Da
Análise Estrutural à Narrativa Mediada
Introdução
“Somos
feitos de histórias” - pensa o historiador, da mesma forma que o
biólogo acha que somos feitos de células e que o físico entende
que somos feitos de átomos. Cada qual com sua narrativa, porque
somos feitos de narrativas. Nossa identidade e nossa memória
dependem da narrativa que contamos. Sim, você acertou: digo que
somos feitos de narrativas porque sou um contador de histórias. E
não me sinto melhor que o historiador, o biólogo ou o físico.
Somos iguais, apenas com pontos de vista diferentes. Como esse ponto
de vista tornou-se capaz de explicar e compreender outros sem
contradizê-los? O que é narrativa? E por que a noção de narrativa
tornou-se tão importante em nossos dias? Essas são as questões que
desejamos responder aqui.
O objetivo principal
é revisar as abordagens voltadas para o estudo das narrativas orais
e escritas, observando como as narrativas audiovisuais assimilam suas
antecessoras e apresentando algumas metodologias de análise capazes
de entendê-las e explicá-las. O
presente texto revisa os principais autores associados aos estudos
narrativos: Propp (1978), Campbell (1990, 1995), Levi-Strauss (1996,
2004;
2005; 2006; 2011),
Greimas (1973), Umberto Eco (1993), Roland Barthes (1971, 1972,
1977a, 1977b, 19080, 2004), Paul Riceur ( 1994;
1995; 1997),
John Thompson (1995) e Motta (2013).
Aristóteles,
Propp e Campbell
Os
conceitos de Aristóteles são utilizados ainda hoje. A noção de
‘catarse’, por exemplo, é a purgação e esclarecimento,
sofrimento sentido por nós projetarmos em situações dolorosas
simuladas, que nos causam alívio e bem estar. Ou ainda ‘Intriga’,
o agenciamento de fatos, sujeitos e cenários segundo o desfecho
desejado. Há também a dialética entre Mimese e Diegesis, cujo
significado varia bastante segundo o autor.
De
forma geral, enquanto a Mimese é associada a ‘Narrar’; a
Diegesis é relacionada ao ‘Mostrar’. Então, para senso comum,
os elementos diegéticos são aqueles extra narrativos, como a trilha
sonora de um filme. Em uma perspectiva mais teórica, no entanto, a
Mimese é a imitação criativa ou representação interpretativa da
ação, através do qual aprendemos atitudes, comportamentos e nos
comunicamos; e a Diegesis, o contexto narrativo em que a Mimese se
realiza, o espaço-tempo em que o evento e suas repetições
acontecem.
Dando
sequência às reflexões de Aristóteles sobre a arte de contar
histórias, Vladimir Propp escreveu a Morfologia
do Conto Maravilhoso
(1978).
Estudando um recorte bem específico (cem contos de fadas russos
orais), o estudioso descobriu uma possível estrutura genérica da
narrativa. Propp identificou sete classes de personagens (agentes),
seis estágios de evolução da narrativa e 31 funções narrativas
das situações dramáticas. Os seis estágios de evolução da
narrativa (Situação inicial, Conflito, Desenvolvimento do Conflito,
Clímax, Solução do Conflito e Encerramento) foram complexificados
por outros autores. E os sete agentes - o agressor; o doador do
objeto mágico ao herói; o auxiliar do herói; a Princesa e o Pai
(não obrigatoriamente o Rei ou a princesa, elemento sequestrado pelo
vilão); o Mandador; o Herói; e o falso herói – são definidos
por suas ações, sem traços pessoais ou profundidade psicológica.
Propp
utilizava seus conceitos para descrever as narrativas específicas e
não para prescrever uma tipologia ou modelo geral. Sua contribuição
mais importante foi decompor a narrativa em 31 funções dramáticas
possíveis.
Mas, essas funções narrativas em seu conjunto não formavam ainda
uma estrutura e sim uma arqueologia. Por isso, é considerado um
'formalista', pré-estruturalista. Sua contribuição principal é
decompor as histórias orais em funções e em ações dos agentes,
facilitando sua comparação.
Outra
contribuição relevante foi a de Joseph
Campbell (1990, 1995).
