domingo, 24 de abril de 2022

O épico, o tragicômico e o feminino

 

TRANSMUTAÇÕES DA JORNADA HEROICA

Marcelo Bolshaw Gomes1

Introdução

Joseph Campbell (1990, 1995) levou as ideias de Jung aos campos da arqueologia, antropologia e história das religiões, que elaborou um modelo estrutural segundo o qual todos os grandes mitos fundadores das culturas humanas seriam, em última análise, uma única narrativa universal: o 'monomito' (ideia adaptado do romance Ulisses de James Joyce). Comparando diferentes mitologias, Campbell elaborou um modelo estrutural chamado de “Jornada do Herói”, em que o protagonista abandona a vida ordinária, mergulha no desconhecido e retorna à dimensão cotidiana. O modelo é composto de 3 fases e 17 momentos. E todas as histórias heroicas são na verdade a repetição dessa única estrutura narrativa.

O roteirista Christopher Vogler usou as teorias de Campbell para criar um memorando para os estúdios Disney, depois desenvolvido como o livro "The Writer's Journey: Mythic Structure For Writers" (A Jornada do Escritor: Estrutura Mítica para Roteiristas). Este trabalho influenciou os 10 filmes produzidos pela empresa entre 1989 (A Pequena Sereia) e 1998 (Mulan), além da trilogia Matrix das irmãs Wachowski. O padrão do monomito foi adotado também por George Lucas para a criação da saga Star Wars, tanto na trilogia original quanto suas "prequências".

Vogler faz uma adaptação reduzida da jornada de Campbell, mantendo as três fases narrativas e reduzindo as 17 etapas para apenas 12. Hoje esse modelo narrativo é referência para produção de vários filmes, romances, histórias em quadrinhos e narrativas heroicas. E também para análise dessas narrativas. Porém, além da redução, o protocolo Vogler usa a estrutura da jornada como um modelo de organização das narrativas, completamente dissociado da observação psicológica e do desenvolvimento pessoal de si próprio.

Campbell e outros acadêmicos, tais como Erich Neumann, além descreverem as narrativas de Gautama Buddha, Moisés e Cristo em termos do monomito; também acreditam que na jornada como um rito de passagem da infância para a responsabilidade comunitária, como um processo pelo qual todos passamos mesmo que involuntariamente. Principalmente agora, que a sociedade enfatiza o risco para engendrar aventuras, todos são heróis em jornada, em um "ciclo de iniciação" em sua trajetória do anonimato à consagração.

Os 12 Estágios da Jornada do Herói2

  1. Mundo Comum – O primeiro estágio forma o ambiente normal, onde o herói vive junto a outras pessoas, antes de iniciar sua grande aventura.

  2. A Chamada – Aqui um desafio surge e acaba influenciando o herói a sair de sua zona de conforto para cumprir um problema.

  3. Recusa ou Reticência – O personagem tende a recusar ou demorar a aceitar a chamada, resistindo a ‘entrar na dança’. Quase sempre é porque tem medo sente-se inseguro ou incapaz.

  4. Mentoria – No quarto estágio ele se encontra com um mentor, sábio, oráculo; recebe uma ajuda divina ou sobrenatural que o motiva a aceitar a chamada, concedendo-lhe o conhecimento e a sabedoria para encarar a aventura.

  5. Cruzamento do Primeiro Portal – Onde o herói imerge do mundo comum e ultrapassa um portal que leva a um mundo especial, mágico, uma outra dimensão.

  6. Provações, aliados e inimigos – No sexto estágio, o personagem passa por testes, enfrenta problemas, incógnitas surgem. Nesta etapa ele também encontra aliados e enfrenta inimigos e acaba aprendendo as regras do novo mundo.

  7. Aproximação – O herói vence as provações.

  8. Provação difícil ou traumática – A maior dificuldade da aventura aparece, como um caso de vida ou morte. Esta é a parte mais dolorida do enredo.

  9. Recompensa – O personagem escapa do fim trágico, supera o medo e adquire a fórmula mágica, a recompensa por ter aceitado o desafio.

  10. O Retorno – Retorna para o mundo comum, volta ao ponto de partida.

  11. Ressurreição – Outro momento decisivo na vida do personagem, mais um teste ao qual ele enfrenta o perigo, a morte e deve usar com veemência tudo que foi aprendido, inclusive a fórmula mágica.

