sábado, 18 de fevereiro de 2017
Identidade Secreta
O HERÓI DE DUAS FACES
A dupla
identidade dos super-heróis
Marcelo Bolshaw Gomes[1]
Resumo: o presente texto discute a mediação narrativa da
dupla identidade dos super-heróis. Amparado nos estudos de Umberto Eco e Grant Morrison,
destaca-se três fatores irredutíveis nesse estudo: a transferência
não-analítica de emoções (estudadas pela psicanálise); a formação ideológica
resultante do contexto de enunciação e dos pactos de leitura; e o conteúdo
mítico e arquetípico dos heróis. Conclui-se que a mediação narrativa da dupla
identidade está se tornando uma nova forma de identidade nos ambientes
virtuais.
Palavras chave: Comunicação Midiática; Estudos Narrativos;
Histórias em Quadrinhos; Super-heróis;
Abstract: This paper discusses the narrative mediation of
the dual identity of superheroes. Bolstered in studies of Umberto Eco and Grant
Morrison, stands three irreducible factors in this study: the transfer of
non-analytical emotions (studied by psychoanalysis); the resulting ideological
formation of enunciation context and reading pacts; and the mythical and
archetypal content of heroes. We conclude that the narrative mediation of dual
identity is becoming a new form of identity in virtual environments.
Keywords: media communication; Narrative Studies; Comics;
Super heroes;
1.
Introdução
Há uma
estória conhecida sobre um ventríloquo, que após muitos anos trabalhando com um
boneco, passou a acreditar que o personagem tinha vida própria e o integrou
como amigo e conselheiro a sua vida pessoal. Fatos como esse, em que objetos
representam personagens míticos, são comuns em várias culturas – como nas
bonecas do maracatu nordestino.
Há duas
diferenças fundamentais entre o antigo herói mitológico e o super-herói contemporâneo.
A primeira é que nas antigas mitologias havia uma dialética entre o passado e o
presente, em que a tradição interpretava os fatos e os acontecimentos
confirmavam a tradição; enquanto na mitologia atual há uma dialética entre o
presente e o futuro. Para os antigos, os heróis mitológicos existiram em um
passado distante; hoje, os super-heróis vivem uma aventura aberta, com eventos
que estão acontecendo e que vão ainda acontecer.
A segunda
diferença fundamental é a dupla identidade. Na mitologia midiática, a
encarnação do mito (ou da entidade simbólica) é posto como uma dupla
representação de si, real e ideal - uma cara para cada um dos dois lados da
caverna de Platão – sendo que o eu verdadeiro é o Batman e Bruce Wayne, seu
disfarce social. O Super-Homem é um alienígena disfarçado de jornalista. A ideia
sugerida é que o personagem real é a máscara e não seu portador humano.
Umberto Eco
(2008, 248) foi o primeiro pensador a entender a importância da dupla
identidade. Em sua obra clássica, Apocalípticos e integrados, Eco
ressalta uma compensação da sensação de impotência do repórter Clark Kent (e
dos leitores) através da catarse de sua contraparte superpoderosa. A dupla
identidade narrativa dos heróis atuais reflete, assim, o desejo de superação
das frustrações do leitor comum, em um mundo injusto. A identidade dupla mito/homem
é então uma relação de sublimação.
2.
O fator ideológico
Porém, a
sublimação não é suficiente para explicar a dupla identidade. Mesmo com o
aparecimento contemporâneo de diversos super-heróis pansexuais, transgênero e
homoafetivos, eles não são machões que se transvestem em super-heroínas ou
dondocas que se tornam super-heróis.
Além da
psicanálise dos sentimentos e desejos reprimidos, há ainda um forte aspecto ideológico
nos super-heróis. Na verdade, uma ambiguidade ideológica, uma vez que ao mesmo
tempo em que representam valores socialmente dominantes (são abertamente
pró-americanos, por exemplo) também representam valores culturais críticos e
progressistas (feministas, ecológicos ou transgressores sobre algum aspecto).
No texto As
Histórias em Quadrinhos como objeto de estudo das teorias da Comunicação (FRANÇA, 2014,
267-286), os professores Waldomiro Vergueiro e Roberto Elísio dos Santos
procedem a uma completa revisão histórica dos estudos acadêmicos sobre quadrinhos,
no mundo desde 1940 e no Brasil a partir de 1951, acentuando suas diferentes
abordagens: funcionalista (BOGART, 1973); marxista (DORFMAN
& MATTELART, 1980); estruturalista (FRESNAULT-DERUELLE, 1980); e estudos culturais
(MATTELART; NEVEU, 2004).
A maioria desses estudos era
centrado na crítica ideológica dos personagens das histórias em quadrinhos e
tinha por objetivo principal desmascarar a sugestão de valores simbólicos capitalistas
pela indústria cultural. Moacy Cirne (SOUZA, 2014) é a maior expressão
brasileira deste tipo de crítica ao aspecto ideológico dos quadrinhos.
É possível que os
super-heróis fossem menos ‘contra-hegemônicos’ até os anos 90, mas os antigos
heróis míticos também tinham ‘um lado rebelde’ frente à sociedade (e aos
deuses) – mesmo que de modo mais discreto. O próprio conceito de herói implica
(tanto para modelo da jornada de Campbell como para o modelo de análise
estrutural das narrativas de Lévy-Strauss e Greimas) em ser ‘um transgressor
legítimo’ – alguém que é simultaneamente rejeitado e aceito por sua comunidade.
Seja pelo bom comportamento
dos super-heróis no passado ou pelo exagero da crítica ideológica de seus
analistas, os primeiros estudos sobre quadrinhos acentuavam mais o lado
‘sistêmico’ dos heróis do que sua singularidade e desadequação social.
