PORQUE (AINDA) SOU ANARQUISTA
Notas para uma teoria política cyberpunk
Marcelo Bolshaw Gomes[1]
Resumo:
O presente texto atualiza o pensamento anarquista com base na teoria dos
quatro espaços antropológicos de Pierre Levy (1993, 1998): Espaço da Terra,
Espaço do Território, Espaço da Mercadoria e Espaço do Saber.
Palavras-chave:
Anarquismo1; Cibercultura2; Espaço antropológico3.
Abstract: This text updates anarchist thought based on the
theory of Pierre Levy's four anthropological spaces (1993, 1998): Space of
Earth, Space of Territory, Space of Merchandise and Space of Knowledge.
Keywords: Anarchism1; Cyberculture2; Anthropological
space3.
1.
Introdução
Em 2020, arrumei alguns desafetos
devido ao texto “Porque não sou marxista (mas continuo estudando sociologia crítica)”, em que afirmo que Pierre Bourdieu e
Michel Foucault são muito mais radicais do que Marx. Entre as várias críticas
que recebi, a mais interessante me acusa de confundir deliberadamente ideologia
política com teoria social; e que eu deveria, ao invés de explicar “o que não
sou”, dizer em que realmente acredito, uma política propositiva a partir da
sociologia contemporânea.
Então, surgiu a ideia deste texto,
não mais voltado para mostrar ao público político uma teoria social mais crítica
e contundente que o marxismo, mas, sobretudo, para repensar uma ideologia
política mais completa, atual e sociologicamente fundamentada do que a
professada pelo senso comum de direita e de esquerda.
Anarquia é “sem governo”, “sem
Estado” e, para alguns, “sem nenhuma forma de autoridade” imposta, sem coerção.
Essa certamente é uma definição utópica: uma sociedade sem hierarquias em que
ninguém seja obrigado a fazer o que não quer contra sua vontade, em que todo
trabalho seja voluntário e cooperativo. Há também versões românticas, que veem
no anarquismo uma filosofia da liberdade, quase um sentimento anti autoritário,
que se modifica com o tempo, adotando várias feições[2].
O estereótipo do anarquista como uma
pessoa indisciplinada, um “sem regras”, perdura, embora a verdade seja
justamente o oposto: anarquistas são aqueles que lutam por autonomia através da
auto-eco-organização de suas vidas.
2.
Autopoesis Social
Quando me declaro politicamente anarquista,
não é um virtude de Bakunin e Proudhon. Aliás, concordo com as críticas de Marx
e Lenin a esses autores. E, embora goste de Emma Godman, Piotr Kropotkin[3]
e de Henry David Thoreau (e concorde com suas ideias sobre feminismo,
mutualismo e desobediência civil), considero que essas ideias são distorcidas e
apropriadas pela direita, como, por exemplo, pelo presidente da Argentina Javier
Milei e pela ideologia anarco-capitalista. Meu anarquismo tem mais a ver com a
Guerra Civil Espanhola[4],
com a contracultura e com o conceito de ‘Autopoesis’
(a auto-eco-organização) elaborado pela teoria da complexidade.
Autopoiese é um termo que significa
autoprodução, e que se refere à capacidade dos seres vivos de se produzirem a
si próprios. A palavra vem do grego autós, que significa "por si
próprio", e poiesis, que significa "criação, produção". Autores
como Henri Atlan e Edgar Morin dão ênfase à auto-organização. Trata-se da
atividade que faz um sistema ter autonomia nas interações em relação ao ser
meio ambiente. Um sistema altamente organizado (ou complexo) resiste a mudanças
ambientais pela sua diversidade e autonomia.
Nessas concepções, o sistema começa e
termina pelo observador (por mim, por ti) e filtra o ruído externo, oferecendo
níveis mais estáveis de definição. O sistema social filtra o meio ambiente e é
filtrado pelo sistema cognitivo. Os sistemas são indissociáveis da observação.
Assim, é possível existir contradições entre diferentes observadores.