Ele levou as ideias de Jung aos campos da arqueologia, antropologia e
história das religiões, elaborando um modelo segundo o qual todos
os grandes mitos fundadores das culturas humanas seriam, em última
análise, uma única narrativa universal: o 'monomito', também
chamado de “Jornada do Herói”, em que o protagonista abandona a
vida ordinária, mergulha no desconhecido e retorna à dimensão
cotidiana. O modelo é composto de 3 fases e 17 momentos. E todas as
histórias heróicas são na verdade a repetição dessa única
estrutura narrativa.
O roteirista
Christopher Vogler (1997) usou as teorias de Campbell para criar um
memorando para os estúdios Disney. Vogler faz uma adaptação
reduzida da jornada de Campbell, mantendo as três fases narrativas e
reduzindo as 17 etapas para apenas 12. Hoje esse modelo narrativo é
referência para produção de vários filmes, romances, histórias
em quadrinhos e narrativas heróicas. E também para análise dessas
narrativas. Porém, além da redução, o protocolo Vogler usa a
estrutura da jornada como um modelo de organização das narrativas,
completamente dissociado da observação psicológica e do
desenvolvimento pessoal de si próprio.
Campbell,
além descrever as narrativas de Buda, Moisés e Cristo em termos do
monomito; também acreditava na jornada como um rito de passagem da
infância para a responsabilidade comunitária, como um processo pelo
qual todos passamos, mesmo que involuntariamente. Principalmente
agora, que a sociedade enfatiza o risco para engendrar aventuras,
todos são heróis em jornada "de iniciação" em sua
trajetória do anonimato à consagração (GOMES 2022).
Figura
1 – A Jornada do Herói
Fonte:
Internet
Os
12 Estágios da Jornada do Herói
1.
Mundo Comum –
O primeiro estágio forma o ambiente normal, onde o herói vive junto
a outras pessoas, antes de iniciar sua grande aventura.
2.
A Chamada –
Aqui um desafio surge e acaba influenciando o herói a sair de sua
zona de conforto para cumprir um problema.
3.
Recusa ou Reticência –
O personagem tende a recusar ou demorar a aceitar a chamada,
resistindo a ‘entrar na dança’. Quase sempre é porque tem medo,
sente-se inseguro ou incapaz.
4.
Mentoria –
No quarto estágio ele se encontra com um mentor, sábio, oráculo;
recebe uma ajuda divina ou sobrenatural que o motiva a aceitar a
chamada, concedendo-lhe o conhecimento e a sabedoria para encarar a
aventura.
5.
Cruzamento do Primeiro Portal –
Onde o herói emerge do mundo comum e ultrapassa um portal que leva a
um mundo especial, mágico, uma outra dimensão.
6.
Provações, aliados e inimigos –
No sexto estágio, o personagem passa por testes, enfrenta problemas,
incógnitas surgem. Nesta etapa ele também encontra aliados e
enfrenta inimigos e acaba aprendendo as regras do novo mundo.
7.
Aproximação
– O herói vence as provações.
8.
Provação difícil ou traumática
– A maior dificuldade da aventura aparece, como um caso de vida ou
morte. Esta é a parte mais dolorida do enredo.
9.
Recompensa –
O personagem escapa do fim trágico, supera o medo e adquire a
fórmula mágica, a recompensa por ter aceitado o desafio.
10.
O Retorno –
Retorna para o mundo comum, volta ao ponto de partida.
11.
Ressurreição –
Outro momento decisivo na vida do personagem, mais um teste ao qual
ele enfrenta o perigo, a morte e deve usar com veemência tudo que
foi aprendido, inclusive a fórmula mágica.
12.
Regresso com a fórmula
– Volta para casa com a fórmula de ajudar a todos de seu mundo
comum.
Campbell
e seus seguidores partem do geral (do 'inconsciente coletivo', dos
'arquétipos') ao particular (o mito cultural específico), são
universalistas e cultuam o sagrado como uma epifania transcultural.
Enquanto Propp e as abordagens estruturalistas, no sentido contrário,
observam o aspecto local do mito e da narrativa dentro de um quadro
de referências globais. Ambos abordam 'o todo e as partes' – de
modo até complementar em alguns aspectos.