  12. Regresso com a fórmula – Volta para casa com a fórmula a fim de ajudar a todos de seu mundo comum.

No entanto, Campbell ficou tão encantado com essa noção de jornada que não percebeu as mudanças que a narrativa de Jesus Cristo introduziu nesse encantamento das vidas heroicas. A jornada, na versão cristã, deixou de ser épica, tornou-se uma tragédia e o sacrifício substituiu parcialmente a consagração. Digo 'parcialmente' porque, como demonstramos adiante, as características da jornada do herói solar (Gilgamesh, Hercules, que lutam contra deusas da natureza) se sobrepõem ao herói trágico que se sacrificar pelos outros. E, após a história de Jesus Cristo, A Divina Comédia de Dante, Hamlet de Shakespeare e Don Quixote de Cervantes também vão provocar mutações significativas nos elementos simbólicos dessa jornada psicológica do protagonismo narrativo transmitida inconscientemente de geração em geração pela máquina mimética (GOMES, 2022).

O monomito heroico, além de dinâmico, é também imprevisível. De uma hora para outra, o protagonismo feminino insurgiu frente ao antagonismo da sociedade patriarcal. A jornada agora é da heroína (a jornada da anima, que também implica no lado feminino dos homens), inclusive da narrativas mais recentes da Disney e toda indústria do entreterimento.

  1. A transmutação cristã

Porém, apesar de ter vários elementos simbólicos em comum (a morte e ressureição), a jornada de Jesus é uma tragédia do ponto de vista narrativo e não uma narrativa épica e heroica. Além disso, o arquétipo do Messias é descendente (é a encarnação de Deus) e o do herói, ascendente (é o homem que se torna um semi deus).

Mas, o heroísmo, para Campbell (1990, p.141), é “o objetivo moral é o de salvar um povo, ou uma pessoa, ou defender uma ideia. O herói se sacrifica por algo”. Todos os heróis precisam passar por um ciclo de “morte” e renascimento por meio do sacrifício, físico ou espiritual, a fim de alcançar um objetivo. Os heróis em suas origens “morrem” como seres comuns em determinada passagem de sua história para retornar imortais.

Melhor seria investigar os aspectos em que a história de Jesus NÃO se encaixa na jornada heroica, observando suas diferenças e inversões em relação às narrativas míticas. O herói mítico sai do mundo cotidiano, vai ao sobrenatural e retorna ao início no final. Ele supera obstáculos externos e dificuldades pessoais; sua narrativa sugere coragem e entusiasmo, tem um efeito de sentido que nos inspira à ação e a conquista de nossos desejos. E a história de Jesus é uma estória triste, que nos ensina a renúncia voluntária dos sentidos e do mundo material.

Então, enquanto o herói clássico sai do mundo ordinário, visita os reinos mágicos, morre e retorna ao cotidiano vitorioso; Jesus vem do reino espiritual, encarna no mundo material, morre e volta aos céus. Claro que também há a ressurreição e o paráclito, a promessa de retorno no fim dos tempos, mas esses 'retornos' ao mundo são diferentes da eterno retorno às origens da jornada tradicional.

TABELA 1: Jornada heroica x biografia do personagem

Jornada do herói

Biografia de Jesus

Novo Testamento


Prólogo teológico

(João 1:1-18)

1 – Situação inicial, a comunidade do herói

Genealogia de Jesus

(Mateus 1:1-17) (Lucas 3:23-38)

Anunciação a José

(Mateus 1:18-25) Anunciação a Maria (Lucas 1:26-38)

Preparativos para o nascimento

(Mateus 1:25-2:1) - Nascimento (Lucas 2:1-20)

Epifania

(Mateus 2:1-12)

2 - 1º chamado e recusa à aventura

Circuncisão e Apresentação no templo

(Lucas 2:22-39)

Fuga para o Egito e Massacre dos bebês por Herodes

(Mateus 2:13-23)

Jesus no templo

(Lucas 2:41-50)

3 - Encontro com o mentor

Batismo de Jesus e tentação no deserto

(Mateus 3:13-4:11) (Marcos 1:9-13) (Lucas 2:21-22 e Lucas 4:1-13)

4 – 2º chamado à aventura; e

5 - provas

Ministério público

(Mateus 4:12-20,34 e Mateus 21:18-25,46) (Marcos 1:14-10,52 e Marcos 11:20-13,37) (Lucas 4:14-19,27 e Lucas 20:1- 21,38) (João 1:35-12,50 e 13:31-17,26)

6 – Pequena crise

A entrada em Jerusalém

(Mateus 21:1-11) (Marcos 11:1-10) (Lucas 19:29-44) (João 12:12-15)

7 – O Elixir;

Última Ceia e Eucaristia

(Mateus 26:26-29) (Marcos 14:22-25) (Lucas 22:15-20) (João 13:1-11) (1 Coríntios 11:23-26) 13.

