quinta-feira, 17 de abril de 2025

a seita aceita e/ou aceita a seita

 


A ONDA, A SEITA E A BOLHA IDENTITÁRIA

A retribalização pós-moderna dos grupos

 

Marcelo Bolshaw Gomes[1]

 

Resumo: Como indica o título, o texto discute três temas correlatos: o filme a Onda (2008), o conceito de Seita em psicologia social e a noção de Bolha, resultado da retribalização pós-modernas dos grupos nas redes sociais. O objetivo é comparar os três temas mostrando sua inter-relação e o método, a pesquisa crítica bibliográfica e documental. O resultado é que as atuais bolhas virtuais têm as mesmas características simbólicas das antigas seitas presenciais.

Palavras-chave: Cinema1; Psicologia de Seita2; Retribalização pós-moderna3;


1.      Introdução

Marshall Mcluhan (1972) definiu evolução da comunicação humana pode ser dividida em três fases: a tribalização (a comunicação oral), a destribalização (a comunicação escrita) e a retribalização (comunicação eletrônica). E essa ideia foi adaptada de diferentes formas. Vilém Flusser, enfatizando a representação do tempo, fala de pré-história (a simultaneidade cíclica), de tempo histórico (a continuidade linear) e de pós-história (simultaneidade contínua). Pierre Levy (1995) prefere “tecnologias da inteligência” e os modelos de interação: um-um (interlocutores em um único contexto presencial); um-muitos (o panóptico); e muitos-muitos (redes ou rizoma).

Entre os que enfatizam a organização como fator, como Maffesolli (1987) e Lemos (2007), no entanto, a ideia de retribalização pós-moderna ainda era profética e dependia da desfragmentação da cultura de massas. Pensavam em uma sociedade ainda no estágio histórico e convencional (a democracia representativa, o governo das regras escritas) caminhando para, através do desenvolvimento dos meios de comunicação audiovisuais, um regime pós convencional de cognição coletiva descentralizada (a sociedade retribalizada das redes e comunidades virtuais).

Mas ninguém esperava por um tsunami de seitas pentecostais, comunidades quilombolas, milícias digitais de direita e movimentos sociais aparelhados de esquerda. Além disso, com a segmentação interativa do mercado consumidor em nichos surgiram as bolhas virtuais. As bolhas não apenas deturpam as informações correntes, mas também produzem informações inverídicas com base em sua ideologia, se comportando de forma a impedir o debate democrático.

Hoje, os marqueteiros e web designers acreditam que as bolhas são tribos artificiais, criadas pelas redes sociais e que retroalimentam preferências de consumo. Porém, em uma perspectiva sociológico, é a bolha é uma representação de tendências sociais e históricas reais. A bolha é apenas uma representação virtual de grupos já existem e seus mecanismos de constituição são semelhantes aos de formação de coletivos menores que negam a vida democrática.

E aqui entra nosso primeiro tema.

 

2.      A Onda

A onda (2008)[2] é um filme ficcional alemão que conta uma história real: o experimento social da Terceira Onda, realizado pelo professor de história Ron Jones nos anos 70 em Palo Alto, EUA. No filme, o professor colegial Rainer Wenger (Jürgen Vogel) é indicado para ministrar um curso sobre autarquia (e não de anarquismo, como estava acostumado). Para demonstrar a seus alunos (que não acreditavam na possibilidade da Alemanha moderna voltar a ser nazista), Rainer propõem um experimento para mostrar como fácil é manipular as massas.

O professor, então, exige ser tratado por "Herr Wenger", muda as carteiras de lugar, colocando todos de frente para ele e posicionando os alunos segundo suas notas, de modo que cada dupla seja formado por um estudante com notas ruins e outro com notas boas. A ideia é que uns aprendam com os outros. Além disso, todo aluno que quiser fazer alguma colocação deverá levantar a mão e se expressar de forma militar.  Para empoderar coletivamente os alunos, Rainer faz uma marcha sem sair do lugar fazendo com que se sintam parte de uma única entidade, incomodando a turma de anarquismo, que está na sala a baixo da deles.

Continuando o experimento, Rainer então sugere que todos os alunos do grupo devem vestir uma camisa branca e calças jeans, para que não haja mais distinções entre os alunos. Mona (Amelie Kiefer), uma aluna relutante a fazer parte da proposta, diz que usar uniformes vai acabar com a individualidade de cada um (e mais tarde troca de turma e passa a integrar a classe de anarquismo). Outra aluna, Karo (Jennifer Ulrich) vai à aula do dia seguinte e descobre ser a única a não aderir ao uniforme.

Após uma rápida eleição, o nome "A Onda" (Die Welle) é escolhido. Além do nome, o grupo cria uma forma de saudação, que consiste em imitar o movimento de uma onda com o braço direito em frente ao peito. Criam também um símbolo, que é pichado por toda a cidade, inclusive na fachada do prédio da prefeitura. Além disso, o grupo promove festas onde só membros do grupo podem entrar, e alguns começam a hostilizar os não-iniciados.

A união do grupo altera o comportamento de vários integrantes. Bomber (Maximilian Vollmar) é um badboy valentão que passa de assediador a protetor de seu colega Tim (Frederick Lau). Tim é um dos que mais envolvidos, pois pela primeira vez ele se sente aceito em um grupo. Ele queima todas as suas roupas de marca e mais tarde aparece na casa de Rainer, oferecendo-se para ser seu segurança. Apesar do professor recusar, o rapaz dorme no quintal de sua casa. Sua esposa, Anke (Christiane Paul), também uma professora da escola, acredita que a situação já foi longe demais e pede para Rainer encerre o experimento. Ele, no entanto, a acusa de estar com inveja por ele estar fazendo mais sucesso com os alunos do que ela. Ofendida, ela o abandona.

Em virtude de uma briga generalizada durante o jogo de polo aquático, Marco (Max Riemelt), briga com a namorada Karo e a acusa de ter causado a briga que levou ao cancelamento da partida. Durante o desentendimento, Marco bate em Karo e a faz sangrar. Percebendo o que fez, ele vai até a casa de Rainer, onde pede que ele acabe com o movimento. Rainer então convoca uma assembleia com todos os membros no auditório da escola. No encontro, Rainer fecha as portas e discursa para os alunos, exaltando a atuação da seita e enaltecendo suas chances mudar a Alemanha. Marco protesta e Rainer o acusa de trair a confiança do grupo, pedindo que o tragam para o palco para ser punido. Rainer então faz os alunos perceberem o quão longe foram e como estavam sendo manipulados.