Lévi-strauss
Aliando o formalismo
narrativo de Propp ao caráter estruturante dos mitos em cada
contexto cultural (enfatizado por Campell), as análises de Claude
Lévi-Strauss comparam a mitologia a uma sinfonia musical, em que a
melodia corresponde ao eixo sintagmático (a sucessão de notas no
tempo contínuo) e a harmonia ao eixo paradigmático (notas
simultâneas dentro de um acorde). E esta analogia permite ao
antropólogo pensar em uma gramática universal do mito: a passagem
da natureza à cultura (do crú ao cozido, do nú ao vestido, etc), o
estabelecimento de regras de aliança e a separação entre humanos e
não humanos.
Após,
investigar durante 20 anos diferentes culturas ameríndias,
realizando uma ampla a
análise estrutural de 813 mitos nativos das duas Américas com
algumas variantes;
Lévi-Strauss publicou o maior e mais completo estudo sobre o mito do
herói (2004; 2005; 2006; 2011).
Há
também um livro autobiográfico, sem análises antropológicas,
organizado a partir de seu diário de campo no Brasil, Tristes
Trópicos (1996),
que relata sua experiência como uma jornada mítica, como uma viagem
intercultural de autoconhecimento.
O
mito de referência (M1) é o ‘desaninhador de pássaros’, que
serve como fio condutor de todas as análises que se seguem.
A narrativa foi colhida pelo próprio Lévi-Strauss quando esteve no
Brasil, estudando os índios Bororo do Mato Grosso e conta a história
de um incesto materno.
Ao
descobrir a transgressão, o pai expulsa o filho. O herói vai para
dimensões desconhecidas e rouba o fogo de seres mágicos. Em algumas
dessas lendas, o fogo é dado em troca de uma aliança e de um
casamento do herói nativo com a filha de seres encantados. Então,
dono de grande poder, volta à sua terra e mata o pai, a mãe e todos
que o humilharam no passado. O mito assim tanto prescreve o tabu como
sua transgressão heroica e destrutiva. Esses transgressores dos
limites entre natureza e cultura estão destinados a se tornarem
senhores do fogo e da guerra.
A estrutura do M1
tem quatro momentos: a transgressão do tabu (o pecado original), o
castigo social (a expulsão do paraíso), a conquista do fogo (a
plenitude da liberdade) e a vingança da exclusão através da
destruição generalizada (o apocalipse).
Essa
'armadura narrativa' é comparada com outras narrativas míticas
ressaltando suas variações e pontos em comum: Em O
cru e o cozido
(2004) e em
Do mel às cinzas
(2005)
são baseados em metáforas culinárias em torno do mito do fogo
sulamericano; A origem dos
modos à mesa
(2006) e o Homem
nú (2011)
ampliam a perspectiva de Strauss para outras áreas culturais como o
vestimentos e os costumes em geral, na mitologia dos nativos
norte-americana.
Para Lévi-Strauss o
mito é uma representação formada simultaneamente por três códigos
de troca interdependentes: a economia-política (a troca de bens), a
linguística (a troca de signos) e o parentesco (a troca de mulheres,
na verdade a história de permuta genética entre famílias). Os
mitos, assim, expressam esses três aspectos: a divisão social do
trabalho justificando as relações de poder e exploração entre
grupos; a linguística explicando os nomes das pessoas, coisas e
locais; e o parentesco, não apenas legitimando as diferenças
étnicas entre povos, mas, sobretudo reproduzindo de um modelo de
trocas sexuais, com seus interditos e sublimações.
Aperfeiçoando
a noção de estrutura social, como um modelo de múltiplas
determinações das relações sociais, Lévi-Strauss critica seus
antecessores por verem nos discursos e nas ações individuais meras
execuções da estrutura social e não seu núcleo
cognitivo. Jackobson pensou em uma linguística estrutural em que a
fala fosse mais relevante que a língua.