Rousseau diz que a Sociedade Civil
através de um contrato social entre indivíduos livres; Hobbes considera que o Estado
é um acordo que impede a guerra de todos contra todos. Na primeira concepção, a
Sociedade Civil precede o Estado, a cooperação frente à natureza precede a
guerra e a dominação de classe. “O homem
é um animal gregário”, como diz Aristóteles. Já na concepção de Hobbes (e também
de Platão, Maquiavel, Marx, entre outros), “o
homem é o lobo do homem” e o Estado se formou pelo conflito antes da sociedade
e da propriedade privada.
Existem anarquistas dos dois lados,
alguns acham que a violência organizou a sociedade e outros acreditam que a
cooperação frente a natureza gerou o vínculo social. Particularmente, estou
nesse segundo grupo em virtude do Ensaio
sobre a Dádiva (Mauss,1974). Outra demonstração importante da comunidade
anterior ao Estado é A Sociedade contra o Estado (Clastres,1978) sobre os índios Guaranis do Paraguai.
“Quem veio antes”, no entanto, é apenas um
eufemismo para duas interpretações distintas de Estado. Para Bobbio (2000b, 37),
a concepção liberal considera que o Estado é formado pela defesa dos interesses
coletivos de seus cidadãos enquanto a concepção totalitária entende o Estado
como o conjunto funcional de todas instituições. Para direita, “o estado é a
nação politicamente organizada dentro de um território” e, para esquerda,
Gramsci (2000) por exemplo, tanto há “o estado ampliado” (a totalidade da superestrutura)
como o “estado restrito” (as instituições jurídico-políticas, as ações sociais
de coerção, a metade ‘não-ideológica’ da superestrutura).
Já o ‘Mercado’ surgiu após o Estado e
a Sociedade Civil, mas também tem várias datas em virtude de sua definição.
Como espaço, o mercado é equivalente à feira e é anterior à moeda e à mediação
das trocas. Como sistema acoplado, que ganhou autonomia através da
auto-organização, o mercado é bem recente e se confunde com o capitalismo ou
economia de troca orientada para o lucro[5].
Sociedade Civil, Estado e Mercado - essa
subdivisão em três esferas sociais (ou do sistema social nos subsistemas
econômico, político e cultural) é comum em vários autores contemporâneos,
inclusive em Habermas (e na teoria da democracia deliberativa) e em Giddens (e
em sua política de terceira via).
‘Democracia deliberativa’ é a
democracia representativa ampliada pelos meios de comunicação, em que os
debates, conflitos e as decisões parlamentares são divulgadas, testadas e
legitimadas pela opinião pública. Habermas acredita na ampliação da esfera
pública pela sociedade civil.
Essa ideia é retomada com a proposta
de uma Política de Terceira Via (2001a, 2001b), Giddens elabora uma resposta ao
impasse entre a socialdemocracia tradicional (o keynisianismo e o estado do
bem-estar social) e o neoliberalismo (ou o estado mínimo aberto às trocas
externas) com a ampliação do papel desempenhado pela Sociedade Civil. Giddens
acredita que apenas democratização da democracia no interior da Sociedade Civil
pode mediar o conflito entre os interesses econômicos e políticos (2003). Daí
surgiram as ONGs, as agências reguladoras de segmentos econômicos, as políticas
público-privadas em comunidades.
Nesse modelo, três instâncias de auto-organização
diferentes lutam entre si para absorver e controlar as outras. O Mercado quer
reduzir o Estado ao mínimo; o Estado deseja controlar o Mercado; a Sociedade
Civil é disputada pelos dois, que tenta resistir.
3.
A negação da negação
Há uma frase circulando pela internet,
atribuída a Paulo Freire, que se uma concepção política afirma que “está acima
da contradição entre direita e esquerda, então, certamente, essa concepção é de
direita.”
É possível que a piada se aplique à
socialdemocracia europeia (na verdade, ao partido trabalhista britânico), mas, o
próprio Freire afirma que “o importante para se determinar a “base ideológica”
(de uma concepção de mundo) é que ela seja mais ou menos inclusiva e
abrangente. Então, posto isso, é possível uma concepção mais ampla que a
polaridade entre Estado e Mercado. Um olhar que represente a perspectiva da
Sociedade Civil.
