sábado, 18 de fevereiro de 2017

Identidade Secreta

O HERÓI DE DUAS FACES
A dupla identidade dos super-heróis

Marcelo Bolshaw Gomes[1]

Resumo: o presente texto discute a mediação narrativa da dupla identidade dos super-heróis. Amparado nos estudos de Umberto Eco e Grant Morrison, destaca-se três fatores irredutíveis nesse estudo: a transferência não-analítica de emoções (estudadas pela psicanálise); a formação ideológica resultante do contexto de enunciação e dos pactos de leitura; e o conteúdo mítico e arquetípico dos heróis. Conclui-se que a mediação narrativa da dupla identidade está se tornando uma nova forma de identidade nos ambientes virtuais.
Palavras chave: Comunicação Midiática; Estudos Narrativos; Histórias em Quadrinhos; Super-heróis;
Abstract: This paper discusses the narrative mediation of the dual identity of superheroes. Bolstered in studies of Umberto Eco and Grant Morrison, stands three irreducible factors in this study: the transfer of non-analytical emotions (studied by psychoanalysis); the resulting ideological formation of enunciation context and reading pacts; and the mythical and archetypal content of heroes. We conclude that the narrative mediation of dual identity is becoming a new form of identity in virtual environments.
Keywords: media communication; Narrative Studies; Comics; Super heroes;

1.      Introdução
Há uma estória conhecida sobre um ventríloquo, que após muitos anos trabalhando com um boneco, passou a acreditar que o personagem tinha vida própria e o integrou como amigo e conselheiro a sua vida pessoal. Fatos como esse, em que objetos representam personagens míticos, são comuns em várias culturas – como nas bonecas do maracatu nordestino.
Há duas diferenças fundamentais entre o antigo herói mitológico e o super-herói contemporâneo. A primeira é que nas antigas mitologias havia uma dialética entre o passado e o presente, em que a tradição interpretava os fatos e os acontecimentos confirmavam a tradição; enquanto na mitologia atual há uma dialética entre o presente e o futuro. Para os antigos, os heróis mitológicos existiram em um passado distante; hoje, os super-heróis vivem uma aventura aberta, com eventos que estão acontecendo e que vão ainda acontecer.
A segunda diferença fundamental é a dupla identidade. Na mitologia midiática, a encarnação do mito (ou da entidade simbólica) é posto como uma dupla representação de si, real e ideal - uma cara para cada um dos dois lados da caverna de Platão – sendo que o eu verdadeiro é o Batman e Bruce Wayne, seu disfarce social. O Super-Homem é um alienígena disfarçado de jornalista. A ideia sugerida é que o personagem real é a máscara e não seu portador humano.
Umberto Eco (2008, 248) foi o primeiro pensador a entender a importância da dupla identidade. Em sua obra clássica, Apocalípticos e integrados, Eco ressalta uma compensação da sensação de impotência do repórter Clark Kent (e dos leitores) através da catarse de sua contraparte superpoderosa. A dupla identidade narrativa dos heróis atuais reflete, assim, o desejo de superação das frustrações do leitor comum, em um mundo injusto. A identidade dupla mito/homem é então uma relação de sublimação.
2.      O fator ideológico
Porém, a sublimação não é suficiente para explicar a dupla identidade. Mesmo com o aparecimento contemporâneo de diversos super-heróis pansexuais, transgênero e homoafetivos, eles não são machões que se transvestem em super-heroínas ou dondocas que se tornam super-heróis.
Além da psicanálise dos sentimentos e desejos reprimidos, há ainda um forte aspecto ideológico nos super-heróis. Na verdade, uma ambiguidade ideológica, uma vez que ao mesmo tempo em que representam valores socialmente dominantes (são abertamente pró-americanos, por exemplo) também representam valores culturais críticos e progressistas (feministas, ecológicos ou transgressores sobre algum aspecto).
No texto As Histórias em Quadrinhos como objeto de estudo das teorias da Comunicação (FRANÇA, 2014, 267-286), os professores Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos procedem a uma completa revisão histórica dos estudos acadêmicos sobre quadrinhos, no mundo desde 1940 e no Brasil a partir de 1951, acentuando suas diferentes abordagens: funcionalista (BOGART, 1973); marxista (DORFMAN & MATTELART, 1980); estruturalista (FRESNAULT-DERUELLE, 1980); e estudos culturais (MATTELART; NEVEU, 2004).