Inesperadamente, no entanto, Rainer decreta o fim do experimento, afirmando que provou seu argumento principal: de que a Alemanha pode voltar a se tornar um regime autoritário, mas Tim saca um revólver, se recusa a aceitar que a seita acabe com medo de voltar a ser sozinho e atira em sua própria boca. O filme termina com Rainer sendo levado preso pela polícia, enquanto os alunos, seus pais e os professores (incluindo sua esposa) o observam.

O filme retrata fielmente o processo de formação de uma Seita. Uma história real, não apenas em relação ao experimento escolar de Palo Alto, mas também de vários outros grupos que se radicalizam em torno da construção de uma identidade coletiva, nos fazendo pensar sobre como abrimos mão da individualidade em troca da aceitação.

A seita nos aceita e nós acabamos aceitando a seita.

 

3.      Teoria da Seita

A Seita é ‘uma manada que se destaca do rebanho’, incluindo a maioria e excluindo alguns como “bodes expiatórios”, despersonalizando os indivíduos em nome de uma identidade coletiva e de um líder carismático. Há seitas religiosas, políticas e com temas culturais específicos. Uma igreja dissidente, uma tendência de partido político, uma parte da torcida esportiva podem degenerar para o fanatismo identitário e se tornar uma seita.

As duas principais características das seitas são: a liderança carismática-autoritária e as crenças exclusivistas (as seitas frequentemente afirmam uma verdade singular que as diferencia do resto da sociedade).

  Há crenças explícitas e implícitas. Uma seita budista declara a crença nas quatro nobres verdades e na senda óctupla, mas suas crenças não declaradas (a impermanência, o “grande vazio”, a não existência do eu) é que vão diferenciar sua identidade. Da mesma forma, poucos adeptos da Biodanza leem Rolando Toro, mas todos acreditam que a prática é capaz de “dissolver suas couraças”. A Bíblia e o Capital de Marx são livros muito pouco lidos, mas muitos acreditam em vencer na vida pagando dízimo ou que a revolução é uma fatalidade histórica. “Vestir a camisa” da Seita é abraçar suas crenças não declaradas e até inconscientes. As crenças explícitas são apenas para propaganda externa.

Outras duas características secundárias importantes são o isolamento físico e psicológico dos membros (da família e dos amigos que não participam da Seita) e o controle rígido sobre comportamento, pensamento e até emoções, popularmente chamado de “lavagem cerebral”.  

Deste último ponto, é possível também destacar alguns elementos simbólicos importantes: os rituais (iniciações e celebrações) e as várias práticas distintivas: o acolhimento afetivo como tática de recrutamento; a culpa e a cobrança de gratidão como forma de manipulação permanente; e a visão dicotômica do mundo dividido entre "nós" e "eles" (ZAGO, 2022) [3].

No entanto, a característica mais visível é a exploração econômica dos membros. Em muitos casos, há demandas por tempo, dinheiro ou trabalho excessivo em benefício do grupo e do líder, às vezes sob a justificativa de um propósito maior. Na linguagem cotidiana, "seita" muitas vezes carrega um tom pejorativo, associado a grupos manipuladores que exploram seguidores emocionalmente, financeiramente ou até fisicamente. A exploração, muitas vezes voluntária dos adeptos, leva a todo tipo de abuso moral, sexual e a um regime de trabalho próximo ao da servidão.

Essas características (vistas no seu conjunto) variam em intensidade e nem todas estão presentes em todos os grupos chamados de seitas.

Resumindo: pela lógica tribalização/destribalização/retribalização de McLuhan, o ‘bando’ é pré-histórico; o grupo de indivíduos regrados e disciplinados corresponde ao aspecto convencional da modernidade; e a Bolha é a tribo virtual. Ser um indivíduo é uma conquista da modernidade e a Seita é um passo atrás, um retorno ao bando.

 

4.      Amor e ódio

O filme A Onda tem pelo menos duas contribuições importantes para uma teoria da Seita: 1) minimiza o sistema de crenças explícito, a ideologia, como fator de radicalização do processo de formação da identidade coletiva da Seita; e 2) também minimiza a importância à exploração econômica da servidão voluntária dos membros aos líderes e à organização.

Assim, o filme não considera relevante justamente as duas características mais visíveis ao senso comum. Ao invés de enfatizar a exploração, há referências ao empoderamento pessoal resultante do trabalho coletivo, em que o resultado conjunto é superior à soma das capacidades individuais graças ao papel do líder, gerente do capital grupal. Já em relação às crenças inconscientes, destaca-se o papel do “bode expiatório”, do inimigo externo ou do traidor. Aqui, ao contrário da situação anterior, o resultado é menor que a soma das partes, pois são inibidos e represados emoções, instintos e sentimentos. Assim, mais do que lucro ou ideias, o importante é que haja um objeto de ódio para ser detestado e um objeto de culto para ser amado.

Nessa perspectiva, os grupos operam em dois regimes distintos: o diurno ou do grupo de trabalho (e de cooperação consciente) e o regime noturno da emergência dos “pressupostos básicos” do inconsciente arcaico estabelecendo sentimentos comuns aos indivíduos do grupo.

“Pressupostos Básicos” (BION, 1975) são padrões de comportamento coletivo – situações emocionais arcaicas – que tendem a evitar a frustração inerente à aprendizagem por experiência, quando esta implica em dor, esforço ou sofrimento.

Bion identifica três tipos: dependência; acasalamento; e ataque e defesa diante do inimigo. No pressuposto de dependência, o sentimento de proteção e de adoração em relação aos líderes ou às divindades é representado pela relação autocrática do professor com os alunos em sala de aula. O pressuposto do acasalamento aparece nas festas e no sentimento de esperança no futuro da comunidade.  E, no pressuposto de ataque e fuga diante do inimigo, os sentimentos de medo e de raiva, são utilizados para constituição de objetos de ódios e para formar uma unidade coesa no grupo.

Entre os objetos de ódio, a configuração grupal arcaica mais importante é comumente chamada de ‘bode expiatório’. É a “lata de lixo” emocional do grupo, em vários níveis de intensidade. O mais leve é o ‘ajuste de conduta’ quando todos do grupo debocham de um elemento em relação a algo em particular.

Porém, quando o indivíduo não se enquadra no comportamento do grupo começa um segundo nível de ódio, em que, ao invés de forçar a inclusão da diferença pela adequação, deseja excluí-la. É a ‘produção do transgressor’. O complexo de bode expiatório chega ao seu ápice, o terceiro estágio, quando o grupo decide culpar o transgressor de todas as adversidades pelas quais os outros elementos do grupo passam e, então, o sacrificam para se purificarem de seus erros. E isso acontece muito mais corriqueiramente do que se imagina.