Pensadores como Noberto Bobbio, por exemplo,
colocam a teoria política acima dessa polaridade moderna, que surgiu nas
bancadas do parlamento burguês na revolução francesa. Para ele, apesar de
opostos, os contrários são também complementares, existindo inclusive “um
movimento pendular” entre as duas posições na administração e nas eleições.
No campo da argumentação racional, a direita
defende a liberdade econômica; a esquerda, a igualdade individual – mas ninguém
fala da solidariedade. A direita
quer cortar os gastos e esquerda deseja subir os impostos – mas todos se
conformam com o endividamento público. Ou temos a regulamentação
econômica com anarquia moral – como quer a esquerda; ou a anarquia econômica
com fortes controles morais – como deseja a direita. E, no campo do
convencimento emocional? Para esquerda, o mal é o capitalismo, o mercado, as
grandes corporações, os EUA; para direita, o mal é o estado corruptor, a
transgressão sexual, os imigrantes e o crime organizado. Mas, o mal em si não
existe e esses inimigos são apenas fantoches emocionais de manipulação. A
esquerda se motiva pelo medo; a direita, pelo ódio. São os dois lados de uma mesma moeda, da mesma
estrutura de poder.
Esta também é a grande causa da apatia
política e eleitoral dos mais jovens na democracia representativa em todo mundo.
A maioria, ou os que se identificam com a Sociedade Civil, desejam um Estado
mais associativo / um Mercado mais cooperativo.
Além disso, a ideia de uma ‘política sem
inimigos’ (ou acima do bem e do mal) também é bastante atrativa do ponto de
vista eleitoral. Daí a política de Terceira Via ter se tornado uma estratégia
de diferentes grupos em um contexto de polarização, pois aparenta maturidade e
bom senso. Mas, essas iniciativas, depois de desmascaradas, só aumentam a
apatia, fortalecendo ainda mais a polarização.
Qual, então, a solução para esse impasse?
4.
A Era da Informação
Para Pierre Levy (1998), existem quatro
“espaços antropológicos” que se sobrepõem como níveis históricos e simultâneos
de virtualização: o Espaço da Terra, o Espaço do Território, o Espaço do
Mercadorias e o Espaço do Saber.
·
O Espaço da
Terra ou Natureza corresponde ao meio ambiente imaginado pela
comunidade primitiva. Ele não é o meio ambiente em si, mas uma representação.
Em seus primeiros trabalhos (Levy, 1993), esse espaço é definido pela
oralidade, pelo Mito e pela linguagem enraizada no corpo e pelo ‘eterno
retorno’ de um tempo circular e cosmológico. Nesse espaço, emissor e receptor
partilham um contexto único: o modelo de interação um-um.
·
O Espaço
do território (e do Estado) é marcado pelo aparecimento da vida
sedentária, da agricultura, dos deuses solares, da escrita, do direito e das
primeiras cidades. Esse espaço é a segunda virtualização, abstração do espaço
físico e materialização cultural, é corresponde ao começo da História e da
memória social. Passam a existir múltiplos contextos no espaço/tempo,
constituindo um modelo de interação um-muitos.
·
O Espaço
das Mercadorias nasce de dentro do Espaço do Território, como uma estratificação
sistêmica econômica, o capitalismo e sua lógica de concorrência e lucro. O
mercado surge da desterritorialização do Estado, transformando todas “as
posses” em mercadoria. Nesse modelo, os espaços antropológicos não são apenas
fases históricas que se sobrepõem, mas realidades simultâneas em
desenvolvimento, virtualizações, em que as últimas tentam se sobrepor e
controlar as primeiras.
·
E, finalmente, o Espaço do Saber, o ciberespaço, em que tudo se torna informação,
se datifica. Nesse espaço, a organização
se dá de forma flexível e complexa e por meio de redes digitais em tempo real; o
modelo de interação é muitos-muitos, em que todos são interlocutores e há uma
reunificação dos contextos no virtual. Ainda estamos em um momento inicial da
construção desse espaço antropológico, cujo a função é controlar os espaços
anteriores/exteriores: das mercadorias, dos territórios e do meio ambiente.
