quinta-feira, 2 de junho de 2022

O sonho não acabou

DO CONTRA

Costuma-se chamar de ‘Contracultura’ ao movimento social focado principalmente nas transformações da consciência, dos valores e do comportamento, na busca de outros espaços e novos canais de expressão para o indivíduo e pequenas realidades do cotidiano, através da mudança de atitude e do protesto político. 

Seu ideário combina bandeiras diversas: ecologia; vida comunitária; luta contra as guerras, conflitos e qualquer tipo de repressão; dieta vegetariana; respeito às minorias raciais e culturais; experiência com drogas e viagens psicodélicas, liberdade sexual e amorosa, anti-consumismo; aproximação das práticas religiosas orientais, principalmente do budismo; crítica radical aos meios de comunicação de massa como, por exemplo, a televisão; discordância com as formas tradicionais de autoridade política ou religiosa e com os princípios da economia de mercado – entre outras características. 

A revolução cultural na China; o boicote ao recrutamento para guerra do Vietnã nos EUA; a primavera de Praga na antiga Tchecoslováquia; as barricadas do desejo em Paris; a luta contra ditadura militar no Brasil e em outros países da América Latina – esses eventos tiveram em comum o fato de terem sido protagonizados por jovens, ao mesmo tempo, em escala global, sem nenhum tipo de comunicação entre eles. E deixaram como saldo a cultura rebelde do rock, a libertação parcial das mulheres e a industrialização completa da cultura pela mídia. Edgar Morin (1997) é um dos que melhor descrevem esse cenário rebelde de transformação social. Porém, no campo das ciências humanas, os grandes expoentes da Contracultura foram Foucault, Deleuze e Guattari. A crítica pós-moderna desconstruiu Marx, Freud e o estruturalismo; quebrou ainda mais as formas de pensamento positivista e racionalista; e abriu novos horizontes teóricos e filosóficos. Mas a Contracultura não foi apenas um evento que aconteceu em 1968. Ela continua viva até nossos dias (GOFFMAN, 2007). 

Nessa perspectiva, a contracultura é um espaço contra hegemônico dentro do regime de centralidade dos meios de comunicação, que se iniciou em escala global, no final dos anos 60. Um espaço de contestação e crítica dentro do sistema, que forma vanguardas estéticas e políticas, para excelência e reciclagem do próprio sistema. E esse espaço também está diretamente ligado à juventude. Ou às diferentes gerações de jovens pós anos sessenta. Um espaço que tem um papel de formação de elites. Então, a contracultura é uma ‘heterotopia midiática’, um espaço contra hegemônico permanente dentro do regime de centralidade da mídia, voltado para formação de quadros sociais. Mas, o que é exatamente o ‘regime de centralidade da mídia’?

O pensamento marxista, quando se refere ao conjunto da sociedade, distingue a existência concreta dos homens de suas formas de consciência social. A existência concreta equivale à ‘infraestrutura econômica’ e às ‘forças produtivas’ resultantes da interface entre os homens e a natureza; e as formas de consciência social, à ‘superestrutura social’ e às relações dos homens entre si, à luta política e cultural entre as classes sociais. Como pensador dialético, Marx acredita que infraestrutura e superestrutura se condicionam mutuamente, mas, que, ‘em última instância’, são as necessidades humanas que predominam sobre seus hábitos e costumes. As mudanças sociais, nessa perspectiva, ocorrem inicialmente na infraestrutura produtiva; e, em um segundo momento, nas esferas reprodutivas das condições de produção: a superestrutura. 

 Para defender marxismo de ataques de pensadores weberianos – que o acusam de ‘mono causal’ em sua ênfase econômica e advoga o pluri-determinismo de outros fatores estruturais (religiosos, políticos, culturais) – Louis Althusser (1979) propôs uma adaptação de uma categoria lacaniana: a ‘sobre-determinação estrutural’ ou a determinação em ‘primeira instância’. Ou seja: há fatores que são determinantes aparentemente ou em um primeiro momento (como a religião); mas a determinação final continua sendo orientada pelos interesses econômicos coletivos e individuais. 

A ‘centralidade da mídia’ pode ser definida, nessa perspectiva meio marxista meio psicanalítica-estruturalista, como uma sobre-determinação estrutural dos fatores ideológico e cultural produzidos artificialmente. A mídia tornou-se mediadora central das relações sociais. Assim, é possível que hoje a informação determine o preço dos produtos e até o valor acionário das empresas, sem que isto se constitua em um rompimento com a lógica da mercadoria e com o capitalismo. É o “capitalismo informacional” – proclamado por Manuel Castells (2000). 

Há outros modos convergentes de se definir a centralidade da mídia. Jürgen Habermas (2003, 2012) acredita que a imprensa livre levou a um alargamento da esfera pública burguesa, democratizando-a. Já Stuart Hall (2005) resgata parcialmente a noção gramsciana de ‘Hegemonia’ para associá-la à de ‘Identidade Cultural’. John Thompson (1995, 1998) imagina uma democracia mediada, em que os meios de comunicação, centralizando informações econômicas e políticas, possam mediar as relações entre o estado, o mercado e as pessoas. De uma forma ou de outra, a centralidade dos meios de comunicação institui um regime social de hipervisibilidade (de algumas pessoas, entidades e situações em detrimento de outras) e de simultaneidade de tempo-espaço (incluindo o surgimento de uma audiência não-presencial permanente).

Porém, no campo das ciências humanas, os grandes expoentes da contracultura foram Foucault, Deleuze e Guattari. Incorporando a perspectiva epistemológica da física contemporânea, o pensamento pós-moderno imagina um universo de partes sem todo, um contínuo de tempo-espaço sem determinismos estruturais, em que tudo se condiciona e é relativo ao observador.

Foucault e Deleuze descrevem a passagem das instituições de confinamento e disciplina (do adestramento individual do corpo a rotinas) para uma sociedade de controle em redes a céu aberto, através de “cifras e senhas”. Sociedade de controle se tornaria possível ainda graças ao comportamento instituído pelo regime da “moratória ilimitada’ – um aperfeiçoamento cibernético da culpa cristã – uma obsessão psicológica pelo ressarcimento da dívida social individualizada.

Hoje, com a implosão da cultura de massas promovida pela segmentação interativa da internet, a realidade social descrita pelos pós-modernos há muitas décadas tornou-se mais evidente e a ‘centralidade da mídia’ se tornou ainda mais complexa e fragmentada, se multiplicando e dividindo de diferentes modos e formas, pulverizando a visibilidade em universos culturais variados e paralelamente simultâneos. O próprio termo ‘pós-moderno’ significa que a contracultura acabou com a modernidade – o que pode ser interpretado de várias formas e modos.

Pierre Levy (1993), por exemplo, considera que as sociedades tradicionais anteriores à escrita se caracterizavam por um modelo de interação ‘um-um’, em que o emissor e receptor partilhavam de um único contexto e vivem em um tempo cíclico. Para ele, as sociedades modernas se caracterizam pela interação unilateral ‘um-muitos’, um contexto de transmissão e muitos de recepção. A escrita gerou a história, a noção de tempo contínuo e linear e a ilusão do observador externo. E as sociedades atuais em rede, segundo Levy, se organizam elo modelo de interação ‘muitos-muitos’, em que todos transmitem e recebem, havendo um retorno ampliado ao contexto único dos interlocutores e à percepção de tempo simultâneo.

Já outros autores como Anthony Giddens (2003) consideram que a modernidade não acabou, apenas entrou em um estágio mais avançado de reflexibilidade. Para ele, a tradição é uma reflexibilidade entre o passado e o presente; e a modernidade, uma reflexibilidade entre o presente e o futuro. Com a contracultura, entramos em uma sociedade de risco (individualizando vidas em aventuras), em que a realidade moderna se globaliza ainda mais em relação aos bens simbólicos, hoje industrializados através da mídia por idioma.

 O certo é que tanto para os que pensam a sociedade atual através de centralidade da mídia na produção de bens simbólicos, quanto para os que acreditam no fim da modernidade, a contracultura é um marco histórico de várias mudanças sociais, não apenas em relação à interferência da comunicação no cotidiano, mas também em relação ao meio ambiente e ao universo feminino. 

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