Apenas recentemente, com as
abordagens inspiradas na Análise do Discurso e na Semiótica Narrativa[2],
estabelecidos elementos formais para crítica analítica (SILVA, 2001) chegou-se a um
entendimento mais amplo da dimensão ideológica dos quadrinhos.
Por exemplo: A construção da realidade na história em
quadrinhos Alias: codinome investigações (LIMA, 2014) faz, a partir da Análise
do Discurso, uma história do protagonismo feminino em quadrinhos das primeiras
heroínas supererotizadas – ‘representações masculinas do feminino’ – até a
personagem Jéssica Jones, que largou a fantasia de heroína e o grupo de
super-heróis a que pertencia, se tornando uma investigadora particular cheia de
problemas pessoais.
Dentro
de toda essa ótica, os autores formatam uma mulher com suas fragilidades e
dificuldades buscando se encontrar naquele mundo em que vive e no seu caminho
como ser humano, sem necessariamente cair num estereótipo também comum da
mulher dramática, indefesa e preocupada mais com sua aparência. A Jessica Jones
de Bendis e Gaydos é uma personagem complexa, que foge da unilateralidade comum
na caracterização heroica e feminina dentro dos quadrinhos, a aproximando não
só de seu público como do humano em si: um ser perdido, com acertos e falhas,
em uma jornada de busca de sentido para si mesmo (2014, p. 57).
Lima ressalta a realidade opaca e cinzenta em que vive a personagem, em
oposição ao universo colorido e glamoroso dos super-heróis, do qual ela fez
parte um dia. Como se a narrativa, para retratar uma protagonista feminina de
uma forma mais realista, tivesse que abrir mão de uma parte de sua identidade.
Outro exemplo: utilizando da metodologia da Semiótica Narrativa, Gene X: uma análise semiótica das HQs dos
x-men em revista (SILVA, 2011) mostra como as HQs dos X-Men tratam a questão da
diversidade cultural e da exclusão social existentes no mundo não-ficcional. Os
X-men tem características de minorias excluídas: Ororo (Tempestade) é negra;
Jean-Paul (Estrela Polar) é assumidamente gay; Raven Darkholme (Mística) possivelmente
é bissexual; Scott Summers (Ciclope) é deficiente visual; Professor Charles
Xavier, cadeirante; Hank McCoy (o Fera) é portador da Síndrome do Homem Lobo; e
assim por diante.
Além das diferenças de gênero, orientação sexual, cor e deficiência
física, os heróis também são de países diferentes: Wolverine é canadense; Colossus,
russo; Tempestade, queniana; Noturno, alemão; Banshee, escocês; Solaris,
japonês; e Tâmara, brasileira. O que realmente estigmatiza o grupo e o faz
objeto de preconceito é que ele é formado por indivíduos que passaram por
mutações genéticas e desenvolveram superpoderes. A mutação genética faz com
eles sejam tratados como ‘aberrações’ pelo governo e pela sociedade em geral.
Como os X-men são seres mutantes e o que é mediado é a exclusão social dos
personagens, suas estórias não tratam diretamente da questão da dupla
identidade e sim de uma única identidade híbrida.
Tanto a deserção de Jessica Jones do super-heroísmo por motivos
psicológicos como a identidade híbrida dos mutantes são pontos importantes para
entender a noção de mediação narrativa da ‘dupla identidade’. Mas, agora, o
importante é perceber que esses trabalhos colocam a crítica ideológica dos
super-heróis em outro patamar, tanto metodologicamente (levando em conta mais
aspectos de análise), mas sobretudo mostrando novas questões políticas em um
universo análogo à realidade de modo mais complexo e refinado.
3.
O fator
mítico
O escritor e
roteirista Grant Morrison (2012) aprofunda as observações de Eco sobre a
sublimação das frustrações através da mediação de identidade dos super-heróis, bem
vista sua utilização ideológica no contexto social em que foram criados, mas
também ressalta o aspecto mitológico dos personagens, suas semelhanças
estruturais com deuses, demônios e outros seres míticos das narrativas
tradicionais.
Aliás,
Morrison, como roteirista da DC Comics
nos anos 90, praticamente reinventou a Liga da Justiça com base na mitologia
grega. Superman inspirado em Zeus; Batman como Hades, o senhor dos infernos; e
o Aquaman, pensado a partir de Poseidon, rei dos mares. Além disso, reforçou
também características já existentes de Flash como Hermes e da Mulher Maravilha
como Artêmis.
Oliveira
(2016), observando o caráter arquetípicos dos super-heróis, faz um levantamento
extenso a partir da dupla-identidade, concluindo que [...]
[...] se pode chegar é que cada super-herói lida
com a questão da dupla identidade de modo diferente. Alguns têm uma
personalidade predominante com a qual se identificam mais, seja ela a
identidade fisicamente mascarada ou a que é ocultada por artifícios teatrais
relacionados ao papel que desempenha em sua vida civil. Enquanto existem
outros que convivem de maneira ambígua com suas duplas identidades, a ponto de
não conseguir identificar qual é a sua real identidade e qual é a que usa como
disfarce.
[...] Mais do que as habilidades, o que faz um
super-herói é seu senso de dever e responsabilidade, apesar de seus problemas e
falhas pessoais.
Outro ponto a ser destacado é que nem só os
super-heróis usam máscaras e possuem vidas duplas. A pessoa comum, assim como o
super-herói, é capaz de se adequar as diferentes situações e contextos, criando
identidades paralelas para as diferentes situações, cada uma delas
representando uma diferente faceta da personalidade de um mesmo indivíduo.
Portanto, muitas vezes, é desnecessário buscar uma distinção entre as
identidades de tal sujeito, seja na ficção dos quadrinhos ou na vida real
(OLIVEIRA, 2016, 92-92).