Levy define ciberespaço como o quarto espaço
antropológico, sobrepondo-se à Terra, ao Território e ao Mercado. Os
Territórios são virtualização da Terra; a Mercadoria é uma virtualização dos
Territórios; e o saber, uma virtualização das Mercadorias. Um exemplo dado por
Michel Serres: nosso nome e sobrenome são nossas identidades no espaço
antropológico da Terra; nosso endereço, nossa identidade no espaço territorial;
a profissão, a posição que ocupamos no mundo das mercadorias; e, atualmente,
estamos definindo uma quarta identidade para o espaço antropológico do saber: a
senha, a impressão digital do polegar, a íris do olho, o DNA.
Nesse modelo, mais do que explicar os conflitos
institucionais, o objetivo é imaginar como seria habitar em outros universos
simultaneamente. Nosso corpo está no meio ambiente, mas também nas dimensões
política, econômica e cultural.
Vejamos agora como o Espaço do Saber se
relaciona com os espaços que o antecederam. Em relação ao Espaço da Mercadoria,
a informação está provocando várias mudanças, principalmente a passagem da
economia industrial (e da cultura de massas) para uma economia de consumo e
para segmentação interativa dos públicos.
5.
A desmaterialização da economia
O
final do século XX marca a passagem de um capitalismo industrial, baseado na
produção, para o capitalismo informacional orientado pelo consumo. Pode-se
dividir esse processo em duas etapas: o período dos meios de comunicação de
massa e a fase das redes sociais, cada uma com um conjunto de efeitos sobre a
economia. É bom lembrar: os meios de comunicação foram uma parte do mercado que
se tornou autônoma e passou a mediar as relações econômicas. As redes sociais
(na verdade, a internet e a telefonia móvel) segmentaram em públicos a cultura
de massas.
Castells
(2009) descreve essa transição do industrial para as redes em detalhes: os bens
simbólicos superam os físicos em valor e volume em âmbito global, o setor
terciário (comércio e serviços) passa a suplantar a indústria na maioria dos
países. Capital e trabalho tendem cada vez mais a
existir em diferentes espaços e tempos: o espaço de fluxos e o espaço dos
lugares, tempo instantâneo de redes computadorizadas versus tempo cronológico
da vida cotidiana. O capital é global; o trabalho, local.
Na passagem da produção industrial
para o consumo informacional, o marketing se tornou não apenas um modo de
adaptação das empresas ao mercado, mas sim uma forma de integração de todas as
instituições à sociedade. Daí a possibilidade de um marketing para partidos,
governos, ONGs e universidades e outras instituições sociais diferentes das empresas.
O marketing pode ser visto como uma ferramenta de reorganização institucional
para sociedade de consumo. Escolas, igrejas, associações, o setor público
passaram todos a repensar suas práticas sociais em função das necessidades de
consumo segmentado.
Além disso, na indústria de massa, o
marketing era indiferenciado: um único produto; uma única forma de
distribuição; uma única forma de comunicação; e uma única embalagem para todos
os segmentos. O mercado ignorava as diferenças existentes entre os consumidores,
direcionando a ação para o conceito de consumidor médio. As empresas ofereciam
o mesmo produto, ao mesmo preço, com a mesma promessa e nos mesmos locais a
todos os consumidores.
Com a segmentação interativa gestada
pelas redes sociais, o mercado foi subdividido em um número reduzido de
subconjuntos. O processo de segmentação comporta quatro parâmetros: os
critérios de segmentação em si (demográficos, geográficos, sociais e
econômicos); as clivagens de personalidade e de estilo de vida (mensuráveis
através da renda, da escolaridade e do nível de sofisticação cultural); e os
critérios de comportamento e de atitudes psicológicas relativamente ao produto
(aferidas através de pesquisas de opinião).
Essa “datificação” do consumidor leva
a consequências ainda não entendidas em seu conjunto, mas, com a utilização de
algorítmicos e da Inteligência Artificial, é possível prever o comportamento
específico de cada um, não apenas aos produtos e serviços, mas também às ideias
e propostas. E esse modelo de antecipação baseado nas recorrências reforça
ainda mais as tendências conservadoras e inibindo mudanças e novas opções. A
datificação é instituicionalização digital do habitus.
Além disso, a segmentação também
gerou um marketing e fidelização dos fornecedores; bem como o endomarketing,
voltado para os funcionários “vestirem a camisa da empresa” - muitas vezes
acompanhado com políticas de distribuição dos lucros e planos de carreira.
