Metodologias, técnicas, parâmetros de interpretação
Marcelo Bolshaw Gomes
Não existe uma metodologia universal para análise fílmica (Aumont, 1999).
Cada filme exige um conjunto singular de métodos e técnicas diferentes de análise. E a proposta desse manual é fazer um levantamento dos principais métodos de análise narrativa crítica audiovisual e de seus parâmetros de interpretação.
Analisar é sinónimo de decompor, dividir em partes - sejam segmentos (análise textual), elementos semânticos (análise de conteúdo), formas de linguagem (o texto, a imagem e o som) ou até efeitos de sentido (na análise poética). Análise também nos remete à analogia, à comparação externa de elementos simbólicos e técnicos do objeto analisado com outros com os quais tenha semelhanças e diferenças.
Para Penafria, o “objetivo da análise é, então, o de explicar/esclarecer o funcionamento de um determinado filme e propor-lhe uma interpretação” (2009, p. 01).
Interpretar significa compreender os diferentes significados, o que o filme nos ensina do ponto de vista ético, quais valores morais e culturais representa. A Interpretação, portanto, não se refere, como pensa o senso comum, a apontar a qualidade do trabalho, mas a observar se o filme realiza adequadamente aquilo a que se propôs. Se as partes analisadas contribuem para proposta, se ele ‘funciona’ ou não.
Assim, há análises mais interpretativas e externas ou “narrativas” e análises mais descritivas, voltadas para as formas simbólicas e os aspectos fílmicos internos. No entanto, a maioria das análises combina elementos externos e internos e se desenvolve em duas etapas: descrever e interpretar (Vanoye, 1994). E, oscilando entre os extremos, existem análises mais descritivas (como as abordagens estruturalistas) e análises mais interpretativas, hermenêuticas, poéticas.
Análise Narrativa Estruturalista
Saussure estabeleceu o Signo como unidade mínima da linguagem e o subdividiu em: Significante ou aspecto material (uma “imagem acústica”); e Significado ou aspecto mental (a ideia abstrata que o signo representa). A análise textual consiste nessa distinção entre a forma material do conteúdo mental.
Hjelmslev duplicou a dicotomia em quatro níveis: Forma de Expressão, Substância de Expressão, Forma de Conteúdo e Substância de Conteúdo. Pode-se dizer que agora, além das formas linguísticas, estuda-se também a semântica e seus conteúdos.
Greimas (1976) utiliza o modelo dos quatro níveis da linguagem para estudar narrativas. A partir de seu modelo, desenvolveu-se (GOMES, 2019) uma metodologia específica para o estudo de narrativas audiovisuais.
Assim, nossa metodologia narrativa audiovisual (inspirada nos modelos estruturalistas) tem três momentos distintos: descrição, análise (do contexto social e das formas simbólicas) e interpretação - em que se discute os elementos psicológicos universais da narrativa e se define sua mensagem simbólica, a “moral da história”.
O estruturalismo teve uma segunda geração a partir de Jackobson (1971) - que propôs não apenas a substituição da língua pela fala como núcleo cognitivo da linguagem, mas também estabelecendo o esquema de elementos da comunicação (emissor, receptor, mensagem, código, referência e contexto) e das funções da linguagem (Referencial; Emotiva; Conativa; Poética; Fática; e Metalinguística).
Mais do que ser aplicada aos filmes, o modelo serviu para o próprio movimento pensar sua evolução. Utilizando os elementos de Jackobson para pensar o desenvolvimento do estruturalismo, André Parente (2000) divide “a narratologia” em três “correntes” principais:
A narrativa como enunciado - que segue a lógica dos significante/significado imposto pelo emissor. Aliás, o código e a referência também são impostos por quem fala. As narrativas são enunciados temporalmente em ordem cronológica em uma rede de causalidade. Todorov e o primeiro Barthes são exemplos deste tipo de analista.
A narrativa como enunciação é inspirada no próprio Jackobson e Beneviste. A narrativa envolve simultaneamente num mesmo contexto o enunciador, o enunciado e a linguagem. O objeto de análise aqui é a ação dramática. Gerard Genette, o segundo Barthes e Christian Metz podem ser classificados aqui.
A narrativa como significação é pós estruturalista e associa narração à significação, o processo de criação de sentido. A ênfase é na recepção como agente e no observador como auto referência. Para Parente, esta é a teoria narrativa defendida pela hermenêutica de Paul Ricoeur (1996); mas é possível vê-la também em outros autores como Percie e Eco.
A análise hermenêutica narrativa nada mais é do que uma leitura histórica e fenomenológica da narratologia estruturalista. No Brasil, Luiz Gonzaga Motta (2013), é o principal introdutor das ideias de Ricoeur, adaptando-a para o estudo das narrativas mediadas. O método é flexível, podendo ser adequado a narrativas seriadas audiovisuais, telejornais, publicidade, jornalismo impresso, além do cinema.