Outra contribuição preciosa do filme é que a formação da ‘Onda’ oscila entre a Equipe (os aspectos positivos) e a Gangue, quando a Seita comete crimes, como acontece nas cenas da torcida organizada no jogo de polo aquático – e, em uma oitava maior, durante toda narrativa.

A Equipe (Goffman, 2021[4]) está ligada a alguma forma de performance coletiva (jogo, arte, trabalho), seus integrantes desenvolvam certas habilidades psicológicas e competências subjetivas (além da excelência das qualidades técnicas e artísticas), tais como: afinidade emocional, capacidade de sincronia intuitiva, criatividade coletiva, improviso em conjunto, tolerância com erros secundários e gentileza nas correções necessárias. Essas mesmas habilidades também são necessárias para a produção colaborativa em rede que envolvem vários tipos de artistas e técnicos.

A diferença entre o ‘grupo’ e a ‘equipe’ é que a última ultrapassa a soma das habilidades de seus integrantes através da inteligência coletiva, da capacidade de interagir criativamente em conjunto. Tanto a Gangue quanto a Equipe partilham da cumplicidade emocional das Seitas. A lealdade emocional acima das regras, apesar de antidemocrática e antirrepublicana, é o cimento da sociabilidade. A diferença da Equipe em relação à Seita e à Gangue é o papel da família, das amizades e da comunidade. Na equipe, a lealdade não implica no abandono das relações familiares e de amizade. 

A comunidade é uma estrutura formada a partir da cooperação entre famílias. Não se deve confundi-la com a horda ou com rebanho. Ao contrário, a família tem interesses próprios e entra em oposição com a estrutura centralizadora e desigual da seita. A comunidade provavelmente surgiu da institucionalização sedentária da defesa dos interesses das crianças, mulheres e dos idosos em relação aos objetivos nômades do rebanho. Então, desde o começo da sociabilização existiu um conflito estrutural entre a família e os grupos formados por participação voluntária.

 

5.      A bolha identitária

Na visão técnica, a bolha é “o resultado da algoritmização da sociabilidade online, ela nada mais é do que grupos de indivíduos se retroalimentando de ideias e convicções” (Pariser, 2012, 98).

Há dois tipos de bolha: a Bolha Informacional (formada a partir do algoritmo de consumo e das restrições regionais) e a Bolha Ideológica, polarizada pela valorização dos objetos de ódio. A direita odeia os imigrantes, os bandidos e o estado corrupto; a esquerda odeia o luxo, a polícia, os burgueses. Ambos cultuando líderes populistas e valores simétricos.

 Acrescentamos um terceiro tipo, ou melhor, um terceiro estágio de fanatização: a Bolha Identitária. Imagine-nos uma cidade com dois bairros de trabalhadores vizinhos. Em um bairro, há mais católicos e no outro, mais protestantes. Então, o algorítmico datifica os dados e passa a considerar esses dados em duas bolhas informacionais. Então, chegam as eleições e cada comunidade adota um lado, polarizando-as. Temos agora as bolhas ideológicas. Com o passar do tempo, as diferenças se tornam parte da identidade dos bairros, que passam a torcer por times rivais e ostentam símbolos próprios. Essa, então, é uma bolha identitária.

A Bolha é apenas a datificação do mercado de consumo. Ela não é a causa da retribalização e sim um fator derivado que potencializa sua origem. Por isso, para entender o fenômeno da Bolha (em seus diferentes níveis) é preciso entender primeiro o processo de formação das seitas.

 

6.      Conclusão

Introduzimos o tema da retribalização e descrevemos o filme A Onda, apontamos as principais características das seitas (o líder carismático, a doutrina, as crenças inconscientes, o isolamento, o mundo dicotômico e a exploração econômica). Ao contrário do senso comum, que vê a seita como um conjunto de alienados explorados, detalhamos o processo de formação real, oscilando entre o empoderamento de união e a administração dos objetos de ódio; entre a excelência cooperativa das equipes e o uso criminoso da violência das gangues.

Também ressaltamos a oposição estrutural entre a Família/Comunidade e a Seita, pois mesmo que a última absorva a primeira, os interesses sedentários se oporiam à mobilidade dos objetivos táticos do grupo.

Apesar desses cortes temáticos descontínuos, o leitor já deve ter percebido para onde caminhamos: as bolhas informacionais podem ser tornar bolhas ideológicas e identitárias através dos mesmos mecanismo uniformização e de desindividualização de formação das seitas. Não apenas através da administração dos objetos de ódio, mas também pela promessa da excelência cooperativa.

Todos temos um sentimento de incompletude, um desejo de união a algo maior que a soma dos esforços isolados, uma compulsão gregária pela Utopia. Fazer parte de alguma coisa significativa, que faça a diferença, empodera e dá segurança. Mas também exige cuidado e controle, pede que sejamos menos do que somos – o que cria um inconsciente grupal cheio de resistências fraternas, inimigos externos e traidores.

 

Referências

BION, W. R. Experiências com grupos. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: EDUSP, 1975.

DIE Welle (Original) A Onda (em Português). Direção de Dennis Gansel. Produção de Christian Becker e Martin Moszkowick. Intérpretes: Jürgen Vogel, Frederic Lau e outros. Roteiro: Dennis Gansel e Peter Thorwharth. Música: Heiko Maile. Alemanha: Constantin Film Produktion Gmbh e Rat Pac Filmproduktion Gmbhk, 2008. (107 min.), son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zG3TfjAhs30&ab_channel=ALuzMcOficial

GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. Tradução de Dante Moreira. Leite. 7ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

LEMOS, André. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sullinas, 3ª edição. 2007.

MAFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. RJ: Forense, 1987.

MCLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg. A formação do homem tipográfico. São Paulo: Cia Ed. Nacional e EDUSP, 1972

MORAIS, Marina Magalhães de; PEREIRA Wellington. Tribalização no Ciberespaço: O Fenômeno das Comunidades no Mundo Virtual. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Natal, RN – 2 a 6 de setembro de 2008

PARISER, Eli. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

ZAGO, Rayhanne Simon Dardengo.  A psicologia das seitas. 1 de setembro de 2022. https://rayhannezago.com/a-psicologia-das-seitas/


[1] Professor titular DECOM/UFRN.

[2] A Onda (Die Welle) é um filme de 2008 dirigido por Dennis Gansel e produzido por Christian Becker. .