A maioria desses estudos era centrado na crítica ideológica dos personagens das histórias em quadrinhos e tinha por objetivo principal desmascarar a sugestão de valores simbólicos capitalistas pela indústria cultural. Moacy Cirne (SOUZA, 2014) é a maior expressão brasileira deste tipo de crítica ao aspecto ideológico dos quadrinhos.
É possível que os super-heróis fossem menos ‘contra-hegemônicos’ até os anos 90, mas os antigos heróis míticos também tinham ‘um lado rebelde’ frente à sociedade (e aos deuses) – mesmo que de modo mais discreto. O próprio conceito de herói implica (tanto para modelo da jornada de Campbell como para o modelo de análise estrutural das narrativas de Lévy-Strauss e Greimas) em ser ‘um transgressor legítimo’ – alguém que é simultaneamente rejeitado e aceito por sua comunidade.
Seja pelo bom comportamento dos super-heróis no passado ou pelo exagero da crítica ideológica de seus analistas, os primeiros estudos sobre quadrinhos acentuavam mais o lado ‘sistêmico’ dos heróis do que sua singularidade e desadequação social.
Apenas recentemente, com as abordagens inspiradas na Análise do Discurso e na Semiótica Narrativa[2], estabelecidos elementos formais para crítica analítica (SILVA, 2001) chegou-se a um entendimento mais amplo da dimensão ideológica dos quadrinhos.
Por exemplo: A construção da realidade na história em quadrinhos Alias: codinome investigações (LIMA, 2014) faz, a partir da Análise do Discurso, uma história do protagonismo feminino em quadrinhos das primeiras heroínas supererotizadas – ‘representações masculinas do feminino’ – até a personagem Jéssica Jones, que largou a fantasia de heroína e o grupo de super-heróis a que pertencia, se tornando uma investigadora particular cheia de problemas pessoais.
Dentro de toda essa ótica, os autores formatam uma mulher com suas fragilidades e dificuldades buscando se encontrar naquele mundo em que vive e no seu caminho como ser humano, sem necessariamente cair num estereótipo também comum da mulher dramática, indefesa e preocupada mais com sua aparência. A Jessica Jones de Bendis e Gaydos é uma personagem complexa, que foge da unilateralidade comum na caracterização heroica e feminina dentro dos quadrinhos, a aproximando não só de seu público como do humano em si: um ser perdido, com acertos e falhas, em uma jornada de busca de sentido para si mesmo (2014, p. 57).
Lima ressalta a realidade opaca e cinzenta em que vive a personagem, em oposição ao universo colorido e glamoroso dos super-heróis, do qual ela fez parte um dia. Como se a narrativa, para retratar uma protagonista feminina de uma forma mais realista, tivesse que abrir mão de uma parte de sua identidade.
Outro exemplo: utilizando da metodologia da Semiótica Narrativa, Gene X: uma análise semiótica das HQs dos x-men em revista (SILVA, 2011) mostra como as HQs dos X-Men tratam a questão da diversidade cultural e da exclusão social existentes no mundo não-ficcional. Os X-men tem características de minorias excluídas: Ororo (Tempestade) é negra; Jean-Paul (Estrela Polar) é assumidamente gay; Raven Darkholme (Mística) possivelmente é bissexual; Scott Summers (Ciclope) é deficiente visual; Professor Charles Xavier, cadeirante; Hank McCoy (o Fera) é portador da Síndrome do Homem Lobo; e assim por diante.
Além das diferenças de gênero, orientação sexual, cor e deficiência física, os heróis também são de países diferentes: Wolverine é canadense; Colossus, russo; Tempestade, queniana; Noturno, alemão; Banshee, escocês; Solaris, japonês; e Tâmara, brasileira. O que realmente estigmatiza o grupo e o faz objeto de preconceito é que ele é formado por indivíduos que passaram por mutações genéticas e desenvolveram superpoderes. A mutação genética faz com eles sejam tratados como ‘aberrações’ pelo governo e pela sociedade em geral.
Como os X-men são seres mutantes e o que é mediado é a exclusão social dos personagens, suas estórias não tratam diretamente da questão da dupla identidade e sim de uma única identidade híbrida.
Tanto a deserção de Jessica Jones do super-heroísmo por motivos psicológicos como a identidade híbrida dos mutantes são pontos importantes para entender a noção de mediação narrativa da ‘dupla identidade’. Mas, agora, o importante é perceber que esses trabalhos colocam a crítica ideológica dos super-heróis em outro patamar, tanto metodologicamente (levando em conta mais aspectos de análise), mas sobretudo mostrando novas questões políticas em um universo análogo à realidade de modo mais complexo e refinado.