A Metodologia de Análise Pragmática consiste em um esquema de a) três planos, b) sete movimentos analíticos e c) a definição de três níveis de narração.
A revolução bordwelliana
David Bordwell (2013a, 2013b) também reconhece duas teorias narrativas do cinema: a mimética (ou poética) e a diegética (ou interpretativa).
As teorias diegéticas são as abordagens do estruturalismo e da hermenêutica, análises subjetivas e externas à narrativa fílmica em si.
Já a teoria mimética é uma abordagem imediata, simultânea como ...
... um ato de visão: um objeto de percepção apresentado aos olhos do observador. Bordwell mostra que a tradição mimética no cinema se realizou no sentido de constituir uma unidade de visão do filme que ele chama de observador invisível (um filme representa eventos de uma história por uma visão, do ponto de vista de uma testemunha invisível). Este podia ser encarnado na câmera ou identificado com o narrador (Santiago Jr, 2004, p. 02).
O espectador “bordwelliano” não é um leitor ideal (como em Eco), mas uma entidade hipotética que elabora uma metanarrativa fora da representação visual do filme.
O espectador hipotético é o Visualizador (viewer) sensorial e cognitivo: o cérebro constrói julgamentos perceptivos por inferências sensoriais não-conscientes; inferências recorrentes geram mapas cognitivos e regras internalizadas; que reforçam e reconfiguram o visualizador.
A percepção é um processo de simulação: o cérebro filtra o ambiente e o antecipa suas possibilidades, compondo expectativas prováveis, verificando hipóteses. O espectador usa a memória conjugada às motivações que o filme oferece para construir a história; faz suposições sobre o material e sobre a ordenação dos eventos, realizando inferências, testando hipóteses sobre a informação que só lhe é dada de forma gradual, para no final conseguir produzir uma coerência.
As narrativas são assim compostas de forma a recompensar, modificar, frustrar ou malograr a busca do espectador por coerência.
O método de análise fílmica de David Bordwell foca na estrutura e funcionamento do filme através de processos cognitivos do espectador. Ele analisa os elementos da narração, o uso da mise-en-scène, cinematografia, som e edição para entender como o filme direciona a atenção do espectador, cria significados e como esses mecanismos funcionam para desfamiliarizar e surpreender.
Elementos Chave do Método Bordwell:
Foco na Forma e Função: Bordwell analisa as técnicas e formas do filme não de forma isolada, mas sim para entender sua função na construção da experiência do espectador.
Processos Cognitivos do Espectador: A análise considera como a mente do espectador processa as informações do filme, desde a atenção direcionada a detalhes importantes até a forma como os filmes constroem no subconsciente uma visão coerente da história.
Narração como Processo: A narração é um processo dinâmico que ocorre na mente do espectador (e não na do autor e/ou na linguagem como acredita o estruturalismo, sendo fundamental para a construção de múltiplos significados.
Desfamiliarização: O cinema, para Bordwell, tem a capacidade de nos mostrar o familiar de maneiras novas e inusitadas, a experienciar o mundo de forma renovada.
Contexto Histórico: As formas e técnicas cinematográficas não são atemporais. Bordwell enfatiza a importância de contextualizar as possibilidades técnicas e estilísticas dentro de períodos históricos específicos para entender as escolhas do cineasta.
Santiago Junior (2004) considera Bordwell um “estudioso neoformalista, que pode ser associado a corrente analítica cognitiva dos estudos de cinema contemporâneos”. Bordwell é um contraponto às teorias discursivas da narrativa, trocando a linguagem pela experiência sensorial da imagem e do som.
Porém, embora a grande contribuição do americano para teoria narrativa seja sua análise poética e mimética, Bordwell também desenvolve um interessante modelo de análise interpretativa diegética.
Os quatro níveis de significado propostos por Bordwell são o significado referencial, que descreve o enredo e o contexto da história; o significado explícito, que é a mensagem principal declarada abertamente; o significado implícito, que é a interpretação mais profunda das relações entre os elementos do filme; e o significado sintomático, que liga o filme a ideias e valores culturais mais amplos, como os da época em que foi produzido.
Significado Referencial: É o resumo básico do enredo que um espectador poderia criar, considerando informações factuais ou um resumo do que acontece na tela, como a história de uma menina levada por um tornado para a terra de Oz.
Significado Explícito: É a mensagem principal ou o tema central do filme, muitas vezes expresso diretamente através de diálogos ou eventos-chave. No caso de "O Mágico de Oz", um exemplo seria a famosa fala de Dorothy, "Não há lugar como a nossa casa".