[3] Para aprofundar no estudo dos abusos psicológicos em seitas e seu tratamento, v.: https://rayhannezago.com/a-psicologia-das-seitas/

[4] Outro conceito correlato é o de ‘Instituição Total”, organização fechada de confinamento de um grande número de pessoas em que todos os aspectos da vida social (aprendizado, trabalho, residência) ocorrem no mesmo local. Há seitas que nascem de propostas de instituições totais em que a sustentação econômica, a representação política e a vida cultural coincidem na mesma organização.


sábado, 5 de abril de 2025

Cinema Velho


 A ideia aqui é propor um roteiro mínimo para o estudo do cinema brasileiro antes do Cinema Novo.

O primeiro filme brasileiro relevante é Limite (1931) de Maria Peixoto. 

Outro marco importante é Ganga Bruta (1933), de Humberto Mauro. Aliás, toda cinematografia de Humberto Mauro também é relevante para entender a gênesis do cinema brasileiro. O filme foi produzido por Adhemar Gonzaga e pelo estúdio da Cinédiano Rio de Janeiro.

Por outro lado, em 1945 em São Paulo, surge outro grande estúdio, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, com uma produção impressionante de filmes comerciais. Há no youtube uma série documental de Mariana Granha de três episódios que detalha toda produção do estúdio. 

O filme mais importante da Vera Cruz foi O Cangaceiro (1953) escrito e dirigido por Lima Barreto, com diálogos criados por Rachel de Queiroz.

Vera Cruz faliu e, no Rio, a Cinédia deu lugar à Atlântida e as comédias musicais chamadas de chanchadas. O documentário de Carlos Manga, Assim era Atlântida (1972) é uma síntese da produção desse estúdio.

quinta-feira, 20 de março de 2025

metajogador

 


Vilém Flusser (1998) caracteriza o ‘modo de ser brasileiro’ como um protótipo do homo ludens, um novo homem consciente de que joga com e contra outros; e de que outros jogam com e contra ele. A miscigenação nos fez ‘lúdicos’, um exemplo para outros povos. Flusser vê o brasileiro de modo semelhante a Darcy Ribeiro descrevendo três estratégias de jogo colonial.

É possível engajar-se de várias maneiras nos jogos. Por exemplo: jogar para ganhar, arriscando derrota. Ou jogar para não perder, para diminuir o risco da derrota e a probabilidade da vitória. Ou jogar para mudar o jogo. Nas duas primeiras estratégias o engajado se integra no jogo, e este passa a ser o universo no qual existe. Na terceira estratégia o jogo não passa de elemento do universo, e o engajado está "acima do jogo". Se ciência for jogo, o técnico se engaja nela pela estratégia um ou dois, e o cientista pela estratégia três (procura mudar o jogo, alterar suas regras e introduzir ou eliminar elementos). Se língua for jogo, o participante da conversação se engaja nela pela estratégia um ou dois, e o poeta pela estratégia três (pelas razões indicadas). O mesmo pode ser assim formulado: quem aplica estratégia um ou dois esqueceu que está jogando (por exemplo: técnico, participante de conversação, industrial, político, general e líder estudantil esqueceram que estão empenhados em jogo). Quem aplica estratégia três sempre conserva distância suficiente para dar-se conta do aspecto lúdico da sua atividade (por exemplo: cientista teórico, poeta filósofo e futurólogo). (Flusser, 1998, 108).

 

A estratégia um é a dos que jogam para vencer, mesmo arriscando a derrota – como os norte-americanos. A estratégia dois é o jogo dos excluídos que jogam para não perder, buscando reduzir os riscos tanto do fracasso como do sucesso – como a maioria dos povos latinos americanos. Já a estratégia três é o jogo dos que jogam para mudar o jogo, que caracteriza o ‘modo brasileiro’. A estratégia três corresponde a uma forma de resistência criativa à aculturação colonizadora, uma identidade híbrida, que não se identifica nem rejeita a cultura do colonizador: a absorve e a recria com sua própria linguagem.

Não se trata mais de identidade de um povo ou estratégia de sobrevivência dos dominados, mas sim de um comportamento cultural resiliente a ser adotado por todos os povos em um futuro global. As alteridades, aproximações, estranhamentos e a maneira como os grupos interagem ao longo da história acabam criando relações de poder de acordo com o desconhecimento e reconhecimento do outro. 

Flusser reconhece que, para os povos colonizados, afirmar sua identidade cultural é um ato de resistência muito doloroso porque implica em superar o não reconhecimento do outro (e de si mesmo projetado no colonizador), mas também compreende a antropofagia como um método de diálogo dentro de um contexto da interculturalidade, reconhecendo que cada um tem sua história e uma identidade própria a ser respeitada, cultivada e celebrada.

terça-feira, 18 de março de 2025

Guerrilha

 

Na teoria do cerco guerrilheiro, o procedimento conhecido por ‘alternância repetida de operações táticas contrárias’ é geralmente atribuída a Mao Tse-Tung, mas com notável influência das artes marciais chinesas, do jogo de tabuleiro “Go” e do livro A arte da guerra[1].

Essa estratégia é composta por três princípios: 1) tenha e mantenha a iniciativa; 2) ataque se defendendo e se defenda atacando; e 3) ataque apenas os pontos fracos do inimigo e defenda apenas seus pontos fortes (ou nunca ataque os pontos fortes do inimigo e nunca defenda seus pontos fracos).

Alguns comentaristas unem esses dois princípios em um: ataque sempre os pontos fracos adversários, defenda apenas os seus pontos fortes. A ideia é (através da repetição alternada desses movimentos) forçar o inimigo a defender seus pontos fracos (que atacamos para nos defender) e induzir os adversários a atacarem nossos pontos fortes (que defendemos sempre como movimento de ataque). Essa manobra força o inimigo a sair de sua área de conforto e entrar em nosso campo, permitindo encurralá-lo.

A estratégia foi criada para a guerrilha territorial, mas pode também ser aplicada a um debate ideológico. Imagine uma pessoa de esquerda (ponto forte: programas sociais; ponto fraco: estado ineficiente e corrupto) debatendo com uma de direita (ponto forte: liberdade individual; ponto fraco: desigualdade). O esquerdista ataca defendendo os programas sociais e se defende atacando o mercado. O direitista ataca o estado e defende o livre comércio. Caso o esquerdista defenda o Estado e clame pela regulamentação da liberdade econômica, vai estar caindo no campo de argumentação da direita. Porém, se ele insistir na defesa dos trabalhadores e atacar as injustiças sociais poderá acontecer o inverso. Caso o direitista ataque os programas sociais e defenda diretamente o capitalismo estará caindo no campo discursivo de esquerda.

