Notas sobre o lúdico
e gamificação
INTODUÇÃO
Uma pergunta simples: a
vida é um jogo? A vida é algo que disputamos, em que há vencedores
e perdedores? Acredito que não. Mesmo se pensarmos em competição
de gens e em 'seleção natural', o critério evolucionista de Darwin
da sobrevivência do 'mais forte' já foi substituído pelo critério
da capacidade de adaptação e resiliência (Lamarck). A vida
seleciona os mais flexíveis e resistentes.
Mas, também compreendo
que a vida vem se tornando uma competição. A vida moderna é uma
aventura. Somos todos heróis a procura do grande amor e da
realização no mundo. Por isso, tornamos nossas vidas narrativas de
risco. Risco de vida, risco de não sermos amados, de não sermos bem
sucedidos. Risco do fracasso dos perdedores.
A vida está se
tornando um jogo. Nesse contexto, estamos vivendo um processo de
'Gamificação' das relações sociais e das interações: a
aplicação das estratégias e do design competivivo dos jogos em
outras práticas sociais, com o objetivo de aumentar o engajamento
dos participantes.
A gamficação das
relações se dá a nível estrutural, como disputas entre
instituições sociais; como se a sociedade se tornasse um imenso
mercado. Já a gamificação das interações se dá no micro espaço
do cotidiano, acirrando a competição entre as pessoas em torno
diferentes objetos de disputa, como “se a vida fosse um jogo”.
Uma
boa introdução geral sobre o tema é o site O
que é Gamificação e como ela aumenta o engajamento,
da PUC paranaense, ressaltando as aplicações do conceito na
administração de empresas e na educação - segundo Yu-Kai Chou,
especialista em Behavioral
Design
e inventor da metodologia Octalysis
Framework.
O
conceito teve grande repercussão na área de comunicação: o livro
Gamificação
em Debate
(SANTAELLA, 2018) traz um coletânea importante de autores de
diferentes áreas, demonstrando que a atividade lúdica aplicada a
outras atividades não promove apenas engajamento motivacional,
mas, sobretudo, em mudanças profundas de comportamento. Para esses
autores, a gamificação retoma os aspectos lúdico e criativo que
todos têm incubado, ampliando a qualidade cognitiva do aprendizado e
do desempenho.
Por
outro lado, A
Colonização do Jogo pelo Capitalismo Neoliberal, o
dossiê antigamificação da revista contracampo
(2021)
vê o processo de modo colonizador e exclusor da maioria, uma vez que
apenas as elites têm acesso aos jogos eletrônicos, à robótica e
a um ensino mais individualizado.
Há
também o trabalho do professor Marcos Nicolau (2018a, 2018b, 2018c,
2018d, 2019, 2021) da UFPB sobre ludosofia
-
conceito que desloca o foco da gamificação de um artíficio de
engajamento motivacional para o aprendizado existencial dos jogos em
si.
Por que jogar? Jogar ensina a viver, a perder, a ganhar, a lidar com
as emoções, a ser ético - independentemente do conteúdo que está
sendo ensinado de forma colateral.
Em
outro momento, detalharemos cada uma dessas três perspectivas. Agora
nossa questão aqui é - levando em conta os prós, os contras e os
dialéticos - pensar da perspectiva pedagógica, como formar
protagonistas, desenvolvendo competências e habilidades
socioemocionais através de jogos? E, do ponto de vista social: os
jogos podem, ao contrário do que se pensa, contribuir para
construção de sua sociedade mais solidária e menos competitiva? E
ainda, em uma perspectiva pessoal: Como transformar a própria vida
em uma aventura criativa? Como inserir a 'incerteza
lúdica'
em nossas vidas de modo decolonial e criativo?
Os gregos classificavam
os jogos segundo o acaso.
Agon, os
Jogos de Azar (a roleta, por exemplo). O ruído aqui é Objetivo e
equivale ao acaso. Calcula-se a probabilidade (1/6 de chances em
jogo de dados, por exemplo) e compara-se com os resultados
empíricos. Obtém-se, então, um quadro analógico entre as
condições iniciais e os resultados.
Alea, os
Jogos de Adivinhação (como o jogo de búzios). O ruído é
Subjetivo e dificulta a comunicação com o futuro ou com os
espíritos. Aqui não existe um "resultado errado" ou
discrepante do modelo, todo ruído é, por definição, ignorância
do receptor que não consegue decodificar a mensagem.
Mimicry, os
Jogos de Performance são aqueles em que o desempenho individual é
determinante. O ruído aqui é, em parte ambiental, em parte
cognitivo. O golfe, o surf e o "jogo de paciência" são
alguns dos jogos que combinam acaso e autoconhecimento. Para estudar
tais jogos é preciso tanto considerar as variações e
discrepâncias probabilísticas de cada jogo (compreendido como um
conjunto de regras e possibilidades lógicas) como também os
diferentes níveis de intencionalidade e consciência dos jogadores.