3.      O fator mítico
O escritor e roteirista Grant Morrison (2012) aprofunda as observações de Eco sobre a sublimação das frustrações através da mediação de identidade dos super-heróis, bem vista sua utilização ideológica no contexto social em que foram criados, mas também ressalta o aspecto mitológico dos personagens, suas semelhanças estruturais com deuses, demônios e outros seres míticos das narrativas tradicionais.
Aliás, Morrison, como roteirista da DC Comics nos anos 90, praticamente reinventou a Liga da Justiça com base na mitologia grega. Superman inspirado em Zeus; Batman como Hades, o senhor dos infernos; e o Aquaman, pensado a partir de Poseidon, rei dos mares. Além disso, reforçou também características já existentes de Flash como Hermes e da Mulher Maravilha como Artêmis.
Oliveira (2016), observando o caráter arquetípicos dos super-heróis, faz um levantamento extenso a partir da dupla-identidade, concluindo que [...]
[...] se pode chegar é que cada super-herói lida com a questão da dupla identidade de modo diferente. Al­guns têm uma personalidade predominante com a qual se identificam mais, seja ela a identidade fisicamente mascarada ou a que é ocultada por artifícios teatrais relacionados ao papel que de­sempenha em sua vida civil. Enquanto existem outros que convi­vem de maneira ambígua com suas duplas identidades, a ponto de não conseguir identificar qual é a sua real identidade e qual é a que usa como disfarce.
[...] Mais do que as habilidades, o que faz um super-herói é seu senso de dever e responsabilidade, apesar de seus problemas e falhas pessoais.
Outro ponto a ser destacado é que nem só os super-heróis usam máscaras e possuem vidas duplas. A pessoa comum, assim como o super-herói, é capaz de se adequar as diferentes situações e contextos, criando identidades paralelas para as diferentes si­tuações, cada uma delas representando uma diferente faceta da personalidade de um mesmo indivíduo. Portanto, muitas vezes, é desnecessário buscar uma distinção entre as identidades de tal sujeito, seja na ficção dos quadrinhos ou na vida real (OLIVEIRA, 2016, 92-92).
Aprofundando na Psicologia Analítica e considerando a dupla identidade como uma relação entre Personalidade (a máscara) e Individualidade (o self), pode-se inclusive elaborar uma arqueologia de super-heróis: o herói-monstro (Hulk, Dr. Jekyll/Mr. Hyde); heróis-máquinas (Homem de Ferro, Cyborg); heróis deuses (Mulher Maravilha, Namor, Thor); heróis-vigilantes (Demolidor, Batman); e até anti-heróis (como Deadpool). Ao super-heróis funcionam como ‘totens’ ou identidades simbólicas. E cada um desses super-heróis guarda uma relação diferente com sua dupla identidade, não apenas em relação ao herói-mito, mas também em relação ao humano[3].
Os arqui-inimigos também têm um papel simbólico fundamental na definição da identidade dupla dos heróis. A responsabilidade do Batman torna-se ainda mais sombria, séria e triste frente à alegria destrutiva e colorida do Coringa. Nas aventuras, os vilões sempre representam qualidades e características opostas às representadas pelos super-heróis. Há, na verdade, um triangulo entre protagonista, sua identidade cotidiana e o antagonista principal.
Há também o papel do narrador. Não apenas do narrador discursivo, aquele texto que contextualiza os desenhos e os diálogos, mas, sobretudo, o narrador ampliado, a mediação entre autor-leitor, que conta a estória através das cenas sequenciadas, envolvendo além da narração discursiva, os diálogos, os desenhos e sua disposição em quadros e páginas. O narrador ampliado pode definir a profundidade psicológica dos personagens; pode também ser mais ou menos realista em vários aspectos; ou ainda utilizar de expedientes mais mitológicos ou mais ideológicos. Esses três fatores da mediação de identidade narrativa dos super-heróis (a psicanálise dos desejos inibidos, a crítica ideológica e o conteúdo mítico e/ou arquetípico) sempre estão presentes, mas combinados de modo desigual dependendo do narrador e da narrativa[4].