É claro que a estratégia só funciona graças ao primeiro princípio (tenha e mantenha a iniciativa) e a capacidade de estar sempre um passo à frente do inimigo no planejamento das ações, fazendo planos dentro de planos contrários, armadilhas dentro de armadilhas, atraindo o adversário para seu campo até cerca-lo.

Aplicado ao conflito colonial, essa estratégia implica em que os colonizados ‘joguem’ juntos contra o colonizador. Lenin tinha um planejamento estratégico baseado em uma dupla dialética entre a luta de classes e a luta contra o imperialismo. Porém, considerava a contradição interna principal. 

Já Mao Tse-Tung inovou considerando o imperialismo (o capitalismo internacional) como seu inimigo principal secundarizando o conflito interno. Além disso, utilizou vários elementos simbólicos da cultura chinesa tradicional: adotou a ideia de cerco do popular jogo tradicional ‘Go’; adicionou as táticas de ‘guerra de movimento’ x ‘guerra de posição’, elaboradas na Arte da Guerra; e aproximou a dialética marxista da alternância de movimentos defesa e ataque (representados pela mandala do ying e yang) do Tai-Chi e do Kung-fu. 

Reza a lenda que Vietnam, Nicarágua e o PC do B na guerrilha do Araguaia no Brasil utilizaram esse modelo de “cerco chinês”, baseado na “alternância repetida de operações contrárias” em seus movimentos, mas, a verdade é que não existe uma explicação completa dessa teoria, nem nos manuais de guerrilha rural do passado, nem no campo da guerrilha cultural da globalização contemporânea.



[1] TZU, Sun. 2007.


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

AS FLECHAS DE KRENAK

 


AS FLECHAS DE KRENAK

                                                                                                 Marcelo Bolshaw Gomes[1]

 

 

1.      INTRODUÇÃO

Flechas Selvagens é uma série de sete vídeos de animações curtos, idealizados s por Ailton Krenak. Ailton é considerado uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, possuindo reconhecimento internacional. Ailton é da etnia indígena krenak e escreveu vários livros[2], é membro da Academia Brasileira de Letras e professor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2016) e pela Universidade de Brasília (2021). Participou também de vários documentários importantes, dos quais destaco: a série documental Índios no Brasil[3]; o documentário Kopenawa: Sonhar a Terra-Floresta[4]; e a série documental Guerras do Brasil[5].

A série Flechas faz parte de uma projeto maior Selvagem - ciclo de estudos sobre a vida[6] - cujo o objetivo, segundo Krenak, é “retardar o fim do mundo”.

Somos parte da biosfera e cultivamos o entendimento da vida como uma rede de interligações. No Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida, desde 2018 oferecemos percursos de estudo por diversos temas a partir do diálogo entre saberes indígenas, científicos, filosóficos e de outras espécies. Os estudos se desdobram em cadernos, audiovisuais, oficinas, conversas e exposições, sempre de forma gratuita para o público. Nossas ações se direcionam para apoiar uma rede de Escolas Vivas, centros indígenas de transmissão de conhecimentos tradicionais, garantindo o repasse de 8 mil reais mensais a cada Escola e criando ações em conjunto. Todo esse movimento procura contribuir para outros caminhos de educação, imaginando posturas regenerativas e não destrutivas de estar no mundo.

O projeto Selvagem é um mosaico de aprendizagens, práticas e percursos que articula memórias e saberes indígenas e não indígenas, tradicionais, científicos, acadêmicos, artísticos, rodas de conversas, publicação de cadernos e livros, ciclos de leituras e conteúdos audiovisuais (conversas online, vídeos e bate-papos). No Youtube[7], o projeto disponibiliza vários outras séries de vídeos: Memórias Ancestrais, a série Nhe'ery (com Carlos Papá e Cris Takuá), o ciclo do Sol, Ciclo dos Sonhos (com Sidarta Ribeiro), Ciclo Jeremy Narby, parte do ciclo Mulheres, Plantas e Cura, entre outros.

Bem vistas a complexidade do projeto Selvagem e suas muitas possibilidades analíticas, o objetivo específico desse artigo é extrair o conteúdo simbólico-conceitual da série audiovisual das Flechas – o que nem de longe esgota as possibilidades de outros estudos sobre outras séries e propostas, ou mesmo a necessidade de uma futura pesquisa sobre o conjunto do projeto Selvagem.

 

2.      METODOLOGIA

A hermenêutica, entendida como teoria geral da interpretação, vem conquistando o lugar de disciplina analítica-compreensiva mais abrangente do conhecimento. A epistemologia, por exemplo, trata apenas das regras da produção científica, sendo inoperante diante da arte, da religião e da política.

Originada da tradução de textos sagrados (Talmude, Bíblia e Corão), a hermenêutica já tinha seu valor reconhecido no campo do Direito e da Filologia. Friedrich Schleiermacher, Wilhelm Dilthey e Hans Georg Gadamer contribuíram, de diferentes formas em diferentes áreas, para que a intenção (de quem fala) se tornasse objeto de investigação (GOMES,1996).

No século XX, a hermenêutica incorporou a psicanálise, o estruturalismo e os estudos narrativos, sendo aplicada aos sonhos, aos contos de fada, à atividade poética, e aos discursos simbólicos em geral (RICOUER, 1988, 1999, 2000). Nesse segundo momento, o estudo da intenção de quem fala foi aperfeiçoado pela assimilação e adaptação dos estudos da psicologia e da linguística, mas a hermenêutica permaneceu muito literária, limitada à análise de textos e discursos.

Porém, só agora recentemente, a hermenêutica chegou à interpretação da imagem em sua diferentes concepções (DURAND, 1997), ao discurso audiovisual da mídia (THOMPSON, 1998) e ao estudo dos comportamentos e ações interculturais (GEERZT, 2008). Não se trata mais de analisar apenas os contextos interlocutores ou suas linguagens, mas sim de compreender a subjetividade em suas práticas formativas ou “como se interpreta isso”.

De acordo com esse desenvolvimento uma análise hermenêutica completa deve sempre levar em conta os três aspectos interdisciplinares cumulativos: a intenção de quem diz (a sociologia, a história, a antropologia); a forma que é dita (a linguística, a semiótica, a análise do discurso); e como é entendida (a psicologia social e cognitiva, a pedagogia do aprendizado). E, para tanto, a hermenêutica assimila e reconstruí vários métodos e técnicas analíticas menores conforme seus objetos.

