar uma protagonista feminina de
uma forma mais realista, tivesse que abrir mão de uma parte de sua identidade.
Outro exemplo: utilizando da metodologia da Semiótica Narrativa, Gene X: uma análise semiótica das HQs dos
x-men em revista (SILVA, 2011) mostra como as HQs dos X-Men tratam a questão da
diversidade cultural e da exclusão social existentes no mundo não-ficcional. Os
X-men tem características de minorias excluídas: Ororo (Tempestade) é negra;
Jean-Paul (Estrela Polar) é assumidamente gay; Raven Darkholme (Mística) possivelmente
é bissexual; Scott Summers (Ciclope) é deficiente visual; Professor Charles
Xavier, cadeirante; Hank McCoy (o Fera) é portador da Síndrome do Homem Lobo; e
assim por diante.
Além das diferenças de gênero, orientação sexual, cor e deficiência
física, os heróis também são de países diferentes: Wolverine é canadense; Colossus,
russo; Tempestade, queniana; Noturno, alemão; Banshee, escocês; Solaris,
japonês; e Tâmara, brasileira. O que realmente estigmatiza o grupo e o faz
objeto de preconceito é que ele é formado por indivíduos que passaram por
mutações genéticas e desenvolveram superpoderes. A mutação genética faz com
eles sejam tratados como ‘aberrações’ pelo governo e pela sociedade em geral.
Como os X-men são seres mutantes e o que é mediado é a exclusão social dos
personagens, suas estórias não tratam diretamente da questão da dupla
identidade e sim de uma única identidade híbrida.
Tanto a deserção de Jessica Jones do super-heroísmo por motivos
psicológicos como a identidade híbrida dos mutantes são pontos importantes para
entender a noção de mediação narrativa da ‘dupla identidade’. Mas, agora, o
importante é perceber que esses trabalhos colocam a crítica ideológica dos
super-heróis em outro patamar, tanto metodologicamente (levando em conta mais
aspectos de análise), mas sobretudo mostrando novas questões políticas em um
universo análogo à realidade de modo mais complexo e refinado.
3.
O fator
mítico
O escritor e
roteirista Grant Morrison (2012) aprofunda as observações de Eco sobre a
sublimação das frustrações através da mediação de identidade dos super-heróis, bem
vista sua utilização ideológica no contexto social em que foram criados, mas
também ressalta o aspecto mitológico dos personagens, suas semelhanças
estruturais com deuses, demônios e outros seres míticos das narrativas
tradicionais.
Aliás,
Morrison, como roteirista da DC Comics
nos anos 90, praticamente reinventou a Liga da Justiça com base na mitologia
grega. Superman inspirado em Zeus; Batman como Hades, o senhor dos infernos; e
o Aquaman, pensado a partir de Poseidon, rei dos mares. Além disso, reforçou
também características já existentes de Flash como Hermes e da Mulher Maravilha
como Artêmis.
Oliveira
(2016), observando o caráter arquetípicos dos super-heróis, faz um levantamento
extenso a partir da dupla-identidade, concluindo que [...]
[...] se pode chegar é que cada super-herói lida
com a questão da dupla identidade de modo diferente. Alguns têm uma
personalidade predominante com a qual se identificam mais, seja ela a
identidade fisicamente mascarada ou a que é ocultada por artifícios teatrais
relacionados ao papel que desempenha em sua vida civil. Enquanto existem
outros que convivem de maneira ambígua com suas duplas identidades, a ponto de
não conseguir identificar qual é a sua real identidade e qual é a que usa como
disfarce.
[...] Mais do que as habilidades, o que faz um
super-herói é seu senso de dever e responsabilidade, apesar de seus problemas e
falhas pessoais.
Outro ponto a ser destacado é que nem só os
super-heróis usam máscaras e possuem vidas duplas. A pessoa comum, assim como o
super-herói, é capaz de se adequar as diferentes situações e contextos, criando
identidades paralelas para as diferentes situações, cada uma delas
representando uma diferente faceta da personalidade de um mesmo indivíduo.
Portanto, muitas vezes, é desnecessário buscar uma distinção entre as
identidades de tal sujeito, seja na ficção dos quadrinhos ou na vida real
(OLIVEIRA, 2016, 92-92).
Aprofundando
na Psicologia Analítica e considerando a dupla identidade como uma relação
entre Personalidade (a máscara) e Individualidade (o self), pode-se inclusive
elaborar uma arqueologia de super-heróis: o herói-monstro (Hulk, Dr. Jekyll/Mr.
