sábado, 5 de março de 2022

100 ANOS DE PASOLINI

No dia 2 de novembro de 1975, Pier Paolo Pasolini foi assassinado, em um terreno baldio, em uma praia tranquila próxima a Ostia. Seu corpo tinha o rosto desfigurado. Os motivos de seu assassinato continuam gerando polêmica até hoje, sendo associados a crime político ou um mero latrocínio. O cineasta foi assassinado por um garoto de programa, que segundo as autoridades italianas, tinha o intuito de assaltá-lo. Porém, há indícios importantes que sugerem a possibilidade de crime político (1).

Pasolini era um artista solitário, um homossexual assumido, um intelectual engajado. Poeta, romancista, autor de intervenções jornalísticas, ensaios críticos e teóricos. De formação comunista, começa no cinema como auxiliar de Fellini no roteiro de Noites de Cabíria e, em 1960, estreia seu primeiro filme, Accatone, na estética do neo realismo italiano. Em 67, desiludido com o marxismo, concebe um “cinema de poesia”, oposto a “prosa linear do cinema clássico”, enfatizando a dimensão mítica e trágica da vida. Dessa concepção surgirão filmes como Édipo Rei, Medeia, Pocilga e Teorema. E a transposição do mito para vida cotidiana, do simbólico para ordem social, do sonho para realidade.

Lahud (1993) enumera as características dessa proposta de “poesia”: câmera fixa, panorâmicas simétricas, o contraste entre luz e sombra, a frontalidade absoluta dos planos, a alternância brusca entre planos gerais e planos fechados/detalhes e, principalmente, a recusa ao plano-sequência (ou a representação da continuidade de tempo). Tais procedimentos conferem à imagem uma desnaturalização e conduzem o receptor à percepção de um tempo mítico, sagrado, cíclico.

"Isso porque o interesse do cinema, para ele, era o de ser uma escritura diretamente ligada ao real, uma forma de captar e de revelar a realidade como uma linguagem (portanto desnaturalizá-la) - cortando e isolando planos (daí seu caráter explicitamente "fetichista") no grande "plano-sequência ininterrupto da vida". Disso procede, em definitivo, uma das obras cinematográficas mais perturbadoras e audaciosas do século XX: não apenas um autêntico cinema autoral (ou o que ele designava, para se distanciar das normas narrativas do cinema comercial corrente, como "cinema de poesia"), mas ainda uma arte eminentemente paradoxal, ao mesmo tempo primitiva e maneirista, ao mesmo tempo realista (no seu amor concreto, sua atitude de fazer perceber a "linguagem dos corpos") e hiper-cultivada (em sua maneira de convocar e de misturar, no segundo grau, elementos originários da pintura antiga, da música clássica ou popular, da literatura, em uma soberba impureza)." (2) 

Considerado por muitos críticos como sua obra-prima, o filme Teorema conta como um anjo (Eros) entra em uma família burguesa e destrói, pouco a pouco, seus valores morais. O Erotismo assume um papel revolucionário: o anjo seduz a esposa, o filho, o pai ...

Em 1970, dando seqüência ao seu erotismo revolucionário, Pasolini inicia a Trilogia da Vida - Il Decameron (Decameron), I Raconti di Canterbury (Os contos de Canterbury) e Il fiore delle mille e una notte (As flores das mil e uma noites) - em que retrata uma sexualidade de tradição homoerótica, que remonta aos poetas latinos e gregos da antiguidade, para subverter “as convenções morais da burguesia”. Essa trilogia foi filmada na Etiópia, Índia, Irã, Nepal e Iêmen. Pasolini gostava de trabalhar com atores amadores e do povo. Posteriormente, os filmes eram dublados (e muito mal dublados, diga-se de passagem) em italiano. Na Trilogia da Vida, Pasolini valorizava a liberdade sexual e a sensualidade sem culpa de um mundo popular, burlesco, não ainda subjugado pelo puritanismo burguês.

Mas, o Eros vira Thanatos! Ironicamente, a Trilogia da Vida, pelo sucesso de público, estimulará a produção de filmes pornográficos na Itália. Os próprios filmes de Pasolini foram tachados de pornográficos e proibidos em vários países (inclusive no Brasil, durante a ditadura militar) e, o mais importante, o erotismo revolucionário de Pasolini foi absorvido pelo sistema. Antes da contracultura, o corpo e o erotismo eram focos de resistência ao poder, mas a sociedade de consumo os prostituiu (ou transformou-os em mercadorias). O sexo não é mais um escândalo, sua interdição não é mais tabu (portanto sua transgressão não é mais um sagrado anti-puritano). Pasolini, então, no início dos anos 70, renega os filmes da trilogia, afirmando que eles foram apropriados erroneamente pela indústria cultural, que os classificava como pornográficos.

Diante da absorção conservadora das mídias na cultura de massas, que transformou o erotismo em pornografia, Pasolini, trocou a representação idealizada do sexo clássico por uma visão denunciadora de sua violência. É quando Pasolini filmará sua obra mais radical: Saló ou os 120 dias de Sodoma, de 1975, superando qualquer coisa que tenha sido feita antes dele em termos de transgressão estética e moral. 

Baseado na obra do Marquês de Sade, o filme conta a estória de quatro homens que compram meninos e meninas para, enquanto esperam a queda iminente do regime fascista que os sustentam na pequena república de Saló, praticam o que de pior um ser humano pode fazer com outro. Em um suntuoso castelo, cercadas de seguranças armados e empregados, prostitutas contam séries de estórias eróticas que são encenadas pelos jovens escravos sexuais para o deleite dos quatro senhores: há o ciclo de manias, o de merda, o do sangue ... Porém, mais do que as torturas físicas o que chama atenção são as humilhações psicológicas, os constrangimentos morais, o sofrimento de serem vítimas inocentes e indefesas, objetos de crueldade por simples prazer e diversão. 