TABELA 1 – Método tríplice da Hermenêutica

 

TRANSMISSÃO

LINGUAGEM

RECEPÇÃO

OBJETO

Significado

Significante

Sentido

MÉTODO

Ciências Sociais

Linguística e Semiótica

Psicologia Social e Cognitiva

SUJEITO

O que quis dizer

O que foi dito

Como foi compreendido

FONTE: ELABORADO PELO AUTOR

O projeto Selvagem conta com vídeos sobre as Escola Vivas[8], locais em que os vídeos das Flechas foram apresentados e problematizados – o que é uma forma de estudo de recepção agregada. No entanto, aqui nesse artigo analisamos apenas As Flechas, desenvolvendo apenas as duas primeiras etapas do método hermenêutico (O que é dito e Como), deixando a terceira fase (Como foi aprendido) para uma futura pesquisa mais abrangente.

Também é preciso lembrar, do ponto de vista metodológico, que a noção de “Pensamento Selvagem” é um livro e uma categoria de Lévi-Strauss (1976), oposta ao “Pensamento Civilizado”, utilizada para validar os saberes tradicionais diante do conhecimento científico.

É oposta, mas ...

(...) o “pensamento selvagem” não é o pensamento dos “selvagens” ou dos “primitivos” (em oposição ao “pensamento ocidental”), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o pensamento humano em seu livre exercício, um exercício ainda não-domesticado em vista da obtenção de um rendimento (Viveiros de Castro, 2011, 3).

Assim, o pensamento selvagem não se opõe ao pensamento científico como duas formas ou duas lógicas mutuamente exclusivas. Sua relação é, antes, uma relação entre gênero (o pensamento selvagem) e espécie (o pensamento científico). Ambas as formas de pensamento se utilizam dos mesmos recursos cognitivos; o que as distingue é, diz Lévi-Strauss, o nível do real ao qual eles se aplicam: o nível das propriedades sensíveis (caso do pensamento selvagem) e o nível das propriedades abstratas (caso do pensamento científico, domesticado pela razão).

Então, não se trata de decifra símbolos e metáforas. Por exemplo: a flecha NÃO representa o pensamento. A imagem do objeto não é um conceito disfarçado ou um enunciado poético. Não se trata de buscar equivalências racionais para imagens e expressões estranhas. Essa forma de traduzir o pensamento selvagem é totalmente redutora e em nada valoriza ou equipara os saberes antigos ao conhecimento atual. Não queremos explicar as ideias nativas dos vídeos, mas sim compreende-las à luz de outras linguagens. Poderíamos dizer que a flecha se assemelha uma cápsula do tempo.

O objetivo principal de nossa leitura não é apenas demonstrar que o pensamento selvagem equivale ao conhecimento científico e que todos os saberes convergem em relação à vida e ao controle de suas condições; mas, sobretudo, que a linguagem da arte é capaz de ampliar a percepção da realidade através de uma rede de conceitos integrados. Nossa hipótese é que As Flechas são um mapa estético de assuntos filosóficos conexos, uma teia de ideias ainda em processo, formando uma concepção de mundo ou cosmovisão.

 

3.      ANÁLISE

A série audiovisual Flechas é formada por sete animações curtas, de cerca de dez minutos em média, e está disponível no Youtube[9], é acompanhada de cadernos com informações complementares, propostas de atividades e dinâmicas para a utilização do material em grupos e escolas. O projeto foi inspirada em um sonho de Ailton Krenak e foi desenvolvido por uma equipe de profissionais com apoios institucionais e colaboradores voluntários[10].

O material iconográfico e audiovisual é estruturado, em cada documentário, por uma narração principal em off, adensada por participações especiais de elenco convidado em leituras de trechos literários e científicos relevantes, enriquecido por trilha sonora customizada.

A combinação entre o texto poético dos mitos indígenas com a pesquisa de imagem iconográficas e a trilha sonora produzem uma experiência cognitiva, um efeito de sentido onírico, como se a flecha fosse um sonho. A mensagem é o meio, o conteúdo é o design. No entanto, as relações entre os três elementos da linguagem não são simbólicas ou figurativas (como nos sonhos) mas alegóricas e icônicas, tentando transmitir toda uma forma de pensar, e não conteúdos mentais e informações vestidas de linguagem nativa.

A primeira flecha, A Serpente e a Canoa[11], por exemplo, viaja por teorias científicas contemporâneas e memórias das culturas ancestrais. O fio condutor deste episódio costura duas narrativas: a da canoa cobra, memória originária de povos nativos, e a serpente cósmica, presente em mitos de origem de diferentes culturas, vista como a dupla hélice do DNA, código de memória presente em tudo que é vivo. A viagem percorre uma sequência que entrelaça saberes indígenas e hipóteses científicas sobre o surgimento da Vida.  

A Flecha é baseada principalmente nos livros: Antes o mundo não existia, de Firmiano Arantes Lana e Luiz Gomes Lana (2019); e A Serpente cósmica, o DNA e a origem do saber, de Jeremy Narby (2018). O vídeo começa com a narração do mito de origem do povo Desana:

Depois o Deus da Terra subiu à superfície da terra para formar a humanidade. Levantou-se num grande lago chamado “Lago de Leite”, que deve ser o Oceano. Enquanto ele vinha subindo, o Terceiro Trovão desceu nesse grande lago na forma de uma jiboia gigantesca. A cabeça da cobra se parecia com a proa de uma canoa, era a “Canoa de Transformação”, a canoa cobra.

Há também um levantamento bem completo sobre o símbolo da serpente em diferentes mitologias – não apenas em culturas nativas, mas entre os Incas, os Maias e até nas religiões semíticas. E sempre associado às origens e às águas – o que aponta para uma universalidade do símbolo em várias narrativas.

Um exemplo de interpretação arbitrária e etnocêntrica do mito é entender a serpente-canoa como sendo um disco voador. Por que não estou surpreso dos colonizadores imaginarem nossa origem como um processo de colonização alienígena! Porém, a própria Flecha associa o mito da cobra-canoa a panspermia, teoria que defende que a vida na Terra surgiu a partir de seres vivos ou substâncias precursoras da vida vindos de outros locais do Universo.

A serpente-canoa é meteoro e seus tripulantes, os homens-peixes, são bactérias consumidoras de carbono? O mito nos faz pensar: não há uma única resposta certa, todas são interpretações parciais.

Outra imagem marcante dessa Flecha é a imagem de um homem formado por minúsculas borboletas luminosas. As borboletas seriam uma representação das duplas hélices do DNA. “A distância que separa a biologia molecular do xamanismo e da mitologia é, na verdade, uma ilusão de ótica gerada justamente por esse olhar que aprioristicamente separa as coisas.”, diz Jeremy Narby, na p. 04 do caderno 1.