Porém, a grande mudança em curso provocada pela segmentação interativa das massas
foi a “exportação” do marketing para fora do mercado, gerando um processo de
adaptação de instituições não comerciais à economia de consumo. O consumidor é
mais prestigiado que o cidadão.
Então, observando a relação entre os
espaços do saber e da mercadoria, destacamos três aspectos: a passagem para uma
sociedade de consumo pós-industrial, a segmentação interativa da cultura de
massas e, finalmente, ao consumo datificado, em que as informações sobre cada
um são usadas em simulações de comportamento.
O regime do consumo e a segmentação
interativa são avanços no sentido de otimização dos fluxos econômicos e
comunicacionais, mas também aumentam ainda mais a desigualdade social,
ampliando a exploração dos subalternizados através exclusão econômica e digital.
O consumo é um regime de exclusão de populações. E essa exclusão gera um desejo
desesperado de submissão.
6. O fim do governo invisível
O segundo passo em nossa análise
sistêmica é observar o efeito do Espaço do Saber sobre o Espaço do Território. Vários
autores afirmam que a mídia usurpou o lugar de fala do rei, que o poder de dar
a última palavra foi terceirizado pelos meios de comunicação e que esse “olhar
externo ao poder” é um dos pilares da democracia. Mas, a democracia
representativa nunca conseguiu cumprir a promessa de transparência (Bobbio, 2000a)
e de acabar com “o governo invisível” (o lobby, as negociações de bastidores, a
corrupção). Ao contrário, a hipervisibilidade seletiva imposta pelos meios de
comunicação (e sua inevitável espiral de silêncio) encobre os processos
políticos de suborno e chantagem, gerando ainda teorias de conspiração absurdas
de que a um governo mundial secreto, por exemplo.
Aqui também há uma fase em que a
imagem que a sociedade fazia de si era mais monolítica e outra fase em que as
redes sociais fragmentaram o império da mídia, implodindo a democracia
representativa através da participação direta. A transição econômica do modo de
produção industrial para o modo informacional orientado pelo consumo
manifesta-se no campo político como a passagem do modelo de interação panóptico (um-muitos) para o modelo de interação rizomático em que
todos os pontos se comunicam entre si (muitos-muitos).
Deleuze (2008), citando Foucault, diz
que essa transição é uma passagem das instituições de confinamento da sociedade
disciplinar para uma sociedade de controle. Foucault (2017) descreve a
transição entre um regime de punição baseado no castigo corporal para o aprisionamento
em massa, não apenas através dos primeiros presídios, mas também das escolas,
hospitais, fábricas e outras organizações de confinamento, formando uma
sociedade disciplinar em oposição à antiga sociedade da soberania. Deleuze
complementa o pensamento de Foucault propondo uma passagem da sociedade
disciplinar para uma sociedade de controle em rede a céu aberto.
Byung-Chul Han (2019) considera que a
sociedade de controle produz um trabalhador que é seu próprio patrão, que a
submissão foi interiorizada como uma forma responsabilidade social. Na
sociedade disciplinar, o coletivo impõe regras e rotinas para o adestramento do
corpo; na sociedade de controle, incorporamos mentalmente as regras e as
rotinas.
Um bom exemplo da diferença entre
disciplina e controle é a noção de “Moratória Ilimitada”.
O
controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado,
ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem
não é mais o homem confinado, mas o homem endividado (DELEUZE, 2008, p. 224).
Quando nascemos, contraímos uma
dívida com tudo já foi feito antes de nós. E passamos o resto da vida com essa
obrigação inconsciente de ressarcir a sociedade pelo que nos foi entregue e que
nunca conseguiremos pagar. O dispositivo de controle da moratória ilimitada é
uma dívida social inconsciente que nos foi imputada e que nunca conseguiremos
saldar. A inversão da “Dádiva” e de sua retribuição voluntária.
Há também muitos efeitos secundários
importantes da relação entre o Espaço do Saber com o Espaço do Território. A
desburocratização é o resultado mais evidente – e isso não é de pequena monta.
