A comunidade das mágoas e as elites psicopatas
Ser vítima é empoderar o Outro em detrimento de Si e ser psicopata é empoderar ao ego em detrimento dos outros.
A condição emocional de vítima é produzida a partir de objetos de ódio e da partilha de ressentimentos em comunidades de afeto.
O Outro é objeto de ódio, mas também é o herói salvador. Cria-se assim a elite psicopata. Chegam as eleições e as vítimas, incapazes de assumir responsabilidade e orientadas pelo espírito de rebanho, votam nos psicopatas do bem contra os psicopatas do mal, ou vice-versa. Tanto faz.
A ‘cultura de vítimas’ explica a falência da democracia representativa e a ascensão de Trump & Bolsonaro.
A utopia democrática anarquista só é possível sem o pacto entre ovelhas, pastores e lobos; quando cada um matar seu psicopata interior e empoderar a vítima dentro de si.
O poder é injusto, corruto e violento em virtude do consentimento da maioria silenciosa. Porque a maioria prefere ‘lamber as próprias feridas’ ao invés de se empoderar e dividir o peso do futuro.
A difícil representação do irracional
O filme Joker (no Brasil, Coringa)[1] é estrelado por Joaquin Phoenix como Arthur Fleck, um palhaço fracassado
que enlouquece, comete vários crimes e leva ao caos a cidade de Gotham.
O Coringa é uma carta do baralho que
pode substituir todas as outras em vários jogos. A palavra ‘coringa’ passou a
ser utilizada como adjetivo para um elemento múltiplo que pode substituir outros
especializados, como um jogador que joga em várias posições.
A carta não faz parte dos naipes
numerados e tem sua origem nos Arcanos Maiores do Tarô, O Louco, que representa
o vazio (o número zero) e o eternamente passageiro. Como mito foi associado a
deuses mensageiros (Hermes) e mentirosos (Loki), como personagem foi
dramatizado como bobo da corte e as tradições cômicas e críticas que deram
origem a palhaçaria. ‘Ser palhaço’ significa zombar de si mesmo, em oposição ao
comediante, que zomba do outro. A palhaçaria surgiu então como uma forma de
crítica indireta ao poder, de dizer a verdade de forma indireta.
Nesse contexto analítico, o
personagem Coringa é o avô dos palhaços assassinos, o primeiro a espelhar uma
crítica desconcertando a própria palhaçaria, que por detrás da alegria está o
desejo de destruição da ordem social. “A alegria do palhaço é ver o circo pegar
fogo” – já nos avisa o ditado popular. O personagem encarna a vingança daquele
que, de sofrer bulling e humilhações, passou a adotar a auto depreciação como
uma forma engraçada de ser aceito por seus opressores.
As gerações mais recentes não sabem,
mas o Coringa não era originalmente o arqui-inimigo de Batman. Ele era apenas
mais um entre os muitos vilões bizarros do homem-morcego[2].
Porém, a partir de meados dos anos 80, três narrativas colocam o palhaço do
crime em primeiro plano, como o antagonista central de sua história e não
apenas de suas estórias: Batman: O
Cavaleiro das Trevas (1986) de Frank Miller; A piada mortal (1988),
texto de Alan Moore e desenhos de Brian Bolland; e Asylum Arkhaman (1990)
roteiro de Grant Morrison, arte de Dave McKean.
Miller e Moore fazem de Batman uma
representação heroica de nossa sombra psíquica, de nosso lado mais obscuro. Daí
vem, inclusive, o nome 'Cavaleiro das Trevas'. O Coringa continua sendo inimigo do Batman,
mas é ele quem o ocupa o lugar de protagonista narrativo da estória,
representando a loucura e o caos, enquanto
o homem-morcego é seu antagonista narrativo, representando a lei e a ordem, a racionalidade.
O Coringa de Moore é mais poético e niilista; o de Miller mais irracional e imprevisível;
mas, em ambos o personagem não é movido pelo dinheiro ou pelo poder, mas
simplesmente pelo desejo de estabelecer o caos através da violência.
A irracionalidade do Coringa como tema
central da narrativa de Batman como anti-herói reaparece na genial estória de
Grant Morrison, Asylum Arkhaman (1990). O Asilo Arkham é um manicômio
psiquiátrico localizado em Gotham City onde se concentram todos os vilões
insanos de Batman[3].
Para compreende melhor esse
anarquismo violento do palhaço criminoso, o filme de Todd Phillips / Joaquin
Phoenix deseja explicar racionalmente como Artur se transformou neste Coringa
arqui-inimigo do Batman. O criminoso crê que é filho bastardo de Thomas Wayne e
meio irmão de Bruce (Batman no futuro).
No entanto, toda tentativa de
explicar racionalmente um personagem que representa o irracional é redutora. O
Coringa tem muitas faces e o filme acaba reduzindo o personagem a um dos
aspectos daquilo que ele simboliza. O filme é bom, mas o personagem tornou-se
patético e violento, perdeu a alegria inventiva, sua criatividade, o senso de
humor que caracterizou outras versões (como a icônica interpretação de Cesar Romero na tele série de 1966 ou a performance de Jack Nicholson no filme de gótico de Tim Burton em 1989; ou mesmo a violência frenética de Heath Ledger nos filmes anteriores da franquia).
[1] Filme
norte americano de 2019, dirigido por Todd Phillips, que co-escreveu o roteiro
com Scott Silver; produzido pela Village Roadshow Pictures, DC Films, Sikelia
Productions, Joint Effort Productions e Green Hat Films e distribuído pela
Warner Bros. Pictures, faz parte da DC Black, uma série de filmes baseados nos
personagens da DC separados do Universo Estendido DC.
[2] Nos
anos 30 e 40, os inimigos eram o Coringa, Mulher Gato (a sensual Selina Kyle),
Duas Caras (o ex-promotor Harvey Dent), Pinguim (Oswald Chesterfield
Cobblepot), Chapeleiro Maluco (Jervis Tetch), o Charada (Edward Nygma) e o
Espantalho (Jonathan Crane). Na Idade de Prata, surgiram Sr. Frio (Victor
Fries), Hera Venenosa (Dra. Pamela Lillian Isley) e Ra's Al Ghul (líder da Liga
das Sombras e pai de Talia Al Ghul, uma das paixões de Batman). Nos anos 80,
temos Killer Croc (Waylon Jones), o Máscara Negra (Roman Sionis) e o
Ventríloquo (Arnold Wesker) e seu boneco Scarface. Bane e Harley Quinn (Harleen
Quinzel) surgiram nos anos 90, e, em 2003, o Silêncio (Thomas Elliot, amigo de
infância de Bruce Wayne).
[3] A
narrativa descontínua do roteiro de Morrison e a arte excecional McKean dão a
essa Grafic Novel o status de obra de arte. Apesar do sucesso da estória em
quadrinhos, Asilo Arkham ainda foi filmado, mas foi adaptado para vídeo game em
dois jogos lançados para Xbox 360, Playstation 3 e PC.
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