TABELA 1: Quadrado Semiótico Narrativo do super-heroísmo
Herói (Mito)
Vilão (Ideologia combatida)
Identidade cotidiana (Leitor)
Outros personagens (Narrador)
4.      Repaginando heróis
Divide-se a história das histórias em quadrinhos em quatro fases distintas: A Era de Ouro, começa em 1938 (criação do super-homem) e termina em 1954, com a criação de uma entidade reguladora das revistas de banda desenhada, o Comics Code Authority. A Era de Prata de 54 aos anos 69 (com a morte de Gwen Stacy, namorada do Homem-Aranha); a Era de Bronze até 1986; e a Era Moderna, que começa com o lançamento de três séries de histórias (Crise em Infinitas Terras[5]; Watchmen, de Alan Moore; e Batman Ano Um/O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller) e que perdura até nossos dias.
Cada passagem de uma era para outra corresponde a uma reconfiguração estética e narrativa da identidade mediada, a uma repaginação ideológica do conteúdo mítico de cada herói, de acordo com um novo contexto sociocultural e com os novos pactos de leitura neles existentes. O super-heróis foram criados na Era de Ouro e tiveram um papel importante na segunda guerra mundial, muitas vezes lutando contra o nazismo. Na Era de Prata, após a guerra e um período de declínio editorial, as narrativas gráficas se tornaram mais bem desenhadas e com histórias mais elaboradas, aproximando-se da ficção científica em virtude da ênfase na tecnologia. Nessa Era, os inimigos principais foram o crime organizado, monstros e alienígenas, muitas vezes metáforas da URSS e da China. A televisão produz um novo público para o super-heroísmo. Nos anos 60, surge a Marvel Comics e diversos grupos de super-heróis.
Na Era de Bronze, os heróis começam gradativamente a se revoltar contra o mundo e os antagonistas passam a ser vilões extravagantes. As narrativas passam a tratar de temas tabus, tais como a sexualidade, a morte, a injustiça. A Era Moderna é hiper-realista, violenta, artística e os quadrinhos passam a interagir com outras mídias (cinema, TV, jogos, bonecos, etc). Os super-heróis tornaram-se multiculturais e têm comportamentos singulares e críticos em relação à sociedade. O terrorismo, em suas múltiplas formas, passa a ser antagonista principal dos super-heróis.
Morrison (2012, 169) prefere dizer chamar a Era de Bronze de ‘Era do Ferro’ (ou Era Sombria) e vê uma continuidade de aumento gradativo do realismo, do sexo e da violência entre as Eras de Bronze e Moderna. Porém, se adotarmos o parâmetro dos contextos sociais e dos pactos de leitura (e não só elementos temáticos e estéticos nas narrativas), os quadrinhos só atendem a um público adulto mais culto e exigente a partir da Era Moderna.
Outra característica exclusiva da Era moderna é a tendência de apresentar os super-heróis como pessoas normais que se fantasiam com roupas extravagantes, como em Watchmen ou em Aliás.
Em cada Era, o tema da dupla identidade passou por mudanças. De certa forma, pode-se dizer que a chamada Era Moderna tentou desmascarar os super-heróis, seja apresentando-os de modo mais humano e realista, seja fazendo com eles ‘saíssem do armário’ e assumissem sua natureza mítica.
Mas, a dupla identidade resistiu.
Um caso exemplar da sobrevivência atual da dupla identidade é sobre Kamala Kahn, a adolescente islâmica, que assume os poderes de Carol Danvers e se torna a nova Miss Marvel. A heroína é estudada por Fernandes (2016). A pesquisa de Fernandes tem vários méritos: entende os super-heróis como mediações de identidade narrativa e não como meros produtos da indústria cultural; contextualiza a nova cena cultural dos quadrinhos pós 2011; entende a heroína islâmica como o resultado de um longo processo de construção, nas histórias em quadrinhos, do protagonismo feminino e de inclusão social de comportamentos estigmatizados.
A dupla identidade – que é o que nos interessa – permanece porque a identidade cotidiana do herói é uma representação do leitor no interior da narrativa[6]. Kamala lê quadrinhos, tem um blog sobre Os Vingadores, é uma fã de super-heróis.
A mudança da identidade humana associada a um mito não é novidade. O Fantasma era uma máscara passada de geração em geração. Batman já ‘encarnou’ em outros personagens além de Bruce Wayne. A diferença no caso da nova Miss Marvel é que novo ‘médium’ do mito é uma representação de um leitor globalizado, uma adolescente de outra cultura. E essa diferença estrutural implica em toda uma interpretação intercultural da personagem mítica, em termos estéticos e narrativos.