Lévi-Strauss
adaptou essa ênfase a ação social e a estrutura. De
forma que, para ele, a possibilidade de uma ação individual se
exercer se encontra estruturalmente determinada sem que disto decorra
uma obediência cega e inconsciente às regras sociais como em
Saussure e na maioria dos estruturalistas; nem que, ao contrário, se
caia em uma atitude deliberada e intencional, idealista .
O
outro ponto é referente ao sistema de parentesco (e às ideias de
inconsciente e de recalque dos desejos de Freud). Enquanto Freud crê
no complexo de Édipo e na sublimação dos instintos, Lévi-Strauss
prefere descrever o tabu do incesto matrilinear como o centro de um
sistema de recorrências involuntárias que tem como estrutura a
perpetuação das relações de parentesco.
Neste modelo, a Natureza é o universal, o espontâneo e o
inconsciente; enquanto a Cultura corresponde ao conjunto das regras
relativas e particulares. Há diversas culturas e uma única
natureza. O incesto matrilinear é a única regra universal para
todas as culturas, epicentro das relações dos homens com seu
ambiente.
Por isso, os mitos têm um conteúdo universal.
Apesar de ser um
formalismo a-histórico, duplamente sem sujeito (sem agentes sociais
nem auto referência de observação), o estruturalismo foi uma dupla
reviravolta contra o etnocentrismo científico e o relativismo
cultural, formando um inventário metódico do drama universal do
homem em suas culturas.
Lévi-Strauss,
Lacan, Bourdieu, Foucault, Barthes, Greimas – toda geração de
pensadores franceses do pós-guerra, amigos entre si - fazem uma
transição gradual do estruturalismo (e da morte do sujeito
universal) para a pós-modernidade, caracterizada pela auto
referência discursiva do enunciador, pela observação
intersubjetiva, pela emergência do receptor ativo. Cada um faz essa
passagem de uma forma diversa, em áreas diferentes do conhecimento,
com variados percursos e perspectivas. Todos, no entanto, descobriram
o próprio protagonismo frente às estruturas, sendo mais
propositivos que analíticos, virando definitivamente essa página da
história da teoria narrativa.
Semiótica
narrativa
Greimas
escreveu um artigo (BARTHES
et alli, 2008, 63) em
que retoma o método de análise mítica de Levi-Strauss e o mito do
desaninhador de pássaros,
para pensá-lo do ponto de vista da semântica. Na semântica
estrutural de Greimas não
há uma única estrutura fixa e atemporal integrando diferentes
sistemas de troca, mas sim várias estruturas diferentes sobrepostas:
a estrutura linguística de superfície, a estrutura discursiva
intermediária (as formas de conteúdo); a estrutura narrativa de
profundidade (a substância de conteúdo, o simbólico, os universais
do imaginário).
Figura
2 –
Análises linguística, discursiva e narrativa
Assim,
a linguagem (ou a estrutura linguística de superfície) é:
sincrônica e imediata, sendo explicada pela análise discursiva no
plano das formas de conteúdo (pelos enunciados diacrônicos e
lineares do pensamento) e pela análise da estrutura narrativa de
profundidade, o arranjo dos elementos universais e inconscientes (que
voltam a ser simultâneos).
Ferdinand
Saussure, criador da linguística e do estruturalismo, estabeleceu o
Signo como unidade mínima da linguagem e o subdividiu em dois
aspectos indissociáveis:
o
Significante
ou
aspecto
material
(uma
“imagem
acústica”);
e
Significado
ou
aspecto mental (a ideia abstrata que o signo
representa).
Enquanto
Saussure elaborou uma linguística voltada para o estudo oral do
idioma, Hjelmslev e a escola glossemática criaram uma linguística
estruturalista
voltada
para o idioma escrito e duplicaram a dicotomia do signo em quatro
níveis: Forma de Expressão, Substância de Expressão (referentes
ao Significante e ao aspecto exterior da linguagem),
Forma
de
Conteúdo
e
Substância
de
Conteúdo
(relativas
ao
Significado
e
ao
aspecto interior da
linguagem).
