sábado, 19 de março de 2022

BRINCAR, ESTUDAR, JOGAR

 



Notas sobre o lúdico e gamificação



INTODUÇÃO

Uma pergunta simples: a vida é um jogo? A vida é algo que disputamos, em que há vencedores e perdedores? Acredito que não. Mesmo se pensarmos em competição de gens e em 'seleção natural', o critério evolucionista de Darwin da sobrevivência do 'mais forte' já foi substituído pelo critério da capacidade de adaptação e resiliência (Lamarck). A vida seleciona os mais flexíveis e resistentes.

Mas, também compreendo que a vida vem se tornando uma competição. A vida moderna é uma aventura. Somos todos heróis a procura do grande amor e da realização no mundo. Por isso, tornamos nossas vidas narrativas de risco. Risco de vida, risco de não sermos amados, de não sermos bem sucedidos. Risco do fracasso dos perdedores.

A vida está se tornando um jogo. Nesse contexto, estamos vivendo um processo de 'Gamificação' das relações sociais e das interações: a aplicação das estratégias e do design competivivo dos jogos em outras práticas sociais, com o objetivo de aumentar o engajamento dos participantes.

A gamficação das relações se dá a nível estrutural, como disputas entre instituições sociais; como se a sociedade se tornasse um imenso mercado. Já a gamificação das interações se dá no micro espaço do cotidiano, acirrando a competição entre as pessoas em torno diferentes objetos de disputa, como “se a vida fosse um jogo”.

Uma boa introdução geral sobre o tema é o site O que é Gamificação e como ela aumenta o engajamento, da PUC paranaense, ressaltando as aplicações do conceito na administração de empresas e na educação - segundo Yu-Kai Chou, especialista em Behavioral Design e inventor da metodologia Octalysis Framework.

O conceito teve grande repercussão na área de comunicação: o livro Gamificação em Debate (SANTAELLA, 2018) traz um coletânea importante de autores de diferentes áreas, demonstrando que a atividade lúdica aplicada a outras atividades não promove apenas engajamento motivacional, mas, sobretudo, em mudanças profundas de comportamento. Para esses autores, a gamificação retoma os aspectos lúdico e criativo que todos têm incubado, ampliando a qualidade cognitiva do aprendizado e do desempenho.

Por outro lado, A Colonização do Jogo pelo Capitalismo Neoliberal, o dossiê antigamificação da revista contracampo (2021) vê o processo de modo colonizador e exclusor da maioria, uma vez que apenas as elites têm acesso aos jogos eletrônicos, à robótica e a um ensino mais individualizado.

Há também o trabalho do professor Marcos Nicolau (2018a, 2018b, 2018c, 2018d, 2019, 2021) da UFPB sobre ludosofia - conceito que desloca o foco da gamificação de um artíficio de engajamento motivacional para o aprendizado existencial dos jogos em si. Por que jogar? Jogar ensina a viver, a perder, a ganhar, a lidar com as emoções, a ser ético - independentemente do conteúdo que está sendo ensinado de forma colateral.

Em outro momento, detalharemos cada uma dessas três perspectivas. Agora nossa questão aqui é - levando em conta os prós, os contras e os dialéticos - pensar da perspectiva pedagógica, como formar protagonistas, desenvolvendo competências e habilidades socioemocionais através de jogos? E, do ponto de vista social: os jogos podem, ao contrário do que se pensa, contribuir para construção de sua sociedade mais solidária e menos competitiva? E ainda, em uma perspectiva pessoal: Como transformar a própria vida em uma aventura criativa? Como inserir a 'incerteza lúdica' em nossas vidas de modo decolonial e criativo?

Os gregos classificavam os jogos segundo o acaso.

  • Agon, os Jogos de Azar (a roleta, por exemplo). O ruído aqui é Objetivo e equivale ao acaso. Calcula-se a probabilidade (1/6 de chances em jogo de dados, por exemplo) e compara-se com os resultados empíricos. Obtém-se, então, um quadro analógico entre as condições iniciais e os resultados.

  • Alea, os Jogos de Adivinhação (como o jogo de búzios). O ruído é Subjetivo e dificulta a comunicação com o futuro ou com os espíritos. Aqui não existe um "resultado errado" ou discrepante do modelo, todo ruído é, por definição, ignorância do receptor que não consegue decodificar a mensagem.

