OS ERROS DO
PT
Marcelo
Bolshaw Gomes[1]
Se você tem
críticas pra fazer ao PT, faça. Mas se eu ficar toda hora fazendo autocrítica,
aí nem precisamos de oposição. Eles sabem dos nossos erros, mas também sabem
que fomos quem mais fez pelo Brasil. Twitter do Lula 07:22 - 20 de novembro de 2019
Introdução
Mesmo com
medo de dar munição ao inimigo, essa extrema direita ignorante, que na falta de
provas de crimes agora exige a autocrítica dos erros; mesmo com medo de ser
confundido com o 'antipetismo' e ser linchado pela militância, resolvi atender
ao pedido do ex-presidente Lula e formular algumas críticas fraternas ao
Partido dos Trabalhadores.
A crítica
não tem a ver com a ideia de “apontar falhas, erros e equívocos alheios” ou de
brandir o espírito de contradição que a tudo nega e minimiza, sem critérios ou
parâmetros. A crítica é a atividade de interpretar um discurso em um sentido
diferente do que é imaginado pelo enunciador. É, portanto, oposto a uma leitura
passiva, que aceita incondicionalmente a interpretação do que lhe está sendo
dito. Porém, em um ambiente autoritário, em que subserviência às ideias das
autoridades é a regra silenciosa, a polêmica é vista como encrenca e o crítico,
como um desagradável criador de casos, jogando-se fora assim o que há de mais
rico na convivência humana: o confronto das inteligências, o diálogo entre
diferentes interpretações de mundo.
Já a
'autocrítica' não é uma confissão ou a expiação pública de pecados. É claro que
muitos querem humilhar o PT, fazendo com ele seja responsabilizado pelos erros
em que acreditam (o partido deveria ter pago a dívida pública com recursos
internacionais, Lula não deveria ter se entregado à justiça, deveriam ter
apoiado Ciro Gomes, entre outros achismos). A situação se agrava com a falta de
humildade dos petistas e da capacidade de admitir os próprios erros.
Autocrítica,
mais do que a competência aprender com os próprios erros, é a capacidade de
reconhecer os erros que não se cometeu. E só os próprios petistas podem avaliar
onde e como foi que erraram.
No entanto,
sou anarquista e nas últimas eleições fiz campanha para frente de esquerda que
se formou contra o candidato fascista. Também sou espiritualista e sigo a
máxima do Hoponopono: O que eu não gosto
em você, corrijo em mim. Então, incentivado por Lula, me coloco no lugar do
PT e realizo em seu nome a tão solicitada autocrítica, consciente de que não
desejo destruir mas sim colaborar com o desenvolvimento comum, tenho vários
níveis de crítica em relação ao PT que gostaria de compartilhar aqui: as opções
estruturais e ideológicas do partido; os erros táticos e conjunturais; e,
finalmente, os erros históricos.
Diferenças ideológicas
Em 1981, me
identifiquei com as declarações do então sindicalista polonês Lech Walesa em
seu encontro com Lula em Roma. Walesa criticou a criação da CUT por dividir o
movimento sindical ao meio e lamentou que os trabalhadores brasileiros tivessem
escolhido o modelo de ‘partido de massas’ como principal ferramenta de
organização e luta – algo que a social democracia já teria feito e fracassado.
Argumentos simples que, com o tempo se mostraram válidos. O PT, por força de
sua atuação parlamentar, se distanciou de sua origem operária.
Por outro
lado, a prática de disputar a liderança de sindicatos, associações de
moradores, entidades estudantis - herdada do modelo leninista dos antigos
partidos clandestinos dos tempos da ditadura - levou a uma prática de
aparelhamento político dos movimentos sociais. O partido passa falar através
das entidades.
E o PT não
é o único a perpetuar essa prática oportunista e antidemocrática. O PC do B
acabou com a representatividade da UNE. O PSOL tenta aparelhar o movimento
LGBT. O PT, no entanto, além de ser maior nessa 'liderança social da sociedade
civil', acaba organizando movimentos sociais totalmente artificiais, o
movimento LULALIVRE, por exemplo, é composto por entidades dirigidas por
militantes do partido.