Aprofundando
na Psicologia Analítica e considerando a dupla identidade como uma relação
entre Personalidade (a máscara) e Individualidade (o self), pode-se inclusive
elaborar uma arqueologia de super-heróis: o herói-monstro (Hulk, Dr. Jekyll/Mr.
Hyde); heróis-máquinas (Homem de Ferro, Cyborg); heróis deuses (Mulher Maravilha,
Namor, Thor); heróis-vigilantes (Demolidor, Batman); e até anti-heróis (como
Deadpool). Ao super-heróis funcionam como ‘totens’ ou identidades simbólicas. E
cada um desses super-heróis guarda uma relação diferente com sua dupla identidade,
não apenas em relação ao herói-mito, mas também em relação ao humano[3].
Os
arqui-inimigos também têm um papel simbólico fundamental na definição da
identidade dupla dos heróis. A responsabilidade do Batman torna-se ainda mais sombria,
séria e triste frente à alegria destrutiva e colorida do Coringa. Nas
aventuras, os vilões sempre representam qualidades e características opostas às
representadas pelos super-heróis. Há, na verdade, um triangulo entre
protagonista, sua identidade cotidiana e o antagonista principal.
Há também o
papel do narrador. Não apenas do narrador discursivo, aquele texto que
contextualiza os desenhos e os diálogos, mas, sobretudo, o narrador ampliado, a
mediação entre autor-leitor, que conta a estória através das cenas sequenciadas,
envolvendo além da narração discursiva, os diálogos, os desenhos e sua
disposição em quadros e páginas. O narrador ampliado pode definir a
profundidade psicológica dos personagens; pode também ser mais ou menos
realista em vários aspectos; ou ainda utilizar de expedientes mais mitológicos
ou mais ideológicos. Esses três fatores da mediação de identidade narrativa dos
super-heróis (a psicanálise dos desejos inibidos, a crítica ideológica e o
conteúdo mítico e/ou arquetípico) sempre estão presentes, mas combinados de
modo desigual dependendo do narrador e da narrativa[4].
TABELA 1: Quadrado Semiótico Narrativo do
super-heroísmo
Herói (Mito)
|
Vilão (Ideologia combatida)
|
Identidade cotidiana (Leitor)
|
Outros personagens (Narrador)
|
4. Repaginando heróis
Divide-se a história das histórias em quadrinhos em quatro fases
distintas: A Era de Ouro, começa em 1938 (criação do super-homem) e termina em
1954, com a criação de uma entidade reguladora das revistas de banda desenhada,
o Comics Code Authority. A Era de
Prata de 54 aos anos 69 (com a morte de Gwen
Stacy, namorada do
Homem-Aranha); a Era de Bronze até 1986; e a Era Moderna, que
começa com o lançamento de três séries de histórias (Crise em Infinitas Terras[5]; Watchmen, de Alan Moore; e Batman Ano Um/O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller) e que perdura até nossos
dias.
Cada passagem de uma era para outra corresponde a uma
reconfiguração estética e narrativa da identidade mediada, a uma repaginação
ideológica do conteúdo mítico de cada herói, de acordo com um novo contexto sociocultural
e com os novos pactos de leitura neles existentes. O super-heróis foram criados
na Era de Ouro e tiveram um papel importante na segunda guerra mundial, muitas
vezes lutando contra o nazismo. Na Era de Prata, após a guerra e um período de
declínio editorial, as narrativas gráficas se tornaram mais bem desenhadas e
com histórias mais elaboradas, aproximando-se da ficção científica em virtude da
ênfase na tecnologia. Nessa Era, os inimigos principais foram o crime organizado,
monstros e alienígenas, muitas vezes metáforas da URSS e da China. A televisão
produz um novo público para o super-heroísmo. Nos anos 60, surge a Marvel Comics e diversos grupos de
super-heróis.
Na Era de Bronze, os heróis começam gradativamente a se revoltar
contra o mundo e os antagonistas passam a ser vilões extravagantes. As
narrativas passam a tratar de temas tabus, tais como a sexualidade, a morte, a
injustiça. A Era Moderna é hiper-realista, violenta, artística e os quadrinhos
passam a interagir com outras mídias (cinema, TV, jogos, bonecos, etc). Os
super-heróis tornaram-se multiculturais e têm comportamentos singulares e
críticos em relação à sociedade. O terrorismo, em suas múltiplas formas, passa
a ser antagonista principal dos super-heróis.
Morrison (2012, 169) prefere dizer chamar a Era de Bronze de ‘Era
do Ferro’ (ou Era Sombria) e vê uma continuidade de aumento gradativo do
realismo, do sexo e da violência entre as Eras de Bronze e Moderna. Porém, se
adotarmos o parâmetro dos contextos sociais e dos pactos de leitura (e não só
elementos temáticos e estéticos nas narrativas), os quadrinhos só atendem a um
público adulto mais culto e exigente a partir da Era Moderna.
Outra característica exclusiva da Era moderna é a tendência de
apresentar os super-heróis como pessoas normais que se fantasiam com roupas
extravagantes, como em Watchmen ou em
Aliás.
Em cada Era, o tema da dupla identidade passou por mudanças. De
certa forma, pode-se dizer que a chamada Era Moderna tentou desmascarar os super-heróis,
seja apresentando-os de modo mais humano e realista, seja fazendo com eles
‘saíssem do armário’ e assumissem sua natureza mítica.
Mas, a dupla identidade resistiu.