8 e 9 – Morte

Prisão, Julgamento e Crucificação

(Mateus 26:30-27:66) (Marcos 14:32-15:47) (Lucas 22:39-23:56) (João 18:1-19:42)

10 - Renascer

Ressurreição e aparições

(Mateus 28:1-20) (Marcos 16:1-20) (Lucas 24:1-49) (João 20:1-31)

11 – Retorno com o elixir

Aparições na Galileia

(João 21:1-25)

12 – A Glória

Ascensão de Jesus

(Marcos 16:19) (Lucas 24:50-53) (Atos 1:6-11)

Fonte: GOMES, 2011a

Dai a Cezar o que é Cezar; e a Deus o que é de Deus”. Esse misticismo radical em relação ao poder institucional (presente em todo Sermão da Montanha, por exemplo) foi utilizado pelo mesmo poder institucional como uma narrativa de colonização e incultação de culpa: o efeito de sentido da narrativa cristã na formação cognitiva do sujeito ocidental, a história de Jesus Cristo vista como um ‘modo de sujeição’ da jornada do herói, o dispositivo histórico do poder pastoral para ‘nos tornar iguais’ perante a Deus e ao Estado (GOMES, 2011a).

Talvez por achar Jesus muito submisso em relação ao mundo material e não concordar com a domesticação da vontade de poder pela consciência mística, o filósofo alemão tenha escrito o livro Assim falou Zaratrusta (2009), tentando propor um protagonista menos sofredor para jornada do herói ocidental. Nietzsche projetava em Zaratrusta um messias movido pela alegria e pelo amor (e não pela culpa e pela renúncia ao desejo).

Entretanto, a história de Jesus tem um importante efeito de sentido simbólico na formação cognitiva do sujeito, um impacto de transformação da jornada, que a de Zaratustra (ou qualquer outra história), não tem. Ser sujeito é sujeitar-se. Sujeitar a própria vontade de poder. O cristianismo é, para o bem e para mal, um dispositivo de sujeição, de nos tornarmos menos animais e mais humanos. A Jornada passa reproduzir o heroísmo trágico que se sacrificar para servir.

O argumento contra a igualdade de Nietzsche (1998) surge de sua crítica ao judaísmo e ao cristianismo (a igualdade perante a Deus) e depois se estende à modernidade democrática (a igualdade perante a lei). A igualdade, para ele, é uma doutrina de escravos. Seguir regras é ser “um escravo sem senhor” e a horizontalidade é tratada como um artificio de dominação dos mais fracos sobre os mais fortes – que se sacrificam sua liberdade em nome da igualdade. Liberdade aqui entendida como vontade de potência humana resultante da morte de Deus.

Também Freud, ao postular o complexo de Édipo e considerar o cristianismo como um aperfeiçoamento perverso da neurose resultante do parricídio arcaico, estava se referindo a esta domesticação dos instintos e desejos na formação cognitiva do sujeito ocidental. O complexo de Édipo, da forma como foi posta em Totem e tabu (FREUD, 1990), afirma que a culpa de termos assinados nosso progenitor em termos primitivos foi que nos humanizou e que reproduzimos esse evento arcaico dentro do relacionamento familiar desde então. A psicanálise, no entanto, apenas reifica a culpa cristã em uma domesticação ainda mais perversa, o discurso confessional (FOUCAULT, 1982) e o regime de moratória ilimitada (DELEUZE, 1998). Para esses, seguidores da perspectiva de Nietzsche o cristianismo é um modo de sujeição, independente de gostarmos dele ou não3.