Tabela
1 – Saussure
e Hjelmslev
-
SAUSSURE
|
GLOSSEMÁTICA
|
SIGNO
|
SIGNIFICANTE
Imagem acústica
|
Forma de
Expressão
|
Ordem de
elementos
|
Substância de
Expressão
|
Morfemas
elementos
|
SIGNIFICADO
Ideia
abstrata
|
Forma
de Conteúdo
|
Ordem estrutural
|
Substância de
Conteúdo
|
Conceito puro
|
Chapman
e
depois
Greimas
utilizam
o
modelo
dos
quatro
níveis
da
linguagem
da
escola glossemática para estudar
narrativas.
A forma de
expressão é
a linguagem superficial, imediata, como a percebemos através dos
sentidos. Ela é composta com palavras, imagens, sons e signos
materiais.
A substância
de
expressão
é
o
significado
imediato,
temático,
do
conteúdo
de cada signo: o que foi dito e onde/quando foi dito. A linguagem
transforma-se em discurso, um conjunto de
enunciados.
A forma de
conteúdo,
por sua vez, implica em se observar o contexto de enunciação e os
diversos contextos de recepção (os diferentes pactos de leitura da
narrativa), fazendo assim uma crítica ideológica da narrativa. A
forma de conteúdo também pode ser compreendida como uma crítica
estética, destacando como a narrativa se coloca em relação a
outras narrativas semelhantes em gênero ou tipo, se assimila
enredos de outras histórias ou se traz elementos novos.
A
substância de conteúdo se
refere aos elementos simbólicos e psicológicos
da
narrativa,
aos
‘universais
do
imaginário’,
que
combinados
de
diferentes
modos
formam
a
“mensagem”
da
narrativa.
Greimas
sugere
a
organização
desses
elementos em pares, representando os conflitos, relações
complementares e contrapontos
da
narrativa,
em
modelo
chamado
de
Quadrado
Semiótico
Narrativo.
Este
modelo
consiste
em
definir
quatro
actantes
(ou
elementos
simbólicos
principais
da
narrativa
e organizá-los em seis pares de
opostos.
Para Greimas, todo
texto pode ser analisado como uma narrativa. Por exemplo: o médico
lê os sintomas de seu paciente (no plano das formas de expressão)
extraindo daí um diagnóstico (no plano do conteúdo de substância)
de sua enfermidade. Os sintomas são os significantes e o diagnóstico
é o significado. Todo sistema semiótico narrativo é formado por
uma semântica (estudo dos significados) e por uma sintaxe (estudo
das relações estruturais entre os significantes).
A forma de expressão
é a linguagem superficial, imediata, como a percebemos através dos
sentidos. Ela é composta com palavras, imagens, sons, signos
materiais. Já a substância de expressão é o significado imediato,
temático, do conteúdo de cada signo: o que foi dito e onde/quando
foi dito. A linguagem transforma-se em discurso, um conjunto de
enunciados.
Os
sintomas-significantes ‘seios inchados e doloridos, atraso na
menstruação, enjoos, alterações no paladar’ no plano da forma
de expressão nos leva a enunciar o diagnóstico-significado de
‘gravidez’ no plano da substância de expressão.
Nas narrativas no
nível das formas de conteúdo, alguém (O SUJEITO) deseja alcançar
algo (O OBJETO DE VALOR) e é atrapalhado por algo/alguém (O ANTI
SUJEITO). Este modelo simples permite entender o gênero (que tipo de
objeto de valor) e a ideologia (a identidade do anti sujeito) da
narrativa. No caso da gravidez, o diagnóstico da substância de
expressão: a mãe é o actante sujeito; a futura criança, o objeto
de valor; e o anti sujeito, define o tipo de narrativa: gravidez de
risco, gravidez indesejada, gravidez constrangedora.
E, finalmente, em
nosso exemplo, chegamos aos conteúdos mais simbólicos e universais
envolvendo a gravidez e o parto como ritos de passagem feminino. A
substância de conteúdo se refere aos elementos simbólicos e
psicológicos da narrativa, aos ‘universais do imaginário’, que
combinados de diferentes modos formam a “mensagem” da narrativa.
Greimas
sugere a organização desses elementos em pares, representando os
conflitos, relações complementares e contrapontos da narrativa, em
modelo chamado de Quadrado Semiótico Narrativo. Este modelo consiste
em definir quatro actantes (sujeito, anti-sujeito, objeto de valor e
ajudante) e organizá-los em pares de opostos: duas relações de
contradição; duas relações de contrariedade; e duas relações de
complementaridade.