5.      Conclusão
Abordou-se aqui três aspectos da mediação da identidade narrativa dos super-heróis: a psicanálise dos desejos inibidos, a crítica ideológica, e o conteúdo mítico e/ou arquetípico. Esse último aspecto é que faz com que, embora passem pelos mesmos mecanismos de reprodutibilidade técnica da cultura de massas, os super-heróis se diferenciem de outros produtos da indústria cultural. Os super-heróis são a representação dos mitos e arquétipos, mediados ideologicamente dentro da linguagem fragmentada e descontínua da mídia, em seus múltiplo suportes atuais. Os super-heróis dos quadrinhos estão agora na TV, no cinema e em várias dimensões do cotidiano.
Também destacou-se que, na mediação narrativa da identidade, o mito precisa ser repaginada ideologicamente de acordo com o contexto social e os pactos de leitura; principalmente através de novos inimigos, mas também através de mudanças estéticas, narrativas e editoriais. Os inimigos geralmente representam antagonistas sociais, como o nazismo da Era do Ouro; os países socialistas nas Eras de Prata e Bronze; e o terrorismo, em suas diferentes versões, na atualidade.
Foi ainda analisado aqui como as próprias histórias em quadrinhos mais recentes problematizam metalinguisticamente a dupla identidade, tanto humanizando os heróis como pessoas normais como os desumanizando como mutantes, alienígenas ou divindades. Mas, como a metade humana da dupla identidade implica na representação do leitor dentro da narrativa, essas desconstruções narrativas não vingaram e duplo protagonismo permanece como uma das principais características das atuais narrativas gráficas de aventuras.
A antropologia estuda as mitologias do passado; a psicologia analítica (derivada de Jung) investiga a existência do mito no presente; e a comunicação pesquisa os mitos nas narrativas da mídia em relação ao futuro[7].
Hoje as mediações de identidade dos super-heróis estão transformando os personagens em ‘Avatares[8]’ de jogos eletrônicos e em personagens de RPG; são mimetizados através de fantasias de Cosplay[9] em eventos temáticos; e há até pessoas que assumem a identidade de heróis - seja em performances artísticas e políticas ou por problemas psicológicos.
Estamos passando da mediação narrativa da identidade mítica para sua representação teatral e política.
Michel Serres (LEVY, 2007, 15), dando um exemplo sobre a teoria dos quatro espaços antropológicos de Levy (a Natureza, o Território, o Mercado e o Saber) diz que nosso nome e sobrenome são nossas identidades no espaço da Terra; nosso endereço, nossa identidade no espaço territorial; a profissão, a posição que ocupamos no mundo das mercadorias; e que, atualmente, estamos definindo uma quarta identidade para o espaço do saber: a senha, a impressão digital, o DNA.
A definição desta quarta identidade ainda está em construção, mas o Avatar (ou corpo virtual) é o principal candidato para a função, pois foi lentamente gestado através da mediação narrativa da dupla identidade dos super-heróis, tem a vantagem do anonimato virtual e da propiciar uma experiência poética e narrativa diferenciada da identidade cotidiana.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOGART, Leo. As HQs e seus leitores adultos. In: ROSENBERG, Bernard; WHITE, David Manning (Org.). Cultura de massa. São Paulo: Cultrix, 1973. p. 223-234.
DORFMAN, Ariel; MATTELART, Armand. Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
FERNANDES, Ramon Vitor. O corpo alienígena: representações da identidade do Outro no universo dos quadrinhos de Super-heróis. Projeto de Dissertação. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC), Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais e Humanas. Mossoró, 2016
FRESNAULT-DERUELLE, Pierre. O espaço interpessoal nos comics. In: HELBO, André (Org.). Semiologia da representação: teatro, televisão, história em quadrinhos. São Paulo: Cultrix, 1980. p. 125-146.
LENZI, Rafael Giardini. Ressemantizações mitológicas nos quadrinhos: estudo semiótico de Conan, o bárbaro. Dissertação de mestrado em Comunicação e Semiótica. PUC/SP, 2007.
LEVY, P. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço.  Edições Loyola. São Paulo: 2007.
LIMA, Marcelo Soares de. A construção da realidade nas história em quadrinhos Alias: codinome investigações. Dissertação (Mestrado em PROGRAMA DE POS GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO) - Universidade Federal da Paraíba. 2014.