A vida de Jesus Cristo como narrativa é a história do maior injustiça de que se tem notícia. É uma narrativa em que o protagonista encarna o papel de bode expiatório cósmico e universal. Ele morreu para redimir os pecados do mundo, ou melhor: os nossos pecados. E essa narrativa teve e tem uma importância na colonização do mundo, na domesticação dos corpos e das almas. O papel que o cristianismo desempenha sobre os indivíduos apenas consolida e amplia tendências culturais mais antigas, vindas de comportamento sexual e alimentar ascético dos latinos (o cuidado de si) e dos helênicos (o uso temperante dos prazeres). Ao enunciar um 'poder pastoral', Foucault quis levar a crítica de Nietzsche à ideologia cristã às últimas consequências como um modelo de domesticação social das almas. Mas esse não era o objetivo principal; seu verdadeiro projeto era entender "como nos tornamos sujeitos". Assim, como nosso objetivo aqui é compreender, através das narrativas e não da história da sexualidade, as mudanças simbólicas da estrutura da jornada.

  1. Entre a cruz e a espada

Quando, nos primeiros versículos do décimo terceiro capítulo do Evangelho de João, Jesus lava os pés de seus discípulos, instaura-se uma nova forma de liderança e autoridade, uma nova conduta de poder se constitui tanto do ponto de vista ideológico como no organizacional. Por isso, Foucault e os pensadores nietzschianos em geral dão tanta importância à crítica do cristianismo, porque ele representa uma nova conduta de poder, que, diferentemente da conduta do 'príncipe' maquiavélico não se baseia na força ou da ação sobre os corpos, mas sim na admoestação das almas e da subjetividade pelo espírito de rebanho (GOMES, 2010).

As duas condutas, a do Príncipe e a do Pastor, rivalizaram e se completaram por muitos séculos. Durante toda primeira metade da Idade Média, enquanto os padres condenavam os pecados e perdoavam os pecadores, salvando-lhes as almas4; os soberanos puniam os corpos dos criminosos. Essa sobreposição entre o poder da Cruz e o poder da Espada equivale a novas transformações da jornada heroica: Hamlet de Shakespeare, A Divina Comédia de Dante e Don Quixote de Cervantes.

Hamlet5 é uma peça teatral trágico-dramática que, apesar de aparentemente laica, tem um forte componente espiritual. O mundo é governado pelo mal; o herói astuto, filho do pai espiritual traído e morto, desmascara o usurpador através da representação teatral. O texto discute a relação entre o poder, a loucura e a realidade. Porém, ao final da jornada, todos morrem – ou seja: a jornada heroica baseada no complexo de Édipo nos levará à autodestruição.

Já o longo poema A Divina Comédia de Dante6 é uma síntese de toda mitologia anterior realizada na perspectiva cristã, não apenas a mitologia clássica dos gregos e romanos, mas das mitologias arcaicas, em que a visita ao Inferno e às regiões subterrâneas não era nenhuma novidade. As deusas Inanna, da Suméria; Isthar da Babilônia; Deméter dos gregos; foram algumas das que desceram aos infernos para se tornarem senhoras dos três domínios (Céu, Terra e Inferno). Também, nos tempos patriarcais, vários heróis alcançaram a imortalidade descendo aos infernos. Há ainda os livros dos mortos (egípcio, tibetano, entre outros) que relatam o percurso da alma após a morte e que também podem ser interpretados como narrativas iniciáticas. A ideia aqui é a da jornada da alma em busca da iluminação e de sua união com a alma gêmea e com o divino.

Enquanto Hamlet conspira espiritualmente contra o poder do mundo material e Dante trilha sua jornada pós-morte em outras dimensões, o romance de provérbios Don Quixote de La Macha, o segundo livro mais lido do mundo, mostra um herói dividido entre dois mundos, o real e o imaginário. O herói torna-se um sonhador e um idealista. O protagonismo agora é corajoso e patético, digno de admiração e de pena. O adjetivo 'quixotesco' indica a disposição por lutar por causas impossíveis, de lutar contra 'moinhos de vento' e outros inimigos imaginários.

E esse será o último modelo masculino de jornada heroica. Aliás, a Jornada do herói trágico não foi muito favorável as mulheres. Hamlet é uma narrativa misógina que deprecia o feminino (Ofélia se mata e a rainha Gertrudes é apenas uma peça decorativa). E Beatrice Portinari e Dulcinéia de Toboso, em Dante e Don Quixote respectivamente, são mulheres idealizadas, imaginárias, engendradas pela ideologia medieval do amor cortês. São histórias que inserem a narrativa do amor romântico dentro da jornada do herói, determinando um lugar secundário para o feminino.