O
Quadrado
Semiótico
Narrativo
de
Greimas
consiste
na
representação
visual
da
articulação
lógica
de
uma
qualquer
categoria
semântica
no
plano
de
conteúdo.
Nele,
se
situam os actantes: o Sujeito (S1), o Ajudante (S2), o Objeto de
Valor (~S1) e o Anti-sujeito (~S2). As linhas bidirecionais contínuas
representam as relações de contradição; as bidirecionais
tracejadas, as relações de contrariedade; e as linhas
unidirecionais, as relações de complementaridade.
Geralmente
apresenta-se Greimas como um teórico estruturalista que superou o
estruturalismo, mas isso não é inteiramente verdade. Seu livro mais
importante,
Semântica
estrutural
(1973),
já considera as raízes psicológicas da linguagem. E os livros
posteriores Semiótica
das paixões
(1993) e Da
Imperfeição
(2002)
tratam de compreender as emoções e os efeitos de sentido do
receptor e não mais a análise linguística das narrativas, porém
não abandonam inteiramente sua perspectiva estrutural.
Os
limites da interpretação
Walter
Benjamin em A
Obra de Arte na era de sua reprodutividade técnica
(1985,
5-28) ressalta o impacto que a produção em série de objetos pela
indústria teve sobre a percepção. Houve um tempo em que apenas as
moedas e a xilogravura eram objetos produzidos em série. A obra de
arte era única no tempo e no espaço e isso lhe conferia uma aura,
uma presença sagrada. Hoje praticamente tudo é reproduzido de modo
idêntico. A arte, então, deixou de ser sagrada, 'objeto de culto'
para se tornar expressiva dos sentimentos e crítica da injustiça
social.
Em
O
Narrador
(1985, p. 57-74), Benjamin observa que, com a reprodutividade
técnica, também há uma mudança na forma ‘como’ contamos
histórias. Para ele, as histórias orais eram míticas, encantadas,
tinham um efeito de sentido mágico. E a narratividade do romance
moderno é desencantada, descritiva e propositalmente subjetiva.
No
ambiente tradicional, as histórias eram transmitidas oralmente e,
portanto, eram repetidas sempre da mesma forma – como exigem as
crianças em seus primeiros anos. Quando ganhavam versões escritas,
os narradores não se assumiram como autores da narrativa: Homero,
Virgílio, Apuleio apenas recontavam narrativas que ouviram. A
ênfase cognitiva era na narrativa.
No
ambiente moderno, no entanto, o contador de histórias (escritores,
cineastas, artistas) deve ‘ser criativo’, original e primar pela
novidade, não só contando uma mesma história de diferentes formas,
mas sempre contando novas histórias. Tornou-se lugar comum não
apenas recontar histórias clássicas com um estilo autoral, mas
também combinar histórias de diferentes culturas e épocas,
relacionando-as, misturando seus personagens e textos, fazendo
citações para serem reconhecidas. A
ênfase moderna é no narrador.
Em
outros textos (1985, 29-56), Benjamin diz que o artista moderno é
sagrado, é ele que tem a 'áurea', que é sua vida que dá sentido à
sua obra. Para ele, a produção em série deslocou a singularidade
da arte do campo do objeto para o interior do sujeito, transformando
a ‘espiritualidade da criação’ na ‘genialidade do criador’.
Esta
ditadura do emissor instaurou a relação explícita entre o
enunciador e a referência (dividindo as narrativas entre reais e
imaginárias) e instaurando a metalinguagem no coração da arte
moderna. A imagem e os sentimentos foram secundarizados no
significante.
Porém, ao contrário
do que pensou Benjamin, a morte da narrativa como prática social não
aconteceu com a educação iluminista, as narrativas não se
desencantaram por completo com a unilateralidade dos textos escritos.
A interpretação de um texto se constitui num processo aberto e
cooperativo entre autor-texto-leitor. Durante muito tempo a crítica
literária acreditava que o sentido de um texto era a expressão das
intenções de seu autor. Ao leitor, caberia apenas o papel passivo
de interpretar o que o autor quis dizer.