Incontáveis serpentes duplas estão dentro de cada ser vivo, imersas no ambiente líquido de cada célula. A água dentro de cada célula tem a mesma composição da água do mar. Duas serpentes luminescentes dançam numa porção de água do mar e viajam desde o princípio dos tempos por dentro de nossos corpos. A vida é transformação. O futuro é ancestral.

A segunda Flecha, O Sol e a Flor[12], é uma síntese das ideias exploradas em outros vídeos do Projeto Selvagem[13]) e nos livros Biosfera (de Vladimir Vernadsky) e A Queda do Céu, palavras de um xamã yanomami (de Davi Kopenawa e Bruce Albert). É uma narrativa sobre a interação do sol com a matéria verde, que transforma a Terra em um superorganismo vivo, no qual tudo está absolutamente relacionado, das cianobactérias ao ozônio. A Flecha celebra a fotossíntese que se apresenta como chave de manutenção do equilíbrio dinâmico e da regulação da biosfera, entre a radiação solar e o mundo verde. As plantas fazem o mundo. É delas que a vida se origina diariamente.

A Terra não é uma rocha onde há vida. A Terra é viva, e tudo aqui é uma manifestação do Sol. (...) Dois bilhões e meio de anos atrás, a Terra começou a ficar azul. O azul vem da dispersão da luz pelos átomos de oxigênio. O oxigênio trazido por cianobactérias que se tornariam depois as partes verdes das plantas. Elas encontraram uma maneira de usar a luz do sol para quebrar as ligações de hidrogênio da água, espalharam-se como um fogo verde vivo, liberando oxigênio para a atmosfera. Graças a eles – e a imensa rede de fungos que envolve o mundo todo – a floresta é um processo contínuo de transformação.

“A Terra não pertence aos humanos. Os humanos pertencem à terra” (chefe Seattle). A biosfera é uma crosta feita de carbono na qual vivem plantas e bichos. A vida nasce das trocas químicas entre o sol e a água através das plantas. Os homens deveriam ser os jardineiros dessa fotossíntese. Mas, por algum motivo, se tornaram uma praga.

No entanto, esse “pluriversalismo” selvagem do conhecimento originário e tradicional é atacado pelo “sistema monocultural”. A teoria de Gaia é contraposta à queda do céu profetizada pelos xamãs: a destruição da biosfera fará com que a atmosfera perca seu elemento azul, o oxigênio, se tornando ácida e inflamável.

Com base nesse cenário inicial posto pelas duas primeiras flechas, a chegada da vida na Terra e o desdobramento da energia solar em vida, a terceira flecha mergulha no movimento da força vital através dos tempos, dos territórios, dos elementos e dos corpos. A terceira flecha aponta para mudança permanente e se chama Metamorfose.[14]

Um canal de transformação que leva vida de uma forma a outra. Uma mesma vida conecta vários mundos. No entrelace das partículas que atravessam vidas e corpos, somos quimeras, seres multiespécies.

A Flecha Metamorfose reúne conhecimentos dos povos Tukano e conta com a participação de João Paulo Lima Barreto, autor das obras Waimahsã: Peixes e Humanos e Kumuã na kahtiroti-ukuse, além da narração inicial de Daiara Tukano. A terceira Flecha Selvagem combina a filosofia de Emanuele Coccia com ensinamentos Huni Kuï contidos na expressão Shuku Shukuwe, “a vida é para sempre”. A coexistência da eternidade com impermanência nos coloca novas questões: as plantas, o invisível e o tempo. Cada um desses temas é discutido em uma flecha.

A quarta flecha, A Selva e a Seiva[15] acompanha o percurso da luz à seiva elaborada, seu poder de visão e cura. Todas as plantas são sagradas, mas as plantas professoras são aquelas que conhecem o caminho da luz do sol, aquelas que abrem a percepção da realidade cósmica da vida. A energia da vida vem do Sol e é tragada pelos seres fotossintéticos, algumas bactérias, algas e plantas.

Curiosamente, a flecha não fala da conhecida tese dos irmãos McKenna (1993; 1995; 1996; 1994), de que as plantas mestras, sobretudo a ayahuasca, são uma tentativa do reino vegetal para domesticar a (auto) destrutividade humana (pessoal e ambiental) e harmonizar o ser humano em relação à biosfera.

A quinta flecha, Uma flecha invisível[16], traça sua trajetória rumo às camadas da vida que humanos não enxergam: o microcosmos. Esse “lugar” se faz presente na realidade, como uma estrutura interna que sustenta tudo que é vivo. Ele molda o mundo visível, o desenha, mas não o vemos. E tudo que vemos é uma expressão desse invisível. Ativada pelo sol, a vida se desenrola no invisível formando sua teia selvagem.

“Tudo que vemos é uma expressão do invisível.” Concerne a um estado de grandeza física mensurável em escala infinitesimal; e, conjuntamente, considera a condição invisível da presença de outras dimensões, espirituais, paralelas e agenciadoras da vida no planeta.

A quinta Flecha também dialoga com as demais. Em A serpente e a canoa, mergulhamos na galáxia oculta a olho nu. O sol e a flor tem como essência a atividade de seres fotossintéticos, como as cianobactérias. Metamorfose proporciona a visão do papel fundamental dos seres invisíveis para a permanência da vida na Terra e sua transformação contínua. A selva e a seiva revela a sabedoria contida no belo sistema de regulação da vida[17]. Todas as flechas dialogam entre si. Aos poucos e de forma cumulativa, forma-se uma rede de conceitos que se apoiam e completam. As flechas apontam alvos, focos, pontos de aglutinação, compondo uma teia imaginária.

A sexta flecha, Tempo e Amor[18] atravessa todas as outras flechas, enfatizando o tema do tempo do ponto de vista da física teórica. Várias flechas dialogam com diferentes áreas do saber: a Metamorfose estuda a bioquímica da vida; a Seiva e a Selva trabalha com etnobotânica; e a Flecha Invisível conversa com a microbiologia genética. A sexta flecha trabalha com a perspectiva relativista de tempo simultâneo (Einstein) e com a entropia, o colapso gradativo do universo[19]. Enquanto o universo se expande, o amor aglutina. Enquanto se expande, ele esfria e caminha em direção a sua dissipação, a sua própria morte.

A segunda lei da termodinâmica é a única lei geral da física que distingue passado e futuro. Como uma flecha do tempo, o calor passa somente de corpos quentes a frios, nunca ao contrário. Se nada é provocado externamente, um corpo frio não se torna quente. Esse fluxo natural de dissipação dança com outro: o fluxo biológico da vida, que aglutina e envolve Gaia numa metamorfose contínua.