Hyde); heróis-máquinas (Homem de Ferro, Cyborg); heróis deuses (Mulher Maravilha,
Namor, Thor); heróis-vigilantes (Demolidor, Batman); e até anti-heróis (como
Deadpool). Ao super-heróis funcionam como ‘totens’ ou identidades simbólicas. E
cada um desses super-heróis guarda uma relação diferente com sua dupla identidade,
não apenas em relação ao herói-mito, mas também em relação ao humano[3].
Os
arqui-inimigos também têm um papel simbólico fundamental na definição da
identidade dupla dos heróis. A responsabilidade do Batman torna-se ainda mais sombria,
séria e triste frente à alegria destrutiva e colorida do Coringa. Nas
aventuras, os vilões sempre representam qualidades e características opostas às
representadas pelos super-heróis. Há, na verdade, um triangulo entre
protagonista, sua identidade cotidiana e o antagonista principal.
Há também o
papel do narrador. Não apenas do narrador discursivo, aquele texto que
contextualiza os desenhos e os diálogos, mas, sobretudo, o narrador ampliado, a
mediação entre autor-leitor, que conta a estória através das cenas sequenciadas,
envolvendo além da narração discursiva, os diálogos, os desenhos e sua
disposição em quadros e páginas. O narrador ampliado pode definir a
profundidade psicológica dos personagens; pode também ser mais ou menos
realista em vários aspectos; ou ainda utilizar de expedientes mais mitológicos
ou mais ideológicos. Esses três fatores da mediação de identidade narrativa dos
super-heróis (a psicanálise dos desejos inibidos, a crítica ideológica e o
conteúdo mítico e/ou arquetípico) sempre estão presentes, mas combinados de
modo desigual dependendo do narrador e da narrativa[4].
TABELA 1: Quadrado Semiótico Narrativo do
super-heroísmo
Herói (Mito)
|
Vilão (Ideologia combatida)
|
Identidade cotidiana (Leitor)
|
Outros personagens (Narrador)
|
4. Repaginando heróis
Divide-se a história das histórias em quadrinhos em quatro fases
distintas: A Era de Ouro, começa em 1938 (criação do super-homem) e termina em
1954, com a criação de uma entidade reguladora das revistas de banda desenhada,
o Comics Code Authority. A Era de
Prata de 54 aos anos 69 (com a morte de Gwen
Stacy, namorada do
Homem-Aranha); a Era de Bronze até 1986; e a Era Moderna, que
começa com o lançamento de três séries de histórias (Crise em Infinitas Terras[5]; Watchmen, de Alan Moore; e Batman Ano Um/O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller) e que perdura até nossos
dias.
Cada passagem de uma era para outra corresponde a uma
reconfiguração estética e narrativa da identidade mediada, a uma repaginação
ideológica do conteúdo mítico de cada herói, de acordo com um novo contexto sociocultural
e com os novos pactos de leitura neles existentes. O super-heróis foram criados
na Era de Ouro e tiveram um papel importante na segunda guerra mundial, muitas
vezes lutando contra o nazismo. Na Era de Prata, após a guerra e um período de
declínio editorial, as narrativas gráficas se tornaram mais bem desenhadas e
com histórias mais elaboradas, aproximando-se da ficção científica em virtude da
ênfase na tecnologia. Nessa Era, os inimigos principais foram o crime organizado,
monstros e alienígenas, muitas vezes metáforas da URSS e da China. A televisão
produz um novo público para o super-heroísmo. Nos anos 60, surge a Marvel Comics e diversos grupos de
super-heróis.
Na Era de Bronze, os heróis começam gradativamente a se revoltar
contra o mundo e os antagonistas passam a ser vilões extravagantes. As
narrativas passam a tratar de temas tabus, tais como a sexualidade, a morte, a
injustiça. A Era Moderna é hiper-realista, violenta, artística e os quadrinhos
passam a interagir com outras mídias (cinema, TV, jogos, bonecos, etc). Os
super-heróis tornaram-se multiculturais e têm comportamentos singulares e
críticos em relação à sociedade. O terrorismo, em suas múltiplas formas, passa
a ser antagonista principal dos super-heróis.
Morrison (2012, 169) prefere dizer chamar a Era de Bronze de ‘Era
do Ferro’ (ou Era Sombria) e vê uma continuidade de aumento gradativo do
realismo, do sexo e da violência entre as Eras de Bronze e Moderna. Porém, se
adotarmos o parâmetro dos contextos sociais e dos pactos de leitura (e não só
elementos temáticos e estéticos nas narrativas), os quadrinhos só atendem a um
público adulto mais culto e exigente a partir da Era Moderna.