E, finalmente, Ilynx,
os Jogos Competitivos, que tanto podem ser de estratégia pura (como
o xadrez, por exemplo); como baseados na força, na velocidade ou em
outras qualidades físicas e psicológicas. Estes jogos é que
geralmente são estudados na chamada Teoria de Jogos de Soma Zero. O
ruído aqui é Intersubjetivo e consiste em uma forma enganar o
adversário ou de ser enganado por ele.
Na prática a maioria
dos jogos é uma combinação dessas modalidades ideais. Um jogo de
pôquer ou de futebol implica tanto em sorte (ou escapar ao ruído
objetivo), assertividade (ou não se confundir com o próprio ruído
subjetivo) e blefe (ou enganar e não ser enganado pelo ruído
intersubjetivo). Nesta classificação, o interessante é a diferença
de dois tipos de ruído. Nos primeiros tipos de jogos (de Azar, de
Adivinhação e de Performance) o ruído resulta de nossa própria
ignorância e corresponde à relação entre o homem e a natureza;
enquanto os jogos competitivos (ou de soma zero) o ruído é
utilizado para enganar o adversário e corresponde a relação dos
homens entre si (WIENER, 1954).
Portanto não cabe
indagar se é o jogo antecede o conflito, ou se ele é uma solução
amistosa para disputa de interesses, ou se o conflito é um jogo que
saiu das regras do campo em que foi gerado; ou, ao contrário: se o
universo simbólico (incluindo os jogos) é uma mentira criada para
revestir as relações de poder. Apenas uma parte dos jogos é
competitiva e eles, no conjunto, simulam situações de conflito (e
não as escondem, justificam ou substituem). Os jogos são
virtualização das lutas.
A teoria matemática
dos Jogos é a análise lógica de qualquer situação na qual
apareça um conflito de interesses, com a intenção de encontrar as
opções ótimas para que, nas circunstâncias determinadas,
consiga-se o resultado desejado.
A teoria dos jogos
(baseada na “Escolha Racional” - como dizem os cientistas
políticos) tem três gerações diferentes: Von Neumann &
Morgenstern (1944), criadores da versão econômica de jogadores com
interesses/necessidades semelhantes; Anderson & Moore (1962),
responsáveis versão mais política, que passa a levar em conta,
entre outros aspectos, o próprio observador externo como parte do
jogo; e, finalmente, Robert Aumann (1987), responsável pela noção
de racionalidade bayesiana e pela ampliação da incerteza no cálculo
das escolhas.
Porém, a completa
descontextualização social cultural dos jogadores fez com que a
teoria matemática dos jogos fosse abandonada. Assim, não basta
entender o lado lógico dos jogos, é preciso também compreender o
lado lúdico da linguagem, seu efeito de sentido simbólico
estrutural em relação à cognição e ao discurso.
Orlandi (1980) sugere
um modelo tipológico dos discursos segundo a participação dos
interlocutores na produção do Sentido.
Discurso
autoritário - O emissor impõe as suas necessidades de
transmissão à realidade-referente da linguagem. O discurso tende à
‘paráfrase’, ou seja, à repetição da identidade do sentido e
da ordem subjacente à sua transmissão. O resto é ‘ruído’.
Esta tendência à causalidade caracteriza a função reflexiva da
linguagem.
Discurso
lúdico - O receptor (ou a percepção) se apropria da
realidade-referente, submetendo a transmissão a fatores aleatórios
e/ou às necessidades de desenvolvimento da linguagem. O discurso
aqui tende à polissemia e à multiplicidade do sentido. Esta
tendência à irracionalidade caracteriza a função simbólica da
linguagem.
Discurso
Polêmico - O sentido é construído pela reversibilidade
dialógica entre os polos interlocutores da linguagem. O discurso,
neste caso, é uma ‘tensão’ entre a paráfrase e a polissemia,
entre a identidade e a multiplicidade do sentido. Esta tensão
caracteriza, devido ao seu efeito estruturante do sentido, a função
compreensiva da linguagem.
Toda
imposição de realidade referencial e toda linguagem instituída
pelo emissor é discurso autoritário, em oposição à semiose
absoluta do receptor, os sonhos e o simbólico, o discurso lúdico.
Isso aponta para uma
discrepância estrutural entre o método científico e o objeto
lúdico, uma inadequação entre brincar e estudar.
Norval
Baitello Jr (1997, 58), a partir das ideias de Walter Benjamin
(1985), afirma que essa dificuldade metodológica apenas espelha a
dicotomia cultural e cognitiva entre o mundo adulto (e a lógica das
"coisas necessárias") e o universo infantil (e do
"aparentemente supérfluo").
Winnicott (1975) é o
grande estudioso do Brincar e deste universo como um espaço
alternativo à realidade imposta pela cultura. A alfabetização e o
aprendizado das quatro operações matemáticas básicas exige
concentração e disciplina. Com elas, surge o mundo sério dos
adultos, em que os atos têm consequências e o lúdico é visto como
uma irresponsabilidade.
Edgar Morin
(1979:116-117) crê que a construção histórica do Homo Sapiens
(homem do saber racional) teve como efeito colateral o
(sub)desenvolvimento do Homo Demiens (homem-louco). O primeiro
corresponde ao universo adulto e o último, ao mundo da desordem e
irracionalidade reprimida no inconsciente em seus diferentes
aspectos.
Vilém Flusser (1998)
elabora a noção de 'homo ludens', como a superação dessa
dicotomia entre razão e loucura e, acrescentamos, como um retorno ao
nossa criança interior. Além disso, Flusser caracteriza o 'modo de
ser brasileiro' como um protótipo global do homo ludens, que não se
identifica nem com a vitória dos colonizadores nem a derrota dos
colonizados, mas tem como estratégia de longo prazo a resistência
criativa à aculturação colonizadora. Somos um exemplo para o
mundo!
Porém foi Ivan
Bystrina (1995) quem melhor definiu o papel cognitivo da atividade
lúdica em relação ao pensamento lógico. Para ele, há três
níveis inter-relacionados de codificação de mensagens.
O código primário,
formado através de sinais simples e se organizam a partir da
experiência e de regras predeterminadas dos sistemas vivos em sua
evolução. Chamamos esse código de BRINCAR.
O Código
secundário, uma consciência coletiva através de signos construídos
a partir de uma estrutura comum, um sistema institucional de cognição
coletiva – para o qual é necessário ESTUDAR.
E o Código
terciário representa um nível de codificação cultural, para além
das instituições sociais, e que constitui em uma “segunda
realidade”, construída para perpetuar mensagens para futuras
gerações. Esta “segunda realidade” formada por nossos sonhos e
desejos profundos está presente no JOGAR e resulta da perda de nexo
reconhecível com as necessidades imediatas de sobrevivência. A
segunda realidade é o "não-sério" e os jogos são uma
das portas deste universo simbólico.
Na
perspectiva atual, a classificação de Bystrina equivale a dizer que
o Brincar corresponde ao corpo e a mídia primária; o Estudar, à
linguagem estruturada e a mídia secundária; e o Jogar, à simulação
de risco no futuro e aos meios de comunicação. A segunda realidade
tem o objetivo de antecipar e simular situações possíveis de se
configurar. É a simulação dos futuros possíveis que fornecem
probabilidades para o presente se organizar.
Conclusão
A noção de 'sociedade de risco' (BECK; LASH; GIDENS,
1997) estabelece que nossa cultura promove
o máximo de autonomia dos indivíduos. Desafiamos a morte para nos
tornarmos pessoas melhores, com corpos mais capacitados e mentes mais
disciplinadas.
Atualmente,
o aprendizado está se 'gamificando', isto é, tornando-se lúdico e
competitivo. As antigas disciplinas estão se tornando 'narrativas
seriadas ', em que cada aula é um episódio (representando um
conteúdo específico) e um capítulo de um arco narrativo maior
(correspondendo a um estágio de um conjunto de conteúdos
cumulativos). As avaliações são desafios para que o aluno assimile
o conteúdo específico e avance em relação ao conjunto de
conhecimentos sequenciais. A gamificação representa a inserção do
risco controlado – a
incerteza lúdica -
no aprendizado e na própria vida. Para tanto, não é preciso muita
tecnologia. Basta viver feliz e consciente das próprias limitações,
mas sempre buscando por desafios que possibilitem transcendê-las.
A vida não é um jogo entre máquinas calculadoras
programadas com objetivos variados. Somos tão irracionais que essa
metáfora não nos cai bem. Além disso, nem todas disputas são
amistosas. Em um jogo, o objetivo é vencer o adversário. Em uma
luta, o objetivo é derrotar e até destruir o inimigo. A vida não é
um jogo. Os jogos é que são simulações da vida. A grande
diferença entre a vida e o jogo são seus riscos. Na vida, há o
risco de morre e de perdas irreversíveis. No jogo, o perigo é não
ser amado, perder a confiança em si, as posses, a naturalização da
inferioridade, a honra.
A vida não é um jogo, mas está se tornando um. E como
será, dependerá de nossa própria capacidade de jogar.
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