  • Mimicry, os Jogos de Performance são aqueles em que o desempenho individual é determinante. O ruído aqui é, em parte ambiental, em parte cognitivo. O golfe, o surf e o "jogo de paciência" são alguns dos jogos que combinam acaso e autoconhecimento. Para estudar tais jogos é preciso tanto considerar as variações e discrepâncias probabilísticas de cada jogo (compreendido como um conjunto de regras e possibilidades lógicas) como também os diferentes níveis de intencionalidade e consciência dos jogadores.

  • E, finalmente, Ilynx, os Jogos Competitivos, que tanto podem ser de estratégia pura (como o xadrez, por exemplo); como baseados na força, na velocidade ou em outras qualidades físicas e psicológicas. Estes jogos é que geralmente são estudados na chamada Teoria de Jogos de Soma Zero. O ruído aqui é Intersubjetivo e consiste em uma forma enganar o adversário ou de ser enganado por ele.

Na prática a maioria dos jogos é uma combinação dessas modalidades ideais. Um jogo de pôquer ou de futebol implica tanto em sorte (ou escapar ao ruído objetivo), assertividade (ou não se confundir com o próprio ruído subjetivo) e blefe (ou enganar e não ser enganado pelo ruído intersubjetivo). Nesta classificação, o interessante é a diferença de dois tipos de ruído. Nos primeiros tipos de jogos (de Azar, de Adivinhação e de Performance) o ruído resulta de nossa própria ignorância e corresponde à relação entre o homem e a natureza; enquanto os jogos competitivos (ou de soma zero) o ruído é utilizado para enganar o adversário e corresponde a relação dos homens entre si (WIENER, 1954).

Portanto não cabe indagar se é o jogo antecede o conflito, ou se ele é uma solução amistosa para disputa de interesses, ou se o conflito é um jogo que saiu das regras do campo em que foi gerado; ou, ao contrário: se o universo simbólico (incluindo os jogos) é uma mentira criada para revestir as relações de poder. Apenas uma parte dos jogos é competitiva e eles, no conjunto, simulam situações de conflito (e não as escondem, justificam ou substituem). Os jogos são virtualização das lutas.

A teoria matemática dos Jogos é a análise lógica de qualquer situação na qual apareça um conflito de interesses, com a intenção de encontrar as opções ótimas para que, nas circunstâncias determinadas, consiga-se o resultado desejado.

A teoria dos jogos (baseada na “Escolha Racional” - como dizem os cientistas políticos) tem três gerações diferentes: Von Neumann & Morgenstern (1944), criadores da versão econômica de jogadores com interesses/necessidades semelhantes; Anderson & Moore (1962), responsáveis versão mais política, que passa a levar em conta, entre outros aspectos, o próprio observador externo como parte do jogo; e, finalmente, Robert Aumann (1987), responsável pela noção de racionalidade bayesiana e pela ampliação da incerteza no cálculo das escolhas.

Porém, a completa descontextualização social cultural dos jogadores fez com que a teoria matemática dos jogos fosse abandonada. Assim, não basta entender o lado lógico dos jogos, é preciso também compreender o lado lúdico da linguagem, seu efeito de sentido simbólico estrutural em relação à cognição e ao discurso.

Orlandi (1980) sugere um modelo tipológico dos discursos segundo a participação dos interlocutores na produção do Sentido.

  • Discurso autoritário - O emissor impõe as suas necessidades de transmissão à realidade-referente da linguagem. O discurso tende à ‘paráfrase’, ou seja, à repetição da identidade do sentido e da ordem subjacente à sua transmissão. O resto é ‘ruído’. Esta tendência à causalidade caracteriza a função reflexiva da linguagem.

  • Discurso lúdico - O receptor (ou a percepção) se apropria da realidade-referente, submetendo a transmissão a fatores aleatórios e/ou às necessidades de desenvolvimento da linguagem. O discurso aqui tende à polissemia e à multiplicidade do sentido. Esta tendência à irracionalidade caracteriza a função simbólica da linguagem. 

  • Discurso Polêmico - O sentido é construído pela reversibilidade dialógica entre os polos interlocutores da linguagem. O discurso, neste caso, é uma ‘tensão’ entre a paráfrase e a polissemia, entre a identidade e a multiplicidade do sentido. Esta tensão caracteriza, devido ao seu efeito estruturante do sentido, a função compreensiva da linguagem.

Toda imposição de realidade referencial e toda linguagem instituída pelo emissor é discurso autoritário, em oposição à semiose absoluta do receptor, os sonhos e o simbólico, o discurso lúdico. Isso aponta para uma discrepância estrutural entre o método científico e o objeto lúdico, uma inadequação entre brincar e estudar.