Outra característica exclusiva da Era moderna é a tendência de
apresentar os super-heróis como pessoas normais que se fantasiam com roupas
extravagantes, como em Watchmen ou em
Aliás.
Em cada Era, o tema da dupla identidade passou por mudanças. De
certa forma, pode-se dizer que a chamada Era Moderna tentou desmascarar os super-heróis,
seja apresentando-os de modo mais humano e realista, seja fazendo com eles
‘saíssem do armário’ e assumissem sua natureza mítica.
Mas, a dupla identidade resistiu.
Um caso exemplar da sobrevivência atual da dupla identidade é sobre
Kamala Kahn, a adolescente islâmica, que assume os poderes de Carol Danvers e
se torna a nova Miss Marvel. A heroína é estudada por Fernandes (2016). A
pesquisa de Fernandes tem vários méritos: entende os super-heróis como mediações
de identidade narrativa e não como meros produtos da indústria cultural;
contextualiza a nova cena cultural dos quadrinhos pós 2011; entende a heroína
islâmica como o resultado de um longo processo de construção, nas histórias em
quadrinhos, do protagonismo feminino e de inclusão social de comportamentos
estigmatizados.
A dupla identidade – que é o que nos interessa – permanece porque
a identidade cotidiana do herói é uma representação do leitor no interior da
narrativa[6].
Kamala lê quadrinhos, tem um blog sobre Os Vingadores, é uma fã de
super-heróis.
A mudança da identidade humana associada a um mito não é novidade.
O Fantasma era uma máscara passada de geração em geração. Batman já ‘encarnou’
em outros personagens além de Bruce Wayne. A diferença no caso da nova Miss
Marvel é que novo ‘médium’ do mito é uma representação de um leitor
globalizado, uma adolescente de outra cultura. E essa diferença estrutural implica
em toda uma interpretação intercultural da personagem mítica, em termos
estéticos e narrativos.
5.
Conclusão
Abordou-se
aqui três aspectos da mediação da identidade narrativa dos super-heróis: a
psicanálise dos desejos inibidos, a crítica ideológica, e o conteúdo mítico
e/ou arquetípico. Esse último aspecto é que faz com que, embora passem pelos
mesmos mecanismos de reprodutibilidade técnica da cultura de massas, os
super-heróis se diferenciem de outros produtos da indústria cultural. Os
super-heróis são a representação dos mitos e arquétipos, mediados
ideologicamente dentro da linguagem fragmentada e descontínua da mídia, em seus
múltiplo suportes atuais. Os super-heróis dos quadrinhos estão agora na TV, no
cinema e em várias dimensões do cotidiano.
Também
destacou-se que, na mediação narrativa da identidade, o mito precisa ser
repaginada ideologicamente de acordo com o contexto social e os pactos de
leitura; principalmente através de novos inimigos, mas também através de
mudanças estéticas, narrativas e editoriais. Os inimigos geralmente representam
antagonistas sociais, como o nazismo da Era do Ouro; os países socialistas nas
Eras de Prata e Bronze; e o terrorismo, em suas diferentes versões, na
atualidade.
Foi ainda analisado
aqui como as próprias histórias em quadrinhos mais recentes problematizam
metalinguisticamente a dupla identidade, tanto humanizando os heróis como
pessoas normais como os desumanizando como mutantes, alienígenas ou divindades.
Mas, como a metade humana da dupla identidade implica na representação do
leitor dentro da narrativa, essas desconstruções narrativas não vingaram e
duplo protagonismo permanece como uma das principais características das atuais
narrativas gráficas de aventuras.
A
antropologia estuda as mitologias do passado; a psicologia analítica (derivada
de Jung) investiga a existência do mito no presente; e a comunicação pesquisa
os mitos nas narrativas da mídia em relação ao futuro[7].
Hoje as
mediações de identidade dos super-heróis estão transformando os personagens em
‘Avatares[8]’
de jogos eletrônicos e em personagens de RPG; são mimetizados através de
fantasias de Cosplay[9] em
eventos temáticos; e há até pessoas que assumem a identidade de heróis - seja
em performances artísticas e políticas ou por problemas psicológicos.
Estamos
passando da mediação narrativa da identidade mítica para sua representação
teatral e política.
Michel Serres
(LEVY, 2007, 15), dando um exemplo sobre a teoria dos quatro espaços
antropológicos de Levy (a Natureza, o Território, o Mercado e o Saber) diz que nosso
nome e sobrenome são nossas identidades no espaço da Terra; nosso endereço,
nossa identidade no espaço territorial; a profissão, a posição que ocupamos no
mundo das mercadorias; e que, atualmente, estamos definindo uma quarta identidade
para o espaço do saber: a senha, a impressão digital, o DNA.
A definição
desta quarta identidade ainda está em construção, mas o Avatar (ou corpo
virtual) é o principal candidato para a função, pois foi lentamente gestado
através da mediação narrativa da dupla identidade dos super-heróis, tem a
vantagem do anonimato virtual e da propiciar uma experiência poética e
narrativa diferenciada da identidade cotidiana.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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As HQs e seus leitores adultos. In: ROSENBERG, Bernard; WHITE, David Manning
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223-234.
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Ariel; MATTELART, Armand. Para ler o Pato Donald: comunicação de
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6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
FERNANDES, Ramon Vitor. O corpo alienígena: representações da identidade do Outro no universo
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do Rio Grande do Norte (UERN), Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC),
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais e Humanas. Mossoró, 2016
FRESNAULT-DERUELLE,
Pierre. O espaço interpessoal nos comics. In: HELBO, André (Org.). Semiologia
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Parábola Editorial, 2004.
MORRISON,
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PIETROFORTE,
Antônio Vicente Seraphim. Análise
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Paulo: Annablume, 2009.
______ Semiótica
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2004.
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SOUZA, Alexandro Carlos de Borges. A representação do
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Comunicação no Brasil: reflexões contemporâneas. Pág. 267-286. Salvador:
Edufba, 2014.
[1]
Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN, doutor em
Ciências Sociais.
[2] No
Brasil, existe o trabalho pioneiro do professor Antônio Vicente Seraphim
Pietroforte (2004, 2007, 2009) sobre análise textual de história em quadrinhos
e algumas poucas aplicações interessantes.
[3]
As profissões mais comuns nas identidades cotidianos dos super-heróis são
jornalistas, detetives e cientistas. Sobre esse tema, vale a pena ler Do Novo Jornalismo ao Cyberpunk: Elementos
contraculturais do jornalismo e da ficção científica em Transmetropolitan,
de Alex de Souza (2013).
[4]
Um bom exemplo de análise mitológica, utilizando a Semiótica Narrativa, é o
trabalho Ressemantizações mitológicas nos quadrinhos: estudo semiótico de Conan, o
bárbaro (LENZI, 2007), que investiga resignificação
dos mitos antigos na cultura moderna através da análise semiótica de duas
estórias do guerreiro cimério: A
Torre do Elefante e A Fronteira do
Fim do Mundo.
[5]
Série de histórias da Liga da Justiça em realidades paralelas em que os
super-heróis existem de modo diferente, que a DC Comics utilizou para mudar seus uniformes e alterar suas
características.
[6]
Personagem-leitor, dissociado do dispositivo da dupla identidade, é bastante comum
no audiovisual, nas séries da produtora Shonda Rhimes (Scandal e How to Get Away
with Murder, por exemplo) em que uma protagonista do mal (em ambas as
séries, uma advogada negra durona) contrata um novato, representando o ponto de
vista do público, que, aos poucos, descobre os motivos de seu tutor.
[7]
Enquanto a antropologia descreve o aspecto local das narrativas míticas dentro
de um quadro aberto de referências linguísticas, alimentares, culturais; os
estudos mitológicos, no sentido contrário, partem do geral (do inconsciente
coletivo, dos arquétipos) para o particular (os mitos culturais específicos) e
são universalistas, cultuando o sagrado como uma epifania transcultural.
Defende-se aqui que os dois métodos não se excluem e são complementares na
investigação das narrativas míticas da mídia.
[8]
Avatar significa encarnação da Divindade. A definição é dos Vedas, que citam
Krishna como oitava encarnação de Vishnu. O termo foi adotado pela teosofia e
por outras religiões e através do universo das narrativas atuais passou a ter
outro significado no âmbito dos vídeos games: o de corpo virtual substituto, em
que jogador (co-narrador/protagonista) experimenta outros universos.
[9]
Cosplay é a arte de se transformar em um personagem real (artista) ou ficcional
(personagem de quadrinhos ou videojogos), utilizando de maquiagem,
interpretação e vestuário. Os participantes (ou jogadores) da atividade
chamam-se cosplayers.
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