Este duplo caráter
do partido (parlamentar e de organização dos trabalhadores) traz dois
problemas: 1) o lado parlamentar do partido imagina que suas bases são
associações de massa; e, 2) a população se sente manipulada ao invés de
duplamente representada. O PT faz política voltado para dentro de si e confunde
as necessidades de sua militância com os interesses da população. Assim, o partido elabora uma narrativa
heroica sobre si mesmo, através da qual interpreta os acontecimentos externos e
se distancia da realidade da maioria.
No momento
do encontro entre Lula e Walesa, eles eram os mais expressivos líderes
operários do mundo e ainda não tinha sido presidentes. Apesar de seus
convincentes argumentos anarquistas, Walesa fracassou em seu projeto de governo
através do Solidariedade (central de sindicatos livres), sucumbiu ao
alcoolismo. Também foi descoberto que seu catolicismo radicalmente
anticomunista o levou a ser informante dos EUA. Enquanto isso, Lula, apesar das
decisões por modelos ultrapassados (partido de massa e sindicatos
partidarizados), fez um dos melhores governos que o Brasil já teve. Porém, para
ser assimilado pelo sistema político, também foi assimilado pela máquina
parlamentar.
Erros táticos
Então, o
primeiro erro político sério foi aceitar o presidencialismo de coalizão ao
invés de fazer uma ampla reforma política. Ao tentar perpetuar o
parlamentarismo pela metade de FHC, o PT foi pego subornando deputados em troca
de maioria parlamentar. Foi o escândalo do ‘Mensalão’. E esse seria um erro bem
fácil de perceber e do qual os petistas deveriam ter feito uma autocrítica
daquele momento. Mas, o sistema de propina foi repetida e veementemente negado
pelo PT, ao mesmo tempo que foi lenta e dramaticamente revelado pela mídia e
pelo supremo. Vários expoentes do PT se decepcionaram e saíram do partido, como
Frei Beto, Heloisa Studart, Soninha Valença – para citar os mais conhecidos.
Surgiram o PSOL e o PSTU.
Graças ao
Bolsa-família e ao crescimento econômico, em sua reeleição, Lula recebeu os
votos dos eleitores que, nas eleições passadas, votaram nos ‘fermandos’, as
pessoas de menor renda e instrução; enquanto seus eleitores tradicionais do PT
(as classes médias das universidades) votaram em seus novos adversários de
esquerda: Cristovam Buarque (PDT) e Heloísa Helena (PSOL).
Desde então
o PT vem cometendo erros (como qualquer um cometeria, diga-se de passagem), mas
não assume mais a responsabilidade pelas consequências de suas escolhas e
posições, atribuindo todos os seus fracassos às forças de direita e ao seu não
reconhecimento pelo restante da esquerda. Erros todos cometemos. Porém,
persistir em negar os erros, a esconde-los ou falsificá-los por vergonha ou má
fé, significa continuar a repeti-los. A aliança com PSB em Pernambuco para
tentar eleger Dilma senadora por Minas, ou estratégia eleitoral de lançar o
inelegível Lula (acreditando que pressão popular será capaz de reverter a
legislação eleitoral) ao invés de organizar uma ampla frente de esquerda por
exemplo. O PT não só não se arrepende desses erros táticos, mas ameaça
repeti-los em 2020.
Erros históricos
Entre os
grandes erros estruturais e os pequenos erros táticos, estão os erros
históricos e/ou estratégicos – aqueles mais significativos. O PT não
compreendeu o sentimento anti institucional das jornadas de 2013 e preferiu
aderir ao sistema político e à realização da Copa do Mundo.
No final do
segundo governo Lula, éramos a 8ª economia do mundo. Houve uma recessão
mundial, que fez apenas uma ‘marolinhas’ por aqui. O Brasil descobriu que tinha
um mercado interno e que podia crescer com autonomia em relação à economia
internacional. A distribuição de renda, via o bolsa-família, teve um efeito
macroeconômico inegável, com crescimento e baixa inflação.
Em 2010, a
internet passa a desempenhar um papel decisivo nas eleições. Vários temas
começam a ser agendados a partir das redes para a propaganda eleitoral: a
comparação entre os governos Lula e FHC, descriminalização do aborto no Brasil,
etc. A manipulação de informações pelas campanhas de ambos, especialmente na
Internet, tornou difícil para os eleitores julgarem o que seriam os fatos
verdadeiros e os boatos falsos associados a essas questões polêmicas. A essa
altura, as elites brasileiras não escondiam mais sua insatisfação com a nova
realidade social do país, com o acesso das camadas populares às universidades,
aeroportos e outros espaços antes só frequentados pelas classes mais abastadas.