MATTELART, Armand; NEVEU, Érik. Introdução aos Estudos Culturais. SP: Parábola Editorial, 2004.
MORRISON, Grant. Superdeuses: mutantes, alienígenas, vigilantes, justiceiros mascarados e o significado de ser humano na era dos super-heróis. São Paulo: Seoman, 2012.
PIETROFORTE, Antônio Vicente Seraphim. Análise Textual da História em Quadrinhos. São Paulo: Annablume, 2009.
______ Semiótica visual – os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2004.
______Análise do texto visual – a construção da imagem. São Paulo: Contexto, 2007.
SILVA, Flávio Vinícius Godoi da. Gene X: uma análise semiótica das HQs dos x-men em revista. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, sob orientação do profº Juliano José de Araújo. Universidade Federal de Rondônia – UNIR, 2011.
SILVA, Nadilson M. da. Elementos para a análise das HQs. INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – Campo Grande /MS – setembro 2001.
SOUZA, Alexandro Carlos de Borges. A representação do jornalista nas histórias em quadrinhos: cyberpunk e novo jornalismo numa leitura crítica de Transmetropolitan. Dissertação (Mestrado em PROGRAMA DE POS GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO) - Universidade Federal da Paraíba. 2013.
______ Moacy Cirne: o gênio criativo dos quadrinhos. Nova Iguaçu: Marsupial, 2014.
VERGUEIRO, Waldomiro; SANTOS, Roberto Elísio dos. As HQs como objeto de estudo das teorias da Comunicação. In FRANÇA, Vera Veiga (et al.) Teorias da Comunicação no Brasil: reflexões contemporâneas. Pág. 267-286. Salvador: Edufba, 2014. 




[1] Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN, doutor em Ciências Sociais.
[2] No Brasil, existe o trabalho pioneiro do professor Antônio Vicente Seraphim Pietroforte (2004, 2007, 2009) sobre análise textual de história em quadrinhos e algumas poucas aplicações interessantes.
[3] As profissões mais comuns nas identidades cotidianos dos super-heróis são jornalistas, detetives e cientistas. Sobre esse tema, vale a pena ler Do Novo Jornalismo ao Cyberpunk: Elementos contraculturais do jornalismo e da ficção científica em Transmetropolitan, de Alex de Souza (2013).
[4] Um bom exemplo de análise mitológica, utilizando a Semiótica Narrativa, é o trabalho Ressemantizações mitológicas nos quadrinhos: estudo semiótico de Conan, o bárbaro (LENZI, 2007), que investiga resignificação dos mitos antigos na cultura moderna através da análise semiótica de duas estórias do guerreiro cimério: A Torre do Elefante e A Fronteira do Fim do Mundo.
[5] Série de histórias da Liga da Justiça em realidades paralelas em que os super-heróis existem de modo diferente, que a DC Comics utilizou para mudar seus uniformes e alterar suas características.
[6] Personagem-leitor, dissociado do dispositivo da dupla identidade, é bastante comum no audiovisual, nas séries da produtora Shonda Rhimes (Scandal e How to Get Away with Murder, por exemplo) em que uma protagonista do mal (em ambas as séries, uma advogada negra durona) contrata um novato, representando o ponto de vista do público, que, aos poucos, descobre os motivos de seu tutor.
[7] Enquanto a antropologia descreve o aspecto local das narrativas míticas dentro de um quadro aberto de referências linguísticas, alimentares, culturais; os estudos mitológicos, no sentido contrário, partem do geral (do inconsciente coletivo, dos arquétipos) para o particular (os mitos culturais específicos) e são universalistas, cultuando o sagrado como uma epifania transcultural. Defende-se aqui que os dois métodos não se excluem e são complementares na investigação das narrativas míticas da mídia.
[8] Avatar significa encarnação da Divindade. A definição é dos Vedas, que citam Krishna como oitava encarnação de Vishnu. O termo foi adotado pela teosofia e por outras religiões e através do universo das narrativas atuais passou a ter outro significado no âmbito dos vídeos games: o de corpo virtual substituto, em que jogador (co-narrador/protagonista) experimenta outros universos.
[9] Cosplay é a arte de se transformar em um personagem real (artista) ou ficcional (personagem de quadrinhos ou videojogos), utilizando de maquiagem, interpretação e vestuário. Os participantes (ou jogadores) da atividade chamam-se cosplayers.

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