  1. Do sujeito trágico ao protagonismo feminino

A Jornada do Herói como processo iniciático é uma viagem eminentemente masculina, em um contexto cultural patriarcal. “Iniciação” é um rito de passagem em que um jovem torna-se membro adulto de uma determinada comunidade. Nas lendas que expressam esses processos, os heróis são sempre homens, enfrentando situações masculinas: lutando pela justiça e pela verdade. As mulheres, nessas histórias, correspondem ao Sagrado Feminino ou “anima narrativa”, isto é, a representação projetada dos valores femininos do narrador (mediação entre autor e leitor) no interior da narrativa. Com isso, elas são ou meras coadjuvantes, sequestradas pelo dragão e resgatadas para o casamento alquímico final, e/ou então se associam com o mal e seus vilões, dificultando a vida do herói.

Há também histórias em que a mulher é a protagonista em um universo com valores masculinos -como no filme Jogos Vorazes, por exemplo. Contar uma história iniciática (uma jornada heroica) em que a mulher e os valores femininos sejam realmente os protagonistas, é uma necessidade cultural e uma tendência narrativa contemporânea. Por isso mesmo, Maureen Murdock ficou bastante decepcionada quando questionou Joseph Campbell sobre o papel do feminino na Jornada do Herói.

Em toda tradição mitológica, a mulher é. Tudo o que ela tem que fazer é conscientizar-se que está no lugar onde as pessoas estão tentando chegar. Quando uma mulher percebe esta característica maravilhosa, ela não fica confusa com a noção de ser um pseudo macho (MURDOCK apud MARTINEZ, 2008, p. 139).

Murdock não entendeu a resposta de Campbell, considerando-a machista no sentido de excluir as mulheres da jornada iniciática do autoconhecimento. Ou seja: as meninas não jogam esse jogo simbólico narrativo da transformação espiritual através de aventuras heroicas. A pesquisadora Monica Martinez interpretou a resposta de Campbell de modo diferente (2008, p. 138-143): “o que Campbell quis dizer foi que a mulher não deve se masculinizar para trilhar a jornada iniciática de um ponto de vista externo”. Segundo Martinez, “a mulher já é”, significa que a narrativa feminina é mais interior que exterior; lugar em que os homens estão. Foi, digamos assim, um galanteio antifeminista.

Por outro lado, o episódio motivou a psicóloga na pesquisa de uma jornada mística feminina, com características próprias. Murdock pensa que o foco do desenvolvimento espiritual feminino é o de curar a divisão interna entre a mulher e sua natureza feminina. Ela elaborou uma estrutura de dez passos para representar esse processo feminino (MURDOCK apud MARTINEZ, 2008, p. 141).

    1. Formação do feminino;

    2. Identificação com o masculino e reunião de aliados;

    3. Caminho das provações;

    4. Encontrando o sucesso;

    5. Despertando os sentimentos de morte espiritual;

    6. Iniciação e descida à deusa;

    7. Apelo urgente para se reconectar com o feminino;

    8. Curando a divisão entre mãe e filha;

    9. Curando o masculino ferido;

    10. Integração do masculino e feminino.

Martinez quer adaptar a Jornada do Herói de Campbell às questões específicas da mulher (mais profundas e complexas que as masculinas); Murdock prefere formular o próprio processo: a Jornada da Heroína, um roteiro interior para sair do buraco narrativo em que os heróis nos jogaram (MARTINEZ, 2008, p. 143).

Conclusão

Em Mimese e simulação (GOMES, 2015) é um problematização sobre o herói trágico e a construção histórica e narrativa de um sujeito protagonista/narrador, em luta contra as estruturas narrativas do tempo, personificada na reinvenção contemporânea do mito das três moiras do destino, as tecelãs da intriga, arqui-inimigas do anti-herói pós moderno.