O Estado aumentou seu poder de controle em abrangência e em detalhe, diminuindo
drasticamente o custo e a possibilidade de erros.
O efeito mais impactante, no entanto,
é o fim da privacidade em geral (e dos sigilos bancário, postal e telefônico).
Hoje somos todos rastreáveis em tempo real pelo GPS dos celulares. Deleuze bem
antes da internet profetizou que usaríamos “coleiras eletrônicas”. Porém, o
controle age principalmente sobre os rastros que deixamos, identificando o que
compramos, o que desejamos e o que não queremos.
Não é o rei que está nú, mas seus
súditos! E ninguém percebe a própria nudez, apenas o poder que sabe tudo sobre
todos.
A transparência total é o fim desse
'governo invisível' que tudo sabe e tudo vê. A raiz de todas as manipulações é
a existência de informações privilegiadas. Não existem segredos em uma tribo
indígena. Ou melhor: segundo a lenda tupi, Jurupari instituiu o segredo da casa
dos homens para mulheres, fundando o patriarcalismo primitivo. Hoje vivemos em
regime em que as ideias são engavetadas, em salas fechadas, em
prédios-caixotes, em cidades formigueiros. A informação está escondida e
supervalorizada. E a mentira, a informação falsa, existe gratuitamente. Há um
jogo de poder constante pela crença em informações inacessíveis.
A telepatia que prevejo não é
individual (a capacidade de ler a mente alheia), mas sim uma cognição coletiva,
um consenso compreensivo de um grupo sobre algum objeto ou acontecimento. A
'telepatia de rebanho' - que a mídia ampliou e as redes segmentaram e potencializaram
ainda mais – é uma forma de consciência em que todas as informações são
compartilhadas imediatamente.
7.
A simbiose com as máquinas
O efeito da informação sobre a
mercadoria é o predomínio consumo sobre a produção e o processo de segmentação
interativa da cultura de massas. A informação está customizando a mercadoria e
excluindo parte da sociedade do processo. O efeito da informação sobre o
território é o poder através do controle psicológico e de dados. Ele permite
uma democratização relativa, inclusive no interior das instituições, mas produz
a moratória ilimitada, a submissão individualista e apatia existencial.
O efeito da informação sobre o espaço
da terra, tanto visto como meio ambiente como como corpo, é a tecnologia, as
ferramentas com as quais mudamos o mundo.
Apenas a automatização da produção
material é que pode acabar com o trabalho obrigatório e com a divisão de
classes e de gênero. Porém, essa mudança não será automática, nem depende
apenas de uma substituição de homens por máquinas. Ela depende principalmente
de auto-organização e da tecnologia ser partilhada por todos.
É inacreditável que a esquerda
(incluindo aí grande parte do anarquismo) não percebe o papel estratégico da
tecnologia na construção de mundo sem dominação. A direita, por outro lado,
entende as mudanças que a tecnologia instaura no Estado e no Mercado, mas as
utiliza para manutenção das desigualdades.
Luta pela diminuição gradativa da
jornada de trabalho (e/ou pela substituição progressiva do trabalho por
atividades educacionais e culturais), bolsas de estudos em todos os níveis,
reestruturação dos meios de comunicação com base comunitária, intercâmbios internacionais
entre cidades – são algumas iniciativas dessa forma de ação política. Mas, o
principal é o resgate da utopia social tecnológica, de um projeto de sociedade
em que os meios de comunicação sejam mediadores imparciais dos interesses
políticos e econômicos.
8.
Conclusão
Com a extinção de parte da humanidade
em virtude de seu comportamento autodestrutivo, os sobreviventes terão que dar
um salto quântico em suas relações entre si e com o meio ambiente. Oxalá, o
imperativo do autocuidado e a onipresença do 'outro em mim' sejam os pilares
éticos de um novo comportamento. Esse salto para níveis mais complexos e
participativos de organização, exige também o desenvolvimento de novas
competências de comunicação semi telepática, em que a mentira não será mais
possível. O 'controle da informação' é a última trincheira do estado ante o
retorno da comuna primitiva tecnologicamente potencializada no final da história.
O último bastião do poder a ser derrubando antes da utopia anárquica.