Um caso exemplar da sobrevivência atual da dupla identidade é sobre
Kamala Kahn, a adolescente islâmica, que assume os poderes de Carol Danvers e
se torna a nova Miss Marvel. A heroína é estudada por Fernandes (2016). A
pesquisa de Fernandes tem vários méritos: entende os super-heróis como mediações
de identidade narrativa e não como meros produtos da indústria cultural;
contextualiza a nova cena cultural dos quadrinhos pós 2011; entende a heroína
islâmica como o resultado de um longo processo de construção, nas histórias em
quadrinhos, do protagonismo feminino e de inclusão social de comportamentos
estigmatizados.
A dupla identidade – que é o que nos interessa – permanece porque
a identidade cotidiana do herói é uma representação do leitor no interior da
narrativa[6].
Kamala lê quadrinhos, tem um blog sobre Os Vingadores, é uma fã de
super-heróis.
A mudança da identidade humana associada a um mito não é novidade.
O Fantasma era uma máscara passada de geração em geração. Batman já ‘encarnou’
em outros personagens além de Bruce Wayne. A diferença no caso da nova Miss
Marvel é que novo ‘médium’ do mito é uma representação de um leitor
globalizado, uma adolescente de outra cultura. E essa diferença estrutural implica
em toda uma interpretação intercultural da personagem mítica, em termos
estéticos e narrativos.
5.
Conclusão
Abordou-se
aqui três aspectos da mediação da identidade narrativa dos super-heróis: a
psicanálise dos desejos inibidos, a crítica ideológica, e o conteúdo mítico
e/ou arquetípico. Esse último aspecto é que faz com que, embora passem pelos
mesmos mecanismos de reprodutibilidade técnica da cultura de massas, os
super-heróis se diferenciem de outros produtos da indústria cultural. Os
super-heróis são a representação dos mitos e arquétipos, mediados
ideologicamente dentro da linguagem fragmentada e descontínua da mídia, em seus
múltiplo suportes atuais. Os super-heróis dos quadrinhos estão agora na TV, no
cinema e em várias dimensões do cotidiano.
Também
destacou-se que, na mediação narrativa da identidade, o mito precisa ser
repaginada ideologicamente de acordo com o contexto social e os pactos de
leitura; principalmente através de novos inimigos, mas também através de
mudanças estéticas, narrativas e editoriais. Os inimigos geralmente representam
antagonistas sociais, como o nazismo da Era do Ouro; os países socialistas nas
Eras de Prata e Bronze; e o terrorismo, em suas diferentes versões, na
atualidade.
Foi ainda analisado
aqui como as próprias histórias em quadrinhos mais recentes problematizam
metalinguisticamente a dupla identidade, tanto humanizando os heróis como
pessoas normais como os desumanizando como mutantes, alienígenas ou divindades.
Mas, como a metade humana da dupla identidade implica na representação do
leitor dentro da narrativa, essas desconstruções narrativas não vingaram e
duplo protagonismo permanece como uma das principais características das atuais
narrativas gráficas de aventuras.
A
antropologia estuda as mitologias do passado; a psicologia analítica (derivada
de Jung) investiga a existência do mito no presente; e a comunicação pesquisa
os mitos nas narrativas da mídia em relação ao futuro[7].
Hoje as
mediações de identidade dos super-heróis estão transformando os personagens em
‘Avatares[8]’
de jogos eletrônicos e em personagens de RPG; são mimetizados através de
fantasias de Cosplay[9] em
eventos temáticos; e há até pessoas que assumem a identidade de heróis - seja
em performances artísticas e políticas ou por problemas psicológicos.
Estamos
passando da mediação narrativa da identidade mítica para sua representação
teatral e política.
Michel Serres
(LEVY, 2007, 15), dando um exemplo sobre a teoria dos quatro espaços
antropológicos de Levy (a Natureza, o Território, o Mercado e o Saber) diz que nosso
nome e sobrenome são nossas identidades no espaço da Terra; nosso endereço,
nossa identidade no espaço territorial; a profissão, a posição que ocupamos no
mundo das mercadorias; e que, atualmente, estamos definindo uma quarta identidade
para o espaço do saber: a senha, a impressão digital, o DNA.
A definição
desta quarta identidade ainda está em construção, mas o Avatar (ou corpo
virtual) é o principal candidato para a função, pois foi lentamente gestado
através da mediação narrativa da dupla identidade dos super-heróis, tem a
vantagem do anonimato virtual e da propiciar uma experiência poética e
narrativa diferenciada da identidade cotidiana.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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do Rio Grande do Norte (UERN), Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (FAFIC),
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais e Humanas. Mossoró, 2016
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Alias: codinome investigações. Dissertação (Mestrado em PROGRAMA DE POS GRADUAÇÃO
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Antônio Vicente Seraphim. Análise
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[1]
Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN, doutor em
Ciências Sociais.
[2] No
Brasil, existe o trabalho pioneiro do professor Antônio Vicente Seraphim
Pietroforte (2004, 2007, 2009) sobre análise textual de história em quadrinhos
e algumas poucas aplicações interessantes.
[3]
As profissões mais comuns nas identidades cotidianos dos super-heróis são
jornalistas, detetives e cientistas. Sobre esse tema, vale a pena ler Do Novo Jornalismo ao Cyberpunk: Elementos
contraculturais do jornalismo e da ficção científica em Transmetropolitan,
de Alex de Souza (2013).
[4]
Um bom exemplo de análise mitológica, utilizando a Semiótica Narrativa, é o
trabalho Ressemantizações mitológicas nos quadrinhos: estudo semiótico de Conan, o
bárbaro (LENZI, 2007), que investiga resignificação
dos mitos antigos na cultura moderna através da análise semiótica de duas
estórias do guerreiro cimério: A
Torre do Elefante e A Fronteira do
Fim do Mundo.
[5]
Série de histórias da Liga da Justiça em realidades paralelas em que os
super-heróis existem de modo diferente, que a DC Comics utilizou para mudar seus uniformes e alterar suas
características.
[6]
Personagem-leitor, dissociado do dispositivo da dupla identidade, é bastante comum
no audiovisual, nas séries da produtora Shonda Rhimes (Scandal e How to Get Away
with Murder, por exemplo) em que uma protagonista do mal (em ambas as
séries, uma advogada negra durona) contrata um novato, representando o ponto de
vista do público, que, aos poucos, descobre os motivos de seu tutor.
[7]
Enquanto a antropologia descreve o aspecto local das narrativas míticas dentro
de um quadro aberto de referências linguísticas, alimentares, culturais; os
estudos mitológicos, no sentido contrário, partem do geral (do inconsciente
coletivo, dos arquétipos) para o particular (os mitos culturais específicos) e
são universalistas, cultuando o sagrado como uma epifania transcultural.
Defende-se aqui que os dois métodos não se excluem e são complementares na
investigação das narrativas míticas da mídia.
[8]
Avatar significa encarnação da Divindade. A definição é dos Vedas, que citam
Krishna como oitava encarnação de Vishnu. O termo foi adotado pela teosofia e
por outras religiões e através do universo das narrativas atuais passou a ter
outro significado no âmbito dos vídeos games: o de corpo virtual substituto, em
que jogador (co-narrador/protagonista) experimenta outros universos.
[9]
Cosplay é a arte de se transformar em um personagem real (artista) ou ficcional
(personagem de quadrinhos ou videojogos), utilizando de maquiagem,
interpretação e vestuário. Os participantes (ou jogadores) da atividade
chamam-se cosplayers.
O surfista pratetado
NA ONDA DO
SURFISTA PRATEADO
Marcelo Bolshaw Gomes[1]
Resumo: O presente texto estuda o personagem Surfista
Prateado (Silver Surfer),
super-herói das histórias em quadrinhos norte-americanas da Marvel Comics. Utiliza-se a análise
narrativa para entender o entrelaçamento singular de alguns de seus conceitos
fundamentais: funções dramáticas que desempenha, os arquétipos aos quais é
associado, seu desejo e motivação, seus conflitos éticos, a dimensão ampliada
do universo como seu círculo de existência e o significado de sua conversão.
Conclui-se que o Surfista Prateado não é apenas um símbolo de transcendência
espiritual, como enfatiza Andraus (2008), mas também está associado ao
arquétipo do eterno estrangeiro, ao destino trágico de vagar permanentemente
através de universos passageiros.
Palavras-chave: Comunicação midiática1; Estudos narrativos2; Histórias em Quadrinhos3;
Abstract: This paper investigates the Silver Surfer character,
superhero stories in American comics of Marvel Comics. It uses narrative
analysis to understand the unique intertwining of some of its fundamental
concepts: dramatic functions it performs, the archetypes to which it is
associated, your desire and motivation, their ethical conflicts, the added
dimension of the universe as your circle of existence and the meaning of his
conversion. It is concluded that the Silver Surfer is not only a symbol of
spiritual transcendence, as emphasized Andraus (2008), but is also associated
with the archetype of the eternal foreigner, the tragic fate of wandering
permanently through universes passengers.
Keywords: Media Communication1; Narrative
Studies 2; Comics3;
1.
Introdução
O Surfista Prateado é uma criação de Stan
Lee e Jack Kirby. Surgiu pela primeira vez no arco de histórias em quadrinhos
do Quarteto Fantástico conhecido como ‘A Trilogia de Galactus’ (Fantastic Four #48 de 1966). Em pouco
tempo, o personagem tornou-se um dos heróis mais importantes do Universo Marvel,
sendo repaginado do ponto de vista editorial em diferentes momentos por vários
artistas.
A Marvel lançou a revista do herói em
1968, com arte de John Buscema (desenhista do bárbaro Conan). Em 1971, o
Surfista Prateado participa do grupo de super-heróis - ao lado de Namor, Hulk e
Doutor Estranho. Há também participação do surfista em outras histórias, como
com o Homem-Aranha. Em 1989, surge a minissérie Parábola, texto de Stan Lee e arte de Jean Girard (Moebius). Em
1998, o surfista ganha uma série de 13 episódios de desenhos animados de curta
duração. Outro momento marcante na história editorial do herói prateado é a
minissérie Réquiem (2007) escrita por
J. Michael Straczynski (criador de He-man
e Babylon 5, entre outros) e
desenhada por Esad Ribic, em que o Surfista se desintegra e desaparece para
sempre. Também em 2007, o Surfista Prateado protagoniza o filme "Fantastic Four: Rise of the Silver Surfer"
- baseado na Trilogia de Galactus.
Está presente em vários videogames da Marvel como personagem jogável para todos
os consoles.
A estória do surfista prateado nos
remete a uma entidade cósmica chamada Galactus, o devorador de mundos, um ser
semelhante a um buraco negro que se alimenta impessoalmente da energia de
universo. Norrin Radd, um nobre do planeta Zenn-La, se oferece para servi-lo
como arauto, para que Galactus poupe seu planeta. A barganha funciona e Galactus
poupa Zenn-La; porém, apaga a memória de Norrin Radd, transformando-o no
Surfista Prateado, um ser com poderes extraordinários, condenado a buscar
planetas para satisfazer a sua fome.
Assim foi sua vida até chegar à
Terra, planeta em que ele conhece o Quarteto Fantástico, recupera a memória e,
comovido pela nobreza dos humanos, impede que seu chefe se alimente. Como
punição por sua traição, o devorador de mundos, nas primeiras versões, o
aprisiona na terra. Nas versões mais recentes, Galactus amaldiçoa o surfista
como um viajante perpétuo dos universos. Desde então, ele vaga sem destino pelo
espaço sem esperança de um lar, de uma família ou de encontrar quem o aceite.
2.
Definições
O primeiro passo da análise narrativa
de um determinado personagem é compreender sua função dramática na estória. Não
apenas se ele é protagonista, antagonista ou coadjuvante; mas também o gênero
da narrativa, se é heroica, romântica, religiosa, ou de outro tipo. Nem todo
protagonismo é heroico.
Um herói é um protagonista que “faz
coisas erradas pelos motivos certos”. É uma definição de comportamento muito
boa - abrange outras definições como a do mito do herói-transgressor de Levi
Strauss[2]
ou a do mito do herói espiritual de Campbell[3]
- e implica também em personagens-coadjuvantes que “façam a coisa certa (aparentemente)
pelos motivos certos” (a autoridade moral, os outros personagens da narrativa, a
sociedade do herói); também em personagens-antagonistas (os vilões) que “façam
as coisas erradas pelos motivos errados”.
Outra característica marcante em boa
parte das histórias heroicas são narrativas de conversão, em que vilões que
passam a tentar ‘fazer o bem’. Geralmente esse comportamento caracteriza ‘os
falsos heróis’, aqueles que “fazem o certo pelos motivos errados” – ou seja: o
contrário simétrico ao verdadeiro herói que faz coisas erradas pelos motivos
certos. Nas estórias atuais há viradas e transformações, todos heróis são
falsos, ou melhor: todos somos personagens contraditórios e complexos. O
‘motivo certo’ é algo ainda que procuramos entender.
E o Surfista Prateado representa essa
contradição. Ele foi aliado de um vilão destruidor e encontra vários personagens
que o acusam pela sua colaboração no passado. Ele busca sempre fazer o que é
certo, inclusive ajudando seus inimigos (o próprio Galactus), quando isso lhe
parece justo. Ele não é movido pela vingança, buscando sempre soluções
pacíficas para os conflitos. Em nenhum momento, o surfista pensa em vencer seus
adversários, mas sim e torna-los aliados em função de seu único objetivo:
voltar ao planeta Zenn-La e aos braços de sua amada Shalla-Bal.
3.
Panteão cósmico
As narrativas contemporâneas da mídia
são uma nova forma de mitologia, voltada para o futuro (e não apenas para o
passado – como a mitologia clássica). Estudar essas narrativas midiáticas é
investigar a organização dos símbolos no imaginário coletivo atual. Há
universos narrativos mais centrados na dicotomia entre o bem e o mal, como as
estórias dos contos de fada, muitas vezes afirmando crenças do simbolismo
dominante – tanto em relação à política como à religião.
As narrativas de super-heróis e de ficção
científica, por outro lado, são socialmente críticas, laicas e até
antirreligiosas: os deuses são alienígenas e a magia foi substituída pela
tecnologia.
O personagem Galactus, por exemplo, que
personifica a destruição e escraviza o surfista como um batedor avançado dos
mundos que deseja devorar, não é eticamente ‘mau’. Ele age assim porque é sua
natureza ser o devorador de mundos. Ele foi o único sobrevivente da última
contração do universo que luta para sobreviver até o fim da expansão cósmica iniciada
pelo Big-Bang.
Aliás, Galactus é das entidades
cósmicas dentro do universo Marvel que se comportam como deuses. Há também Uatu
ou O Observador. Ele faz parte da raça alienígena dos Vigilantes. Eles se
dedicam a observar os acontecimentos do Universo e são terminantemente
proibidos de interferir no curso da história. Uatu é o vigia responsável pela
Terra e já interferiu mais de uma vez para salvá-la, o que o levou a ser
julgado (revista Captain Marvel #39) e marginalizado por outros vigias.
Existem ainda Thanus (vilão
recorrente no universo Marvel); Adam Warlock (que vive preso em uma anomalia em
que o tempo se repete sempre); os irmãos gêmeos Infinito e Eternidade (dualidade
masculino-feminina formada através das projeções da consciência de todos os
seres vivos); entre outros personagens.
Assim, o surfista interage com outros
super-heróis Marvel, com humanos e com seres de outros planetas em seu círculo
de existência transitória, mas sua origem está nessa dimensão ampliada do
universo, em uma coexistência cósmica com seres com vidas de longa duração –
principalmente nas narrativas da série de desenhos animados.
4.
Características
Em outro lugar, argumentou-se que o
super-herói tem duas características: a dupla identidade (o personagem-leitor)
e ser uma repaginação ideológica de um mito, através de um determinado
‘contrato de leitura’, de um determinado contexto sócio histórico de imaginação
do personagem. No passado, o Super-Homem e o Capitão América eram heróis
hegemônicos (se vestiam com a bandeira dos EUA), enquanto o Batman e o Homem de
Ferro eram milionários rebeldes, sem superpoderes mas com acesso à tecnologia
avançada. As narrativas mais recentes (no cinema, principalmente), alteram
bastante esse esquema ideológico do pacto de leitura da guerra fria.
O Surfista Prateado não tem identidade
secreta. Ele perdeu sua ‘humanidade’ (deixou de ser Norrin Radd) e deseja
voltar a tê-la. E, do ponto de vista ideológico, o surfista tenta ser neutro em
relação aos conflitos, mas acaba se envolvendo.
No planeta do Dr. Moreau, ele toma o
partido de uma raça escravizada por outra, é escravizado também, consegue
libertar-se e tenta, sem sucesso, libertar o planeta oprimido. Em outras
situações, as tentativas de ajuda do surfista acabam gerando problemas maiores
ou são mal interpretadas. Ele acaba sempre se sacrificando por pessoas que não
o reconhecem.
Pode-se associar o símbolo do
surfista ao arquétipo do louco, o número zero do Tarô, que representa o eterno
passageiro, o ‘moto-perpétuo’, a consciência do universo sempre impermanente. O
surfista está sempre em trânsito, sempre procurando voltar para o lugar do qual
saiu. E o único ‘Destino’ possível é a tentativa sem esperança de retorno a sua
‘Origem’. Ele é privado de seu passado e de seu futuro, é um prisioneiro do
eterno presente.
Além dessa ‘espiritualidade laica’ embutida
no panteão cósmico do universo; e de sua ‘neutralidade política’ impossível em
relação às injustiças sociais dos planetas que visita, o Surfista Prateado como
personagem tem ainda características pessoais e estilísticas bem específicas.
Em nossa sociedade, os surfistas têm
um comportamento singular em relação a outros desportistas. Em contato direto
com a natureza, literalmente à margem da sociedade (ou à beira-mar), eles
desenvolvem um individualismo não competitivo, semelhante ao comportamento
felino - uma série de características subjetivas dos praticantes desse esporte
que são incorporadas às suas personalidades: a honra, a paciência, o gosto pelo
equilíbrio, o respeito à natureza, o prazer lúdico da criatividade, a solidão
do viajante ...
Acrescente-se a essas qualidade
comuns aos surfistas, o temperamento frio e introspectivo (pouco afeito a
piadas ou a exageros afetivos), os pensamentos sempre filosóficos e líricos, a
atitude pacífica e nobre. E, principalmente, o visual todo branco prata da
energia cósmica das estrelas. A prata, segundo Andraus, se referindo
especificamente ao Surfista Prateado, é “símbolo de pureza e de purificação da
alma” (ANDRAUS, 2008, p.4).
Ele não come nem se alimenta. É
incapaz de mentir. Não tem necessidades nem desejos. Sua prancha é feita da
mesma energia cósmica de seu corpo e se comunica telepaticamente com o
surfista.
5.
Conclusão
Gazy Andraus estuda o Surfista
Prateado como símbolo do self, como um herói crístico – ao lado de Thor e do
Superman. Os três foram banidos de seus lugares de origem para viver na terra
uma existência heroica.
No caso do surfista em particular,
Andraus enfatiza ainda sua relação simbólica com o Quarteto Fantástico, em que
o herói funciona como um quinto elemento (o Coisa seria a terra; Sr. Fantástico
(o homem-elástico) representaria a água; Moça-Invisível, o ar; e Tocha-Humana,
o fogo).
A tese principal de Andraus - de que
o Surfista Prateado é um protagonista cuja narrativa descreve um processo do
tipo espiritual, passível de ser pensado pela Jornada do Herói de Campbell –
certamente é verdadeira. Porém, é preciso admitir que o personagem não se
encaixa bem no conceito transgressor e violento de herói de Lévi-Strauss. O
surfista não tem o desejo de vingança ou de reparação das injustiças que
sofreu. E é justamente isso que o torna um herói tão ‘cool’.
O Surfista Prateado não é apenas um
símbolo de transcendência espiritual, mas também está associado ao arquétipo do
eterno estrangeiro, ao destino trágico de vagar permanentemente através de
universos passageiros. Como função narrativa, seu personagem é um protagonista
que tenta compreender e modificar sua relação com o antagonista, tornando-o um
aliado. Seu único desejo e motivação é o retorno ao seu planeta natal –
escondido por Galactus após sua libertação/traição.
Geralmente, a história do surfista se
divide entre antes, durante e depois de ficar preso na Terra. Antes de
encontrar o Quarteto Fantástico o surfista era apenas um sub vilão. Na terra,
se converteu em um super-herói. E depois tornou-se um viajante das estrelas,
dando um conteúdo poético a seu destino trágico.
A Marvel anunciou que os próximos
filmes dos Vingadores, previstos para 2017, serão baseados nas histórias em
quadrinhos ‘Guerra Infinita’ e ‘Aniquilação’ – em que o Surfista e Galactus têm
uma participação crucial. Nessas narrativas, praticamente todos os heróis da
Marvel se juntam contra Thanus; e vários personagens do universo Marvel são
repaginados ou desaparecem. Será que o surfista voltará a servir a Galactus
como arauto? Conseguirá finalmente voltar ao seu planeta natal? Ou sucumbirá
junto a seu mestre – como prevê a saga Réquiem?
6.
Referências bibliográficas
ANDRAUS, Gazy. A questão espiritual nas histórias em quadrinhos de
Thor, Surfista Prateado e Super-Homem. XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Natal, RN – 2
a 6 de setembro de 2008.
CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil
Faces. São Paulo, Editora Cultrix/Pensamento, 1995.
______ O Poder do Mito. Editora Palas
Athena, São Paulo, 1990.
LEVI-STRAUSS, Claude. O
cru e o cozido: Mitológicas I. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
_____Do mel às cinzas:
Mitológicas II. São Paulo: Cosac
Naify, 2005.
_____A origem dos modos à
mesa: Mitológicas III. São
Paulo: Cosac Naify, 2006.
_____O Homem nú: Mitológica
IV. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
7.
Referências audiovisuais
Silver
Surfer – Minissérie de desenho
animado de 13 episódios. Ano produção: 1998. Dirigido por Roy Allen Smith e
Tony Pastor Jr. Outubro de 1998. Gênero: Ação, Animação, Ficção. Países de
Origem: Estados Unidos da América. Roteiro: Jack Kirby e Larry Brody. Elenco:
Gamora: Alyson Court; Amber: Aron Tager; The Master of Zenn-La (voice): Bernard
Behrens; Nietr: Camilla Scott; Shalla-Bal: Cedric Smith; Mentor: Chris Britton;
Zarek: Colin Fox; Uatu: David Calderisi; Kiar: David Hemblen; Supreme
Intelligence, Husseri: Dennis Akayama; Watcher Prime: Don Francks; Kalek:
Elizabeth Hanna; Kili the Troll:
Elizabeth Sheperd; Infinity: Gary Krawford; Thanos: Howard Jerome; Galactus: Jennifer Dale; Eternity: John Stocker; Ivar: Karl Pruner; Lady Chaos: Lawrence Bayne;
Zedaro: Len Doncheff; Raze: Lorne Kennedy; Planetary Essence: Marc Strange;
Lord Glenn: Michael Copeman; MacLag: Nicole Oliver; Gamma Jen Beth: Norm
Spencer; Drax the Destroyer: Oliver Becker; Adam Warlock: Paul Essiembre;
Silver Surfer/Norrin Radd: Rick Bennent; Votrick: Robert Bockstael; Pip the
Troll: Roy Lewis; Ego the Living Planet: Shirley Douglas; The Universal Sourge:
Tara Rosling; Frankie Raye/Nova: Valerie Buhagiar; e Shellaine: Alison Sealy-Smith.
Fantastic Four: Rise of the Silver
Surfer (Quarteto Fantástico e o
Surfista Prateado). Estados Unidos. 2007 • cor • 91 min. Direção: Tim Story.
Produção: Avi Arad, Bernd Eichinger, Ralph Winter. Roteiro: Don Payne, Mark
Frost. Elenco: Ioan Gruffudd, Jessica Alba, Chris Evans, Michael Chiklis.
Género: Aventura, Ação. Música: John Ottman. Cinematografia: Larry Blanford.
Edição: William Hoy, Peter S. Elliot. Produção: Marvel Studios; Constantin
Film; Ingenious Film Partners. Distribuição: 20th Century Fox. Lançamento:
junho de 2007. Idioma: Inglês.
8.
Referências gráfico-visuais
Surfista Prateado: Parábola. Roteiro: Stan Lee. Arte: Jean Giraud - ‘Moebius’.
Cores: Mark Chiarello, John Wellington. Letrista: Júlio Nogueira. Tradutor:
Eduardo Tanaka, Bernardo Santana. Editor original: Joe Quesada, Margaret Clark.
Publicada originalmente em Silver Surfer, The (1988) n° 1/1988 - Marvel Comics
(Epic Comics), n° 2/1989 - Marvel Comics (Epic Comics). Editora: Panini. Publicado em: março de 2014.
Surfista
Prateado: Réquiem.
Roteiro: J. Michael Straczynski. Arte: Esad Ribic. Letrista: Júlio Nogueira.
Tradutor: Fernando Lopes, Jotapê Martins. Editor original: Joe Quesada, Axel
Alonso. Publicada originalmente em Silver
Surfer: Requiem (2007) n° 1/2007 - Marvel Comics. Editora: Panini.
Publicado em: novembro de 20
[1] Doutor
em ciências sociais, professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia
da UFRN.
[2]
Após, investigar durante 20 anos
diferentes culturas ameríndias, realizando uma ampla a análise estrutural de 813 mitos nativos das
duas Américas com algumas variantes; Lévi-Strauss publicou o maior e mais completo estudo sobre o mito do
herói (2004; 2005; 2006; 2011). O
mito de referência é o ‘desaninhador de pássaros’, que serve como fio condutor
de todas as análises que se seguem. A narrativa foi colhida pelo próprio
Lévi-Strauss quando esteve no Brasil, estudando os índios Bororo do Mato Grosso
e conta a história de um incesto cometido por um índio com sua mãe. Ao
descobrir a transgressão, o pai expulsa o filho. O herói vai para dimensões
desconhecidas e rouba o fogo de seres mágicos. Em algumas dessas lendas, o fogo
é dado em troca de uma aliança e de um casamento do herói nativo com a filha de
seres encantados. Então, dono de grande poder, volta à sua terra e mata o pai,
a mãe e todos que o humilharam no passado. O mito assim tanto prescreve o tabu
como sua transgressão heroica e destrutiva. Esses transgressores dos limites
entre natureza e cultura estão destinados a se tornarem senhores do fogo e da
guerra. A estrutura do mito do desaninhador de pássaros compreende e explica,
com suas variações, todas as narrativas em quatro etapas: a transgressão do
tabu, o castigo, a conquista do fogo e a vingança da exclusão através da destruição
generalizada. O fogo, nessa perspectiva, representa a tecnologia que transforma
a Natureza (o cru) em Cultura (o cozido). Enquanto alguns suspeitam que o fogo,
a aliança e o casamento representam a entrada do homem branco na vida indígena
ou a sua previsão mítica; outros consideram que os ‘homens do céu’ são seres
alienígenas. O fato que a descoberta do fogo desencadeou um desequilíbrio no
universo humano. Os homens praticamente não caçavam nem comiam carne antes do
advento do fogo controlado e até hoje não têm a anatomia e fisiologia adequadas
para serem carnívoros. O advento do fogo nos transformou, não apenas em animais
carnívoros, mas, sobretudo, em uma nova espécie predadora desequilibrando a
cadeia alimentar e o meio ambiente.
[3]
Joseph Campbell (1990, 1995), comparando diferentes narrativas mitológicas,
elaborou um modelo chamado de Jornada do Herói, em que o herói abandona a vida
ordinária, mergulha no desconhecido e retorna à dimensão cotidiana, composto 17
momentos. A ideia de universalidade psicológica das narrativas resulta no
conceito de ‘Monomito’, ou seja, de que todas as histórias são na verdade a
repetição de uma única estrutura narrativa.
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