segunda-feira, 7 de outubro de 2019

THE JOKER


A comunidade das mágoas e as elites psicopatas
Ser vítima é empoderar o Outro em detrimento de Si e ser psicopata é empoderar ao ego em detrimento dos outros. 
A condição emocional de vítima é produzida a partir de objetos de ódio e da partilha de ressentimentos em comunidades de afeto. 
O Outro é objeto de ódio, mas também é o herói salvador. Cria-se assim a elite psicopata. Chegam as eleições e as vítimas, incapazes de assumir responsabilidade e orientadas pelo espírito de rebanho, votam nos psicopatas do bem contra os psicopatas do mal, ou vice-versa. Tanto faz.
A ‘cultura de vítimas’ explica a falência da democracia representativa e a ascensão de Trump & Bolsonaro.
A utopia democrática anarquista só é possível sem o pacto entre ovelhas, pastores e lobos; quando cada um matar seu psicopata interior e empoderar a vítima dentro de si. 
O poder é injusto, corruto e violento em virtude do consentimento da maioria silenciosa. Porque a maioria prefere ‘lamber as próprias feridas’ ao invés de se empoderar e dividir o peso do futuro.

A difícil representação do irracional
O filme Joker (no Brasil, Coringa)[1] é estrelado por Joaquin Phoenix como Arthur Fleck, um palhaço fracassado que enlouquece, comete vários crimes e leva ao caos a cidade de Gotham.
O Coringa é uma carta do baralho que pode substituir todas as outras em vários jogos. A palavra ‘coringa’ passou a ser utilizada como adjetivo para um elemento múltiplo que pode substituir outros especializados, como um jogador que joga em várias posições.
A carta não faz parte dos naipes numerados e tem sua origem nos Arcanos Maiores do Tarô, O Louco, que representa o vazio (o número zero) e o eternamente passageiro. Como mito foi associado a deuses mensageiros (Hermes) e mentirosos (Loki), como personagem foi dramatizado como bobo da corte e as tradições cômicas e críticas que deram origem a palhaçaria. ‘Ser palhaço’ significa zombar de si mesmo, em oposição ao comediante, que zomba do outro. A palhaçaria surgiu então como uma forma de crítica indireta ao poder, de dizer a verdade de forma indireta.
Nesse contexto analítico, o personagem Coringa é o avô dos palhaços assassinos, o primeiro a espelhar uma crítica desconcertando a própria palhaçaria, que por detrás da alegria está o desejo de destruição da ordem social. “A alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo” – já nos avisa o ditado popular. O personagem encarna a vingança daquele que, de sofrer bulling e humilhações, passou a adotar a auto depreciação como uma forma engraçada de ser aceito por seus opressores.
As gerações mais recentes não sabem, mas o Coringa não era originalmente o arqui-inimigo de Batman. Ele era apenas mais um entre os muitos vilões bizarros do homem-morcego[2]. Porém, a partir de meados dos anos 80, três narrativas colocam o palhaço do crime em primeiro plano, como o antagonista central de sua história e não apenas de suas estórias: Batman: O Cavaleiro das Trevas (1986) de Frank Miller; A piada mortal (1988), texto de Alan Moore e desenhos de Brian Bolland; e Asylum Arkhaman (1990) roteiro de Grant Morrison, arte de Dave McKean.
Miller e Moore fazem de Batman uma representação heroica de nossa sombra psíquica, de nosso lado mais obscuro. Daí vem, inclusive, o nome 'Cavaleiro das Trevas'. O Coringa continua sendo inimigo do Batman, mas é ele quem o ocupa o lugar de protagonista narrativo da estória, representando a loucura e o caos, enquanto o homem-morcego é seu antagonista narrativo, representando a lei e a ordem, a racionalidade. O Coringa de Moore é mais poético e niilista; o de Miller mais irracional e imprevisível; mas, em ambos o personagem não é movido pelo dinheiro ou pelo poder, mas simplesmente pelo desejo de estabelecer o caos através da violência.
A irracionalidade do Coringa como tema central da narrativa de Batman como anti-herói reaparece na genial estória de Grant Morrison, Asylum Arkhaman (1990). O Asilo Arkham é um manicômio psiquiátrico localizado em Gotham City onde se concentram todos os vilões insanos de Batman[3].
Para compreende melhor esse anarquismo violento do palhaço criminoso, o filme de Todd Phillips / Joaquin Phoenix deseja explicar racionalmente como Artur se transformou neste Coringa arqui-inimigo do Batman. O criminoso crê que é filho bastardo de Thomas Wayne e meio irmão de Bruce (Batman no futuro).
No entanto, toda tentativa de explicar racionalmente um personagem que representa o irracional é redutora. O Coringa tem muitas faces e o filme acaba reduzindo o personagem a um dos aspectos daquilo que ele simboliza. O filme é bom, mas o personagem tornou-se patético e violento, perdeu a alegria inventiva, sua criatividade, o senso de humor que caracterizou outras versões (como a icônica interpretação de Cesar Romero na tele série de 1966 ou a performance de Jack Nicholson no filme de gótico de Tim Burton em 1989; ou mesmo a violência frenética de Heath Ledger nos filmes anteriores da franquia).



[1] Filme norte americano de 2019, dirigido por Todd Phillips, que co-escreveu o roteiro com Scott Silver; produzido pela Village Roadshow Pictures, DC Films, Sikelia Productions, Joint Effort Productions e Green Hat Films e distribuído pela Warner Bros. Pictures, faz parte da DC Black, uma série de filmes baseados nos personagens da DC separados do Universo Estendido DC.
[2] Nos anos 30 e 40, os inimigos eram o Coringa, Mulher Gato (a sensual Selina Kyle), Duas Caras (o ex-promotor Harvey Dent), Pinguim (Oswald Chesterfield Cobblepot), Chapeleiro Maluco (Jervis Tetch), o Charada (Edward Nygma) e o Espantalho (Jonathan Crane). Na Idade de Prata, surgiram Sr. Frio (Victor Fries), Hera Venenosa (Dra. Pamela Lillian Isley) e Ra's Al Ghul (líder da Liga das Sombras e pai de Talia Al Ghul, uma das paixões de Batman). Nos anos 80, temos Killer Croc (Waylon Jones), o Máscara Negra (Roman Sionis) e o Ventríloquo (Arnold Wesker) e seu boneco Scarface. Bane e Harley Quinn (Harleen Quinzel) surgiram nos anos 90, e, em 2003, o Silêncio (Thomas Elliot, amigo de infância de Bruce Wayne).
[3] A narrativa descontínua do roteiro de Morrison e a arte excecional McKean dão a essa Grafic Novel o status de obra de arte. Apesar do sucesso da estória em quadrinhos, Asilo Arkham ainda foi filmado, mas foi adaptado para vídeo game em dois jogos lançados para Xbox 360, Playstation 3 e PC.

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