Sou anarquista porque acredito que a
Comunidade está no começo e no final da História. No começo, como comunidade
primitiva anterior ao Estado; e, no final, como uma utopia democrática
comunitarista, posterior ao Estado, ao Mercado e à divisão da sociedade em
classes sociais. Essa utopia passa muito mais por um redimensionamento
das desigualdades cognitivas que de uma redistribuição material das riquezas ou
de uma reorganização das relações de força.
Sou um anarquista pós-moderno
(Passeti, 2000) com viés feminista (acho que a dominação de gênero é a base da
dominação social) e ecológico, acredito que o crescimento econômico só é
legítimo através da produtividade (e não do aumento da produção). Sou favorável
à automatização do trabalho manual, à diminuição progressiva das horas de
trabalho, à educação integral voltada para o desenvolvimento ético, ao pleno
emprego.
Mas, principalmente, transparência. O
controle da informação passou a ser o ponto central do meio ambiente, da
democracia e do mercado. Por isso, mais do que derrubar o parlamento ou o
lucro, é preciso garantir o acesso universal à informação. É preciso lutar
contra o governo invisível e o império da hipervisibilidade seletiva.
E acho que o nome adequado para esse posicionamento
político é “Anarquismo Cyberpunk”.
Referências
bibliográficas
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Sociedade em Rede/ A Era da Informação: Economia, sociedade e cultura – Vol. 1. São Paulo: Paz e Terra,
2009.
Redes de indignação e esperança – Movimentos sociais na era da internet.
Tradução Carlos Alberto Medeiros. São
Paulo: Zahar, 2013.
CLASTRES, Pierre. A sociedade
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FOUCAULT,
Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão
/ tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 2019.
DELEUZE,
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GIDDENS, Anthony. Para Além da Esquerda e da Direita.
São Paulo: UNESP, 1996b.
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_____ A terceira via e seus críticos. Rio de Janeiro: Record, 2001b.
_____ O Mundo em descontrole o que a globalização está fazendo de nós.
Rio de Janeiro: Record, 2003.
_____ Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
GRAMSCI, Antônio. Cadernos
de Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma
categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
______ Teoria
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HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
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Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
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Edusp.
PASSETI, Edson. Anarquismos e Sociedade de Controle. Colóquio Foucault/Deleuze: O que estamos
fazendo de nós mesmos? São Paulo: Unicamp, 2000.
[1] Professor
titular do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN, coordenador
da base de pesquisa GEMINI. E cyberanarquista.
[2]
Para conhecer melhor o anarquismo, seus conceitos, suas fases e vertentes. V. a
Biblioteca Anarquista Lusófona <https://bibliotecaanarquista.org/special/index>
.
[3]
Foi o autor de livros considerados clássicos do pensamento libertário,
entre os quais se destacam A Conquista do Pão; Memórias de um Revolucionário (ambos
publicados em 1892); Campos, Fábricas e Oficinas (1899);
e Mutualismo: Um Fator de Evolução (1902). V.tb: Algumas considerações sobre o geógrafo anarquista Piotr Kropotkin e a comunidade rural Yuba em Mirandópolis.
[4]
O documentário “Sem deuses, Sem mestres:
História do Anarquismo “, de 2006, dirigido por Tancrède
Ramonet (legendado em português) é subdividido em três partes – de 52
minutos cada – com a história política do movimento anarquista: A paixão por destruição (1840-1906); Terra e Liberdade (1907-1921); e Em memória do derrotado (1922-1945).
[5]
A definição abstrata de mercado por Adam Smith foi substituída pela segmentação
concreta provocada pelo consumo e pelo domínio financeiro. Agora, ou o mercado
representa os consumidores, ou se refere a um conjunto de empresas que formam
um setor específico da economia. Hoje, inclusive, de tão concreto, o mercado se
apresenta como um agente social com vontade própria, embora isso seja apenas uma
ilusão criada por seus porta-vozes financeiros e midiáticos. Aqui adotamos o
conceito de Mercado como espaço antropológico (ou sistema econômico) formado a
partir dos sistemas primários do Estado e da Natureza. Assim, tanto é uma
abstração das forças sociais como um elemento concreto de coerção indireta,
pela necessidade e pela comercialização dos desejos.
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