O fluxo biológico, o metabolismo da Terra, é amor que reelabora os elementos e mantém o pulsar coletivo. Através da experiência de trançar compreensões científicas, artísticas e tradicionais, esta Flecha fala de entropia e sintropia, sem mencionar estas palavras. (...)

Talvez seja uma Flecha sobre o feitiço que dissociou humanos dos ciclos naturais. Ela foi inspirada pela beleza das relações colaborativas que são feitas no tempo e no espaço, como plantar uma árvore que um dia será a canoa de alguém futuro. A consciência de que habitamos com gratidão o mesmo jardim planetário.

A sétima Flecha, A Fera e a Esfera[20], a última da série de audiovisuais é um manifesto Selvagem – demanda, reclamação, reivindicação, súplica – para que, enfim, seja evidente que integramos um sistema vivo maravilhoso e que o destruir, por cegueira e ganância, é suicídio coletivo provocado por alguns humanos. É fundamental a transformação cognitiva do desejo capitalista de como estar no mundo e a permissão para que a floresta se reinfiltre em nossos sentidos.

Esta flecha “caiu” em Londres, no Barbican Centre, incorporada à exposição Our time on Earth. O devir da Flecha é a ferida. Esta Flecha cruza o oceano Atlântico, no caminho inverso ao da expansão marítima europeia, com o destino de tocar corações civilizados e buscar a inversão da lógica colonialista, reproduzida até hoje pelo fluxo consumidor que devora o planeta e transforma tudo em mercadoria, citando Davi Kopenawa.

A flecha em sua dimensão política é uma arma. Seu “Devir é uma ferida” de um animal caçado ou de um inimigo. Aqui descobrimos que o contexto das Flechas é uma guerra de interpretação sobre o mundo, em que a ciência quer assimilar os saberes e que o conhecimento ancestral se apropria e integra os saberes científicos. A flecha é um esforço para dar a última palavra sobre si mesmo, sobre a própria cultura, sobre a realidade planetária contra o discurso etnocêntrico e colonialista.

Que chova flechas selvagens sobre o céu dos domesticados! Que as flechas adiem a queda dos céus e o fim do mundo!

 

4.      RESULTADO

Arjuna recebeu de Krishna a seguinte instrução: o guerreiro tem três flechas. A primeira já foi lançada. É o passado. A terceira está guardada e é o futuro. A segunda flecha é o presente e está no arco pronta para ser disparada.

Se o arqueiro lança a flecha do presente na mesma direção da flecha passada, então, haverá KARMA, uma ação do passado sobre o presente determinando o Destino. Porém, se o arqueiro aponta a flecha para uma direção diferente da flecha já lançada, então haverá DHARMA, uma ação em que o Destino é imprevisível.

O Karma é Dívida, cobrada através da família; o Dharma é a Dádiva, expressa através do trabalho. Se o homem repete seu passado, vive eternamente em dívida. Mas, se o homem trabalha um futuro melhor para todos, então, ele é o senhor do seu destino.

Aqui se descreveu e interpretou a série de sete vídeos Flechas de Ailton Krenak e equipe. O estudo chegou à conclusão de que o ideia de “Flecha”, aparentemente utilizada como metáfora de pensamento, é uma das contribuições mais importantes do trabalho, mesmo sem ser evidente.            Essa ideia se aproxima da noção de arte anterior à reprodutividade técnica e à indústria cultural. A ‘arte primitiva’ representava o invisível e a arte ocidental, o visível. As flechas são ‘sonhos artificiais’, fluxos de sons, imagens e palavras que mimetizam o onírico e dialogam com o científico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTRO, Eduardo Viveiros. O pensamento em estado selvagem do pensamento científico Com Ciência 46 Jan. 2011

DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

GEERTZ, Clifford. (1926) A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GOMES, M. B. O Hermeneuta - Uma Introdução ao Estudo de Si. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Natal: UFRN, 1996.

LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem SP, Ed. Nacional, 1976

MCKENNA, T. - Alucinações Reais Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1993.

_____ Alimento dos Deuses Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1995.

_____ Retorno à cultura arcaica Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1996.

_____ (com Ralph Abraham e Rupert Sheldrake) Caos, Criatividade e o retorno do Sagrado - triálogos nas fronteiras do Ocidente São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1994.

RICOEUR, Paul. O Conflito das Interpretações, ensaios de hermenêutica. Lisboa: Rés Editora, 1988.

______________ Teoria da Interpretação. Lisboa: Edições 70, 1999.

 ______________ A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade – uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.



[1] Professor Titular do Departamento de Comunicação Social da UFRN, doutor em Ciências Sociais. E-mail: <marcelo.bolshaw@ufrn.br> ORCID: <https://orcid.org/0000-0002-8227-3672>

[2] Publicações: O lugar onde a terra descansa, 2000; Ailton Krenak (Encontros). Organização de Sergio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue, 2015; Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019; O Amanhã Não está à Venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020; A Vida Não é Útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020; Firmando o pé no território, 2020; Lugares de Origem, com Yussef Campos. Editora Jandaíra, 2021; O sistema e o antissistema: três ensaios, três mundos no mesmo mundo, 2021; Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022; Kuján e os Meninos Sabidos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2024. 

[9] < https:// selvagemciclo.org.br/flecha/ >

[10] Os textos, pesquisa de imagens e direção são de Anna Dantes e a produção de Madeleine Deschamps. Edição: Elisa Mendes; Animações: Livia Serri Francoio; Trilha sonora: Lucas Santtana e Gil Monte; Assistentes de produção: Victoria Moawad, Laís Furtado e Isabelle Passos. Todos episódios são narrados por Ailton Krenak.

[17] Além disso, a quinta flecha é baseada nos livros e Cadernos Selvagem: Livro de Seres Invisíveis, Dorion Sagan (Dantes, 2021); Seres criativos da floresta, Cristine Takuá (Cadernos Selvagem, 2020); Propriocepção, quando o ambiente se torna o corpo, Lynn Margulis, Dorion Sagan, Ricardo Guerrero e Luis Rico (Cadernos Selvagem, 2020); Carta do chefe Seattle comentada por Ailton Krenak (Caderno Selvagem, 2021); A Queda do Céu, palavras de um xamã yanomami, Davi Kopenawa e Bruce Albert (Cia das Letras, 2015).

[19] Baseada em: Regenerantes de Gaia, Fabio Scarano (2019); A ordem do tempo, Carlo Rovelli (2018).