Norval Baitello Jr (1997, 58), a partir das ideias de Walter Benjamin (1985), afirma que essa dificuldade metodológica apenas espelha a dicotomia cultural e cognitiva entre o mundo adulto (e a lógica das "coisas necessárias") e o universo infantil (e do "aparentemente supérfluo").

Winnicott (1975) é o grande estudioso do Brincar e deste universo como um espaço alternativo à realidade imposta pela cultura. A alfabetização e o aprendizado das quatro operações matemáticas básicas exige concentração e disciplina. Com elas, surge o mundo sério dos adultos, em que os atos têm consequências e o lúdico é visto como uma irresponsabilidade.

Edgar Morin (1979:116-117) crê que a construção histórica do Homo Sapiens (homem do saber racional) teve como efeito colateral o (sub)desenvolvimento do Homo Demiens (homem-louco). O primeiro corresponde ao universo adulto e o último, ao mundo da desordem e irracionalidade reprimida no inconsciente em seus diferentes aspectos.

Vilém Flusser (1998) elabora a noção de 'homo ludens', como a superação dessa dicotomia entre razão e loucura e, acrescentamos, como um retorno ao nossa criança interior. Além disso, Flusser caracteriza o 'modo de ser brasileiro' como um protótipo global do homo ludens, que não se identifica nem com a vitória dos colonizadores nem a derrota dos colonizados, mas tem como estratégia de longo prazo a resistência criativa à aculturação colonizadora. Somos um exemplo para o mundo!

Porém foi Ivan Bystrina (1995) quem melhor definiu o papel cognitivo da atividade lúdica em relação ao pensamento lógico. Para ele, há três níveis inter-relacionados de codificação de mensagens.

O código primário, formado através de sinais simples e se organizam a partir da experiência e de regras predeterminadas dos sistemas vivos em sua evolução. Chamamos esse código de BRINCAR.

O Código secundário, uma consciência coletiva através de signos construídos a partir de uma estrutura comum, um sistema institucional de cognição coletiva – para o qual é necessário ESTUDAR.

E o Código terciário representa um nível de codificação cultural, para além das instituições sociais, e que constitui em uma “segunda realidade”, construída para perpetuar mensagens para futuras gerações. Esta “segunda realidade” formada por nossos sonhos e desejos profundos está presente no JOGAR e resulta da perda de nexo reconhecível com as necessidades imediatas de sobrevivência. A segunda realidade é o "não-sério" e os jogos são uma das portas deste universo simbólico.

Na perspectiva atual, a classificação de Bystrina equivale a dizer que o Brincar corresponde ao corpo e a mídia primária; o Estudar, à linguagem estruturada e a mídia secundária; e o Jogar, à simulação de risco no futuro e aos meios de comunicação. A segunda realidade tem o objetivo de antecipar e simular situações possíveis de se configurar. É a simulação dos futuros possíveis que fornecem probabilidades para o presente se organizar.

Conclusão

A noção de 'sociedade de risco' (BECK; LASH; GIDENS, 1997) estabelece que nossa cultura promove o máximo de autonomia dos indivíduos. Desafiamos a morte para nos tornarmos pessoas melhores, com corpos mais capacitados e mentes mais disciplinadas.

Atualmente, o aprendizado está se 'gamificando', isto é, tornando-se lúdico e competitivo. As antigas disciplinas estão se tornando 'narrativas seriadas ', em que cada aula é um episódio (representando um conteúdo específico) e um capítulo de um arco narrativo maior (correspondendo a um estágio de um conjunto de conteúdos cumulativos). As avaliações são desafios para que o aluno assimile o conteúdo específico e avance em relação ao conjunto de conhecimentos sequenciais. A gamificação representa a inserção do risco controlado – a incerteza lúdica - no aprendizado e na própria vida. Para tanto, não é preciso muita tecnologia. Basta viver feliz e consciente das próprias limitações, mas sempre buscando por desafios que possibilitem transcendê-las.

A vida não é um jogo entre máquinas calculadoras programadas com objetivos variados. Somos tão irracionais que essa metáfora não nos cai bem. Além disso, nem todas disputas são amistosas. Em um jogo, o objetivo é vencer o adversário. Em uma luta, o objetivo é derrotar e até destruir o inimigo. A vida não é um jogo. Os jogos é que são simulações da vida. A grande diferença entre a vida e o jogo são seus riscos. Na vida, há o risco de morre e de perdas irreversíveis. No jogo, o perigo é não ser amado, perder a confiança em si, as posses, a naturalização da inferioridade, a honra.

A vida não é um jogo, mas está se tornando um. E como será, dependerá de nossa própria capacidade de jogar.


Referências bibliográficas

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