Charles
Sanders Peirce (2003) entende que o sentido é produzido mais pela
relação texto-receptor do que pela intenção do enunciador
(psicanálise) e/ou do significado do texto em si (estruturalismo). A
‘semiose ilimitada’ a partir do interpretante significa que um
signo não representa um objeto de referência e sim outro signo, que
representa outro signo e assim indefinidamente. Nesse contexto, a
ênfase narrativa principal é no leitor e na própria percepção.
Mesmo
aceitando a semiose ilimitada do receptor, Interpretação
e superinterpretação
(ECO 1993) traça limites para interpretação através da noção
de leitor-modelo. Para Eco, há textos abertos como a arte
(polissêmicos, em que vários sentidos convergentes se encaixam) e
textos fechados, dirigidos a públicos específicos. Para entender
textos intermediários, Eco propõe duas estratégias de
interpretação textual: o autor-modelo e o leitor-modelo.
E como teórico da
comunicação, Eco restringe a semiose ilimitada à semiótica,
enquadrado pelo campo sociológico. Apesar de reconhecer a
importância da interpretação final do receptor, Eco destaca o peso
das circunstâncias de enunciação {...} “do que está atrás do
texto, atrás do destinatário e provavelmente diante do texto e do
processo de cooperação (no sentido de que depende da pergunta: ‘Que
quero fazer com este texto?’)” (ECO, 1993, p. 49).
Ao contrário de
outros defensores da semiose ilimitada perciana (como Jacques Derrida
e Richard Rorty), Umberto Eco leva em conta o contexto do enunciador
(ou o contexto sócio histórico de transmissão e distribuição do
discurso e os ‘pactos de leitura’ (os diferentes contextos sócio
culturais de recepção do discurso).
As
estratégias de leitura textual (o autor modelo e os leitores
modelos) seriam os limites da interpretação legítima. O texto
quando tem uma única interpretação fechada tende a paráfrase e
ao autor-ideal e quando tem muitas possibilidades de sentido tende à
abertura, à polissemia e aos leitores-ideais. Na prática, a maioria
dos textos está entre esses extremos. Enquanto, os defensores da
semiose ilimitada absoluta estariam endossando projeções indevidas,
‘usos’ arbitrários e ‘super-interpretações’.
O autor-ideal e os leitores-ideais operam como estruturas dentro da
semiose do receptor. Há a narratividade do emissor (o repórter
fazendo uma matéria), narratividade da linguagem (o editor que
reorganiza o trabalho do repórter), mas, o mais importante, é a
narratividade do telespectador, que ‘zapeia’ os canais com seu
controle remoto.
Daqui
se depreende alguns pontos importantes: a) a intriga principal de uma
narrativa é tecido por quem a escuta (como um sonho que lembramos de
trás para frente e que Freud chama de processo elaboração
secundária); b) com a semiose do receptor sendo primária, há uma
inversão na ordem metodológica de analisar narrativas; c) o
contexto do emissor (ou autor-ideal) e a linguagem da narrativa são
limites para interpretação não ser arbitrária; e d) que a seleção
das narrativas e dos enredos que nos interessam são orientados pelos
nossos afetos e ideias.
Assim,
procuramos, ouvimos e recontamos histórias para e por nos
identificar com elas. Desejamos a vingança do herói injustiçado
para compensar nossas humilhações pessoais; escolhemos o herói
sofredor para redimir nosso sofrimento através da catarse trágica;
rimos e achamos graça dos anti-heróis para esquecer do mundo; temos
simpatia piedosa pelos protagonistas imperfeitos; e, sobretudo,
cultuamos comportamento exemplares através de heróis perfeitos.
Escolhemos torcer por time ou por um jogador não só porque queremos
ganhar com ele, mas sobretudo porque ele nos representa em aspectos
subjetivos.
Tabela
– Identidade afetiva entre protagonista e receptor
Tipo
de protagonista
|
Modo
de identificação
|
Disposição
do receptor
|
Competidor
|
Qualidades
pessoais
|
Apostar
no vencedor
|
Herói
perfeito
|
Admiração
|
Culto
ao comportamento exemplar
|
Herói
imperfeito
|
Piedade
|
Simpatia,
interesse moral
|
Anti-herói
|
Irônica
|
Espanto,
provocação cômica
|
Herói
que sofre
|
Catártica
trágica
|
Redenção do sofrimento pessoal
|
Herói
injustiçado
|
Catártica
vingativa
|
Compensação
das humilhações
|
Adaptado
a partir de Jauss apud Motta (2013, 189)
Semeologia
e narratologia
A
coletânea de artigos Análise
Estrutural da Narrativa
(BARTHES
et alli, 2008)
marca um momento importante para os estudos narrativos em seu momento
estruturalista. Umberto Eco escreve uma análise narrativa dos livros
de James Bond (2008, 142); Claude Bremond investiga 'A
lógica dos possíveis narrativos'
(2008, 114); Tzvetan Todorov define 'As
categorias da narrativa literária'
(2008, 218); Gérard Genette discute as Fronteiras
da narrativa (2008,
265), voltando aos conceitos de mimesis e diegesis em Platão e
Aristóteles; Greimas faz uma já citada homenagem ao trabalho de
Lévi-Strauss
em Elementos
para uma teoria da interpretação da narrativa mítica
(2008, 63); e Roland Barthes, organizador do livro, publica sua
panorâmica Introdução
à análise estrutural da narrativa (2008,
19) - em que a noção de narrativa como unidade sintagmática é
operacionalmente decomposta em ações (unidades intermediárias) e
essas em funções (unidades primárias). Barthes também observa as
vozes do autor, da mensagem e do leitor na narrativa.
Ao contrário de
Campbell, de Lévi-Strauss e de Greimas, que viam as narrativas
míticas como epifanias e memórias estruturantes; Roland Barthes
considera que os mitos são construções ideológicas do poder
conotativo. O mito naturaliza as relações sociais, transformando
contingências históricas em tabus e falsas identidades, eternizando
o mundo em suas desigualdades.
O livro Mitologias
(BARTHES,
1972) - escrito nos anos 50, com textos rápidos, muitos dos quais
publicados em jornais, com críticas estruturalistas a temas comuns
da mídia (o Citroën DS, a luta livre, o vinho, o rosto de Greta
Garbo, as batatas fritas e os fait
divers)
popularizou rapidamente o autor fora no meio acadêmico francês,
inclusive fora do país. Segundo Barthes, o senso comum é a
linguagem denotativa; e a verdade desmascarada é a linguagem
conotativa. E, para ele, o papel do crítico é desconstruir o
denotativo mostrando o conotativo.
Aqui no Brasil, em
virtude das preferências intelectuais de tradutores e editores,
temos dois Barthes diferentes:
(…)
nos anos 70, foi sobretudo o autor estruturalista que interessou aos
intelectuais brasileiros, graças a suas reflexões sobre a
linguagem, calcadas nas teorias linguísticas em voga (…)
transformaram-se nas leituras obrigatórias ao intelectual
interessado em analisar qualquer tipo de linguagem, da literatura ao
cinema, do mobiliário às revistas em quadrinhos, da moda à
publicidade, da fotografia ao discurso jornalístico. O Roland
Barthes que ora transparecia era o semiólogo, líder do
estruturalismo francês, instrumental analítico, pau para toda obra,
teoria para toda pesquisa. (…) Mas a pós-modernidade do final dos
anos 90 e do início dos anos 2000 ressuscitou o escritor como um
todo, reconhecendo nele um precursor de modelos libertários de
construção literária: a estética do fragmento e a escrita
corpórea, que opera guiada pelo desejo, por exemplo, foram
celebradas como formas de ruptura com o padrão de escrita acadêmica,
em princípio objetiva e fundamentada em uma lógica puramente
racional.
O grande marco dessa
virada foi a
aula inaugural no College de France,
em 1977, quando Barthes rompeu
definitivamente com o estruturalismo, ao
considerar a língua como um código de linguagem engendrado pelo
poder (e não como memória social), aproximando-se de Foucault.
Barthes
tem um percurso que vai da linguística estrutural à literatura,
embora parte de seