segunda-feira, 31 de maio de 2021

a verdade é pouca

 

QUASE TUDO É MENTIRA


"Pessoas gostam de dizer que a verdadeira batalha é entre bem e mal. A batalha real é entre verdade e mentira." Don Miguel Ruiz in Criminal Minds, S13E05, 00:40.


A mentira é um tema fascinante não só porque ela é um tabu social, mas, sobretudo, porque é algo sempre presente e próximo de todos. Os animais não mentem, disfarçam como camaleão. As máquinas programadas para enganar não têm a criatividade para inventar mentiras novas. Mentir é humano e algo que aprendemos a fazer no curso de nossa socialização. Por outro lado, o ato da fala de 'afirmar um acontecimento que se sabe falso' é um delito ético universal, condenado por dez entre dez culturas humanas. Mentir é praticar um uso moralmente inaceitável da linguagem. Até mesmo a frase “A verdade vos libertará” (João, 08:32) torna-se uma mentira na boca do palhaço assassino. A verdade não está no discurso, mas na intenção do enunciador.


'Será tudo mentira?(2007) estuda as origens ideológicas da teoria da conspiração, concepção de mundo que acredita que o mundo é governado por forças invisíveis. O fio condutor desta investigação é a análise pontual do texto A Arte da Mentira Política (2006) – atribuído a político inglês Jonathan Swift e encontrado em Amsterdã em 1733. Nesse texto, o autor utiliza-se da metáfora de que é a alma é um espelho, em que um lado é de Deus e reflete a verdade, e Outro do diabo, o pai da mentira, e distorce o real, aumentando e diminuindo a representação das coisas. 


Em minha interpretação dA Arte da Mentira, adaptei a imagem do espelho para os hemiférios cerebrais reproduzindo o esquema da caverna de Platão. A mentira, então, seria uma metáfora do simbólico frente ao real, representando a verdade. Durante a exposição e análise das ideias deste texto-guia, aborda-se várias questões políticas atuais: a noção de ideologia, a crise da polaridade esquerda-direita, a imagem pública dos governantes, as ideias de risco e simulação, a modernidade e o papel dos meios de comunicação na democracia contemporânea. 


O saldo final é que a verdade (científica e política) é construída através da definição do falso e do mentiroso. E a objetividade racional só é verdadeira porque consideramos o simbólico como sendo falso. A única brecha crítica seria a sátira, que exagera o subjetivo de uma narrativa primária. Assim, a sátira – não seria um gênero discursivo ou modalidade narrativa, como pensa o estruturalista – mas uma mimese crítica e uma práxis arcaica. Não bastasse o cinismo de admitir que tudo (ou quase tudo) é mentira, o texto coloca a zombaria como a raiz de todas as narrativas. O próprio texto era uma farsa burlesca – o que aproximava o discurso mentiroso do humor, da mímese cômica como crítica.


O paradoxo do mentiroso, em suas várias versões, é que a dupla mentira é verdade. "Essa frase não é verdadeira" - por exemplo. A dupla mentira seria ironicamente uma forma de dizer a verdade. E meu texto seria cúmplice dessa farsa, a representação da representação. 


E, é claro, foi recusado por várias revistas, com pareceres indignados dos pares. Fui acusado de debochar de meus leitores e que meu texto em nada contribuía para o desenvolvimento teórico da comunicação e da hermenêutica. Uns, baseados em Foucault, acreditavam em uma verdade discursiva, construída por critérios politicamente corretos. Para esses, fui cínico e autoritário em nome de uma verdade absoluta. Outros, mais a direita, me consideraram 'relativista' e que reduzia o verdadeiro aos seus contextos. 


Não era minha intenção zombar de ninguém, nem de outras 'contribuições', mas a verdade é que faltou-me coragem para encarar a mentira de frente, como um filosófo cínico deleuziano, sem ilusões platônicas idealistas. E é verdade também que minha imaginação selvagem não permite tal sinceridade, sob ameaça de tristeza profunda de um mundo despido de sonhos. Vamos, então, pelo caminho do meio.


Don Miguel Ruiz (2020) considera a mentira o pecado original. A humanidade decaiu de um sonho coletivo paradisíaco para um universo governado pelo medo através da mentira. A palavra foi o fruto proibido e a cobra, o desejo de seu uso desregrado. Para voltarmos ao sonho original, à utopia do final da história, temos que voltar a (só) dizer a verdade. A comunhão telepática antes perdida será agora resgatada?


Não haverá mais mentiras, mas também não haverá mais privacidade. E o inconsciente? A parte que não vemos de nós mesmos. Essa também acabaria nesse novo regime porque todos os outros tornariam visível tudo que individualmente escondemos de nós mesmos. O Eu seria ampliado e aberto. A noção de identidade individual seria seriamente afetada. Sem mentiras, muitos enlouquecerão. Por isso, defendem tão aguerridamente o atual regime de representação. Por isso, se ofendem quando se fala de mentira, porque estão mentindo e não estão dispostos a mudar.


Apenas através de um salto quantico essa mudança é possível. Nâo se trata (apenas) de parar de mentir individualmente, é preciso que um número significativo de pessoas pare, induzindo com isso um número ainda maior de pessoas a não representar a vida de forma distorcida para conseguirmos todos alterar a realidade.


GOMES, Marcelo Bolshaw. Será tudo mentira? Aforismos para uma genealogia da teoria da conspiração, In: Coloquio Internacional de Comunicação, História e Política, Natal, 2007.

______ Mentir para dizer a verdade. Revista Temática. Ano IX, n. 05. João Pessoa: UFPB, Maio/2013.

RUIZ, Miguel. A voz do conhecimento: um guia prático para a paz interior / Miguel Ruiz, Janet Mills ; trad. Maria Santos Nunes. - 1ª ed. - Alfragide : Lua de Papel, 2020.


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