Significado Implícito: Este nível vai além do que é dito ou mostrado diretamente, exigindo que o espectador faça inferências sobre os temas e ideias subjacentes. A interpretação do significado de um objeto, lugar ou personagem por si só, como a importância da crise econômica dos anos 1930 no enredo, é um exemplo de significado implícito.
Significado Sintomático: É o nível mais profundo de interpretação, onde o filme é visto como um sintoma de crenças, valores ou ansiedades mais amplas dentro de uma cultura ou período. Este nível busca conectar os elementos do filme com o contexto social e cultural de sua criação, revelando como a história e seus personagens refletem ideias presentes na sociedade.
E esta é a contribuição metodológica de Bordwell: fornecer novos parâmetros de análise, ressaltando o filme como objeto de análise. Um modelo epistemológico de caráter cognitivo que organiza o visual e a linguagem em narrativas sem as teorias linguísticas do discurso.
Sua teoria, porém, possuem limites: a cegueira do “pano de fundo cultural” e a não interatividade do receptor.
O visualizador apenas vê. Não tem afetividade, nem participa de comunidades interpretativas, pactos de leitura ou outras formas de observação intersubjetiva.
Como também a dicotomia radical entre imagem e linguagem também perde o sentido com a interatividade digital ou no RPGs. E está ocorrendo um realinhamento de narrativas, marcadas agora por forte interatividade e indeterminações.
Considerações finais
Do mesmo modo que a imagem oscila entre representar o real (a mímese) e expressar o sujeito (a diegese), o cinema apresenta duas tendências visuais contrárias indissociáveis: o realismo naturalista e o expressionismo em geral (incluindo todas as formas de desconstrução da realidade visual).
Consequentemente, há também análises afinadas com os que acreditam retratar o mundo e análises orientadas pelos que desejam reformatá-lo ressaltando exageros.
Poucos, no entanto, utilizam simultaneamente as análises miméticas e diegéticas.
Penafria (2009) faz uma distinção importante entre crítica cinematográfica, que pensa o audiovisual a partir de seus contextos externos; e a análise fílmica, que foca na decomposição dos elementos internos do filme. Segundo essa lógica, existem quatro tipos de análise, que combinam fatores internos e externos:
A análise textual considera o filme como um texto, dividido em segmentos (unidades dramáticas/sintagmas). É descritiva e Diegética, pois contextualiza a referência. Pode-se dizer que corresponde a distinção entre o significante (forma material) e o significado (conteúdo mental).
A análise de conteúdo é uma decomposição temática do filme, dividindo a narrativa por assuntos, objetos, imagens, metáforas - tanto do ponto de vista quantitativo como do qualitativo, de como o tema é tratado. É descritiva e Mimética, pois busca como os sentidos internos atingem o espectador.
A análise fílmica (ou da imagem e do som) vê o filme como um meio de expressão. A decomposição da imagem (fotografia, enquadramento, composição, ângulo) e do som (trilha musical, sonoplastia, áudio off e in) se completam na definição da estrutura do filme (planos, cenas, sequências). Em nossa ótica, essa forma de análise distingue três códigos integrados em um modelo tecnológico. É mimética e interpretativa.
A análise poética. Esta análise entende o filme como uma programação/criação de efeitos. Em nossa comparação, essa forma de análise corresponde às funções conativa e poética. É uma análise diegética e interpretativa.
Rosa da Silva (2024) também ressalta a distinção feita por Penafria entre crítica cinematográfica e análise fílmica, destacando seu caráter complementar. Ambas observam que a crítica sem análise específica tem seu lugar e que o fílmico atende a singularidade técnica e estética do cinema. Rosa inclusive cita Aumont que vê a necessidade de análises diferenciadas sucessivas.
Com isto, sustenta que o texto está fundamentado sob os alicerces de estruturas narrativas (análise textual), que fundamenta os significados em estrutura narrativa (análise narratológica) e em dados visuais e sonoros (análise icônica) produzindo um efeito particular no espectador (análise psicanalítica) (Aumont, 2004, p.10 Apud Rosa da Silva, 2024, p. 24).
Talvez alguns argumentem que as análises pós-textuais sejam semântica, semiótica e poética (e não narratologia, icônica e psicanalítica), mas o espírito é o mesmo: alternar abordagens miméticas e diegéticas, decompondo e comparando os elementos fílmicos internos e seus enquadramentos contextuais.
A ideia comum é que não basta uma metodologia, mas um conjunto de ferramentas metodológicas para uma abordagem que contemple tanto o universo diegético da crítica cinematográfica como a mímese dos detalhes técnicos e estéticos da linguagem fílmica.
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