Porém, nos últimos anos, o protagonismo tornou-se feminino e a sociedade patriarcal tornou-se a antagonista de grande parte das narrativas. Hoje percebe-se que não é suficiente que as mulheres se tornem protagonistas das próprias vidas, elas têm também que contar as próprias histórias. O sagrado feminino não aceita mais seu antigo papel (de par romântico e refém do vilão) e torna-se também protagonista/narradora de sua identidade e de suas narrativas. A jornada da heroína cria um roteiro de desenvolvimento interior (inclusive e principalmente para os homens e/ou para os protagonistas masculinos). O que é realmente importante é mudar (e/ou conjugar) os valores masculinos (a conquista do poder, a justiça e a verdade acima dos interesses) por valores femininos (o cuidado, a solidariedade, a afetividade) e não simplesmente trocar o gênero dos protagonistas.



Referências bibliográficas

CAMPBELL, J. O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990.

____ O herói de mil faces. 11. ed. São Paulo: Cultrix; Pensamento, 1995.

DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, l998.

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Mil Platôs – Esquizofrenia e Capitalismo, v. 1. Rio de Janeiro: ed. 34, 1980.

FOUCAULT, Michel. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982.

____ A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FREUD, S. (1913). Totem e Tabu. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. 13. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 11-125.

GOMES, Marcelo Bolshaw. O Encantador de Serpentes – Comunicação e estudos da mídia. Natal: 2010. Disponível em <https://drive.google.com/file/d/0BxCIeuw8sUXITFNmLUVHQldoQjA/view?usp=sharing> último acesso em 16/07/2015.

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____ Autopoesis & as três mídias:máquina mimética e teoria sistêmica da comunicação. Revista Temática. Volume 18; Número 03. João Pessoa: UFPB, 2022. p. 96

MARTINEZ, M. Jornada do herói: a estrutura mítica na construção de histórias de vida em jornalismo. São Paulo: Annablume, 2008.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

______ Assim falava Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. 3ª Edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

OSHO. Liberdade – a coragem de ser você mesmo. Tradução Denise de C. Rocha Delela. Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2006.

REICH, Wilhelm. O Assassinato de Cristo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983.



1Jornalista, professor e doutor em ciências sociais.

2 O que faz um herói? - de Matthew Winkler <https://youtu.be/Stdko2NIUNI>

3Hoje tornou-se lugar comum a crítica ao cristianismo como algo desnecessário ao desenvolvimento do sujeito, mas há vários exemplos que validam a ideia de sua inevitabiidade. Uma narrativa relevante nesse sentido é a conversão ao cristianismo do psicanalista marxista W. Reich, em seu último livro, O assassinato de Cristo (1983). Ele entende a sujeição cristã do auto-sacrifício como um aprofundamento da subjetividade necessário ao desenvolvimento, um mundo sem bode expiatório ou macho-alfa. Acontece que essa narrativa é tão trágica e aterradora, que os próprios cristãos (para não sentir a catarse e a culpa de matar seu salvador) precisam de um Judas para malhar durante a semana santa.

4Deleuze e Guatarri (1980) também elaboraram o termo 'espírito de matilha' em oposição ao 'espírito de rebanho' para caracterizar o comportamento de contestação e independência dos indivíduos parcialmente excluídos do condicionamento grupal.

5O artigo Hamlet e a hermenêutica – Das muitas interpetações da triste estória do príncipe da Dinamarca (GOMES, 2016) analisa quatro adaptações de Hamlet, de William Shakespeare, para o cinema: Laurence Olivier (1948), Franco Zeffirelli (1990), Kenneth Branagh (1996) e Michael Almereyda (2000). Aplicando o método do quadrado narrativo de Greimas, o texto discute as diferentes interpretações da estória e sua relação com a psicanálise (Freud, Jung e Lacan) e com a hermenêutica (Foucault).

6Dante no Inferno (2011b) compara o texto da Divina Comédia, escrita por Dante Alighierie no século XIV, com o DVD de animação “Dante’s Inferno: um épico animado” (2000), ressaltando a síntese mitológica realizada dentro da narrativa em um enquadramento ético cristão nos dois trabalhos e o acréscimo na narrativa digital de subenredos de Dante das Cruzadas e de combates com criaturas infernais, que não existiam na narrativa original. O texto retoma a discussão do sujeito trágico moderno, iniciada no texto anterior, observando principalmente três modelos de representação do eixo ego-self: na literatura, em que o protagonista é o narrador-autor, Dante, o escritor; no vídeo de animação, em que o protagonista é o narrador na primeira pessoa; e no videogame, em que o protagonista é um avatar do jogador.


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