Em junho de
2013, o Brasil passou, durante vários dias, por uma sequência de manifestações
populares nas principais cidades do país. Quase dois milhões de brasileiros
participaram de manifestações em 438 cidades. O movimento não foi organizado
por entidades (e por partidos por detrás delas), rompendo com toda metodologia
leninista de organização de protestos, prescritas no livro Que Fazer, de Lenin, a bíblia dos partidos de esquerda.
Ao tentar
apresentar uma resposta à população, Dilma se viu bloqueada pelos partidos que
sustentavam a base aliada do governo no Congresso. O próprio PT desqualificou o
movimento, por não ser organizado por partidos e entidades sindicais. Dilma e o
PT não entenderam. E, não levando os protestos em conta, partiram para disputar
a reeleição presidencial através das mesmas práticas políticas partidárias
parlamentares de sempre: procurando alianças com partidos grandes para garantir
a maioria no parlamento e se apresentando como a garantia política da
distribuição de renda e dos direitos sociais contra a direita neoliberal.
Mas, a
dívida pública subiu vertiginosamente em 100 bilhões. O que
foi que Dilma fez em cinco anos que deixou o país quebrado? Por que o governo
petista gastou uma fortuna na construção de estádios e obras de mobilidade; em
detrimento de escolas, de hospitais e das polícias? Por que os principais
beneficiários das obras, aliados na reeleição de Dilma, foram os principais
defensores do impeachment? Vítima da traição de seus próprios aliados, Dilma e
o PT sucumbiram em virtude de um golpe branco.
Tanto Lula
como o PT se recusam até os dias de hoje que tenham qualquer responsabilidade
com o fracasso da Copa do Mundo e a explosão da dívida pública devido ao
carnaval de obras públicas desnecessárias superfaturadas para as empreiteiras.
É claro que foram pegos em uma armadilha, mas se recusam a admitir que foram
enganados e equiparados ao que sempre combateram.
Imagine uma
polícia que utiliza a delação premiada de traficantes para incriminar seus
clientes viciados. O que acontecerá? Outros usuários surgirão. O mesmo se
aplica à Lava-jato. Fazer com que os corruptores ativos dedurem os agentes de
corrupção passiva, de modo seletivo, é claramente uma forma de perseguição
política. Para se defender desta manobra evidente, é preciso admitir o crime
menor e denunciar a cumplicidade entre os verdadeiros criminosos e a justiça
que os investiga. No caso, o PT deveria admitir que as obras não eram
necessárias e que foram feitas para triangular verbas para eleição - como
sempre foi feito pelas classes dominantes.
Sem planos e sem erros
Que futuro
o PT oferece? Qual utopia? Nenhuma, deseja apenas voltar ao passado, ao estado
de bem estar social e às políticas de inclusão social e de renda mínima. E é a
incapacidade de sonhar um futuro melhor que o impede de fazer autocríticas.
Não admitir que o PT tem parte – e grande parte –
nessa crise equivale a dizer que o PT só construiu o importante legado de seus
governos graças ao boom de commodities. E isso não é verdadeiro. Houve
escolhas: algumas muito acertadas; outras nem tanto; e outras tremendamente
desastrosas. Admiti-las é fundamental não ao passado, mas ao futuro. (...) E é
justamente esse futuro que o PT precisa voltar a oferecer para as
pessoas se quiser voltar a ganhar uma eleição. O modelo sob o qual o
partido se construiu não existe mais. Entender isso é também voltar a
vislumbrar o futuro. (...) E a dinâmica das redes polarizadas, onde as
performances contam muito, contribuiu para tornar as posições eleitorais
inconciliáveis. Humilhar bolsonaristas arrependidos na internet é só uma das
muitas evidências de que os petistas não estão muito interessados em disputar
voto, justamente porque essa disputa não mira o futuro, mas o passado.
Então, nesse caso – e só nesse caso –, a autocrítica realmente parece não fazer
muito sentido. Assim como para Bolsonaro é confortável ter o PT como centro
gravitacional da oposição, para o petismo é bom ter Bolsonaro na presidência.
(...) A questão é que o PT parece acreditar que, para um retorno triunfal do
partido, bastam o fracasso da economia sob Bolsonaro e as saudades dos anos de
ouro do lulismo. Outro erro capital. Mais um que os petistas dificilmente vão
admitir.
Murilo Cleto[2]
Conclusão
O
impeachment da presidenta, na realidade um golpe branco, forjou uma expressiva
frente de direita, um “grande pacto” envolvendo a mídia, o STF, os militares e
os bancos para remover a esquerda do poder e fazer uma reforma previdenciária e
diminuir o déficit público. O discurso contra a corrupção serviu para que a
operação Lava-jato fizesse a prisão totalmente arbitrária de Lula – que foi
julgado e condenado em tempo recorde para os padrões brasileiros, em conjunto
com uma campanha de difamação sem precedentes.
Com a
inesperada eleição do candidato da extrema direita Jair Bolsonaro em 2018,
acaba o período histórico conhecido como Nova República. Período que começou
com a morte do presidente Tancredo Neves, foi estruturado pela Assembleia
Constituinte de 1988 e caraterizado pelo predomínio fisiológico do PMDB,
encoberto pela disputa ideológica entre o PT e o PSDB. A principal
característica da Nova República foi o predomínio do poder legislativo sobre o
executivo e o judiciário – através do dispositivo que permite, por maioria de
2/3, o Congresso legislar matérias constitucional e o presidencialismo de
coalização (na verdade, o parlamentarismo disfarçado), com a indicação não
apenas de ministros e de todos os cargos da administração federal direta e
indireta. Com os presidentes Temer e Bolsonaro, no entanto, não surgiu um novo
equilíbrio entre os três poderes.
O desejo de
votar na extrema direita foi artificialmente criado pela mídia, mas também veio
do profundo descrédito nas instituições democráticas que se corromperam (o
congresso, o STF, os partidos políticos, etc). Havia um desejo legítimo de
mudança não contemplado pela esquerda (a reestruturação do sistema de
governança política) que a direita soube aproveitar em sua crítica radical à
corrupção institucional. Os aplicativos de vídeo comunicação em telefones
celulares foram determinantes no resultado da eleição, suplantando os meios de
comunicação tradicionais. Vídeos pornográficos reclamando da ideologia de
gênero associados à esquerda; cenas de violência e de injustiça, acobertados
pelo governo; e muitas denúncias de corrupção. Essas mensagens, postas de forma
emocionalmente apelativas, transmitidas pelo whatsapp permitem uma capilaridade
invisível para os olhares antigos. A utilização do celular como mídia
principal, em um ambiente de conspiração, postulando que a grande mídia mente e
é controlado pelos poderosos é uma característica também presente na eleição de
ontem, na de Trump e no plebiscito do Brexit. Nesses casos também houve uma
grande quantidade de notícias mentirosas difundidas na rede de modo alternativo
para comunidades.
As
comunidades de afeto e interesse são os palcos da disputa política, o local em
que se debate realmente. Disputa sem argumentos ou discursos, mas com catarses
de ódio e os medos que elas causam. E a luta política é sobre a confiabilidade
dos candidatos (mais do que pelas propostas ou pela ideologia). Qual dos dois
está mentindo? Os que votam nulo resolvem essa pergunta afirmando que ambos.
Mesmo que seja verdade, que a representação política tenha se tornado uma
farsa, resta ainda o peso da escolha. Quem mente menos? Quem faz parte do
sistema e luta pela sua manutenção? A descrença sistêmica tanto se converte em
raiva pela direita quanto em medo pela esquerda. É a descrença sistêmica que
faz alguns acreditarem em qualquer coisa, mesmo que não faça muito sentido.
Existe apenas a canalização da insatisfação com as mentiras das instituições
democráticas, contra as mudanças no mundo, contra a corrupção da qual todos
fazem parte.
A culpa da
vitória da direita é de todos nós, inclusive do PT.
[1] Jornalista, doutor em ciências sociais e professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN. Escreveu o livro: Decifra-me ou te devorarei – A imagem pública de Lula no horário eleitoral em 1989, 1994, 1998 e 2002. Natal, Editora Universitária da UFRN (EDFURN): 2006