Aliás, Pasolini promove uma inversão notável da intenção do texto original: enquanto o texto de Sade é sádico (desculpem a redundância), o filme de Pasolini é masoquista, isto é, coloca o sujeito-narrador na situação de vítima e não na de agressor. O filme não nos incita à violência (como normalmente fazem os filmes violentos da cultura de massas), mas sim aos sentimentos de vergonha e culpa.

“Alegoria sinistra do fetichismo da sociedade de consumo”, Saló teve seu equivalente e clímax com o assassinato de Pasolini, no mesmo ano de 1975, e contribuiu para fazer do cineasta uma verdadeira lenda negra – transpondo o mito para cotidiano em imagens como em seus filmes, a do anjo do mal, a do herege perseguido, a do último grande artista maldito, sempre colocando em crise e subvertendo as concepções de mundo dominantes, sempre dando visibilidade ao não-dito das representações convencionais, sempre fazer surgir aquilo que foi repelido do consenso social e cultural - sem nada ceder, jamais, sobre a sua singularidade.

Na perspectiva de Pasolini, o que o fascismo histórico fracassou em realizar, o poder conjugado do mercado e das mídias opera docemente (na servidão voluntária): um verdadeiro "genocídio cultural", no qual o povo desaparece em uma massa indiferenciada de consumidores submissos e alienados. É, diz ele, o "nivelamento brutalmente totalitário do mundo", "a ordem degradante da horda". A televisão se torna, para ele, o principal inimigo, a ponto de pregar sua “destruição”.

Também é preciso comparar Pasolini com Michel Foucault. Não apenas por serem homossexuais militantes (que interpretam a própria opção sexual como uma escolha política de se opor ao regime disciplinar do corpo), mas, sobretudo, por viverem e perceberem a passagem do regime baseado na repressão sexual para o regime de controle através do consumo. Para Foucault, “É a lei quem produz a delinquência”. As leis não são regras normativas para regulamentar a vida social em tempos de paz, mas a própria guerra das estratégias de uma determinada correlação de forças. A lei não é expressão contratual do poder, ela é o próprio poder que descreve, analisa e classifica as condutas. A produção de aberrações é engendrada pelo próprio sistema social e também faz parte da estrutura de controle. O controle não é apenas o dispositivo restritivo que gera a aberração, mas também o seu resultado positivo: a transgressão e a mudança dos padrões de organização. A sexualidade, para Foucault, é um campo em que essa produção de comportamento aberrante é bem visível: não há diretamente uma repressão sexual, mas interjeição, isto é, somos incitados ao sexo através de sua aparente interdição. Depois, da liberação sexual dos anos 60 e, mais recentemente a AIDS, o centro da correlação de forças se deslocou da genitalidade para a oralidade, e o consumo de substâncias de efeito psíquico passou a ser o foco deste tipo de mecanismo de proibição/transgressão. Somos hipnotizados a consumir pelos meios de comunicação e proibidos de fazê-lo por diferentes níveis de autoridade.

"(...) a questão das drogas e da dependência química. A noção foucaultiana de ‘modo de sujeição’ nos sugere que o poder tornou-se mais bioquímico que microfísico e que sua estratégia atual consiste na produção hipócrita de uma sociedade de viciados. Álcool, nicotina, cafeína, açúcar, remédios, mas, sobretudo, ilusões: a TV. Aliás, o consumo audiovisual é a única coisa gratuita em nossa sociedade. Ele interage diretamente com a alimentação formando um conjunto de necessidades e, principalmente, mantendo o indivíduo em níveis cada vez mais altos de stress emocional. Após séculos de sujeição sexual, os mecanismos de poder geram agora uma nova tecnologia de controle: as formas psicoquímicas de subjetivação do sentimento de morte. A dependência química e as redes de comunicação fazem parte de uma única estratégia." (GOMES, 2000, 43)

Ao se apoiar sobre o erotismo tradicional contra o regime disciplinar da modernidade industrial, Pasolini demonstrou que é possível fazer um cinema esteticamente diferente. É claro que, após mais de 30 anos após seu assassinato, seu erotismo revolucionário não representa mais nenhum perigo político para o sistema. Ao contrário, o erotismo tornou-se consumista, adaptado e conservador. Por outro lado, a atitude política e artística de Pasolini é mais atual que nunca, pois, combate a crueldade moderna sem retornar às mentiras da tradição. O pós-moderno atual é um retorno parcial ao universo pré-moderno, seja ele clássico, medieval ou oriental – como na trilogia da Vida.


NOTAS

(1) O depoimento contraditório do acusado dá margens a muitas dúvidas. Por que ele assumiu a responsabilidade pela morte do cineasta sozinho, quando havia evidências da participação de outras pessoas? Por que a justiça italiana se contentou com a versão do michê, ignorando outras possibilidades? Há também suspeitas sobre o desaparecimento e morte de outras pessoas que tentaram se aprofundar na investigação. O caso gerou recentemente um filme sobre o assunto, Pasolini: Um delito italiano, de Marco Tullio Giordana.

(2) Guy Scarpetta, Tradução: Carolina Massuia de Paula < http://diplo.uol.com.br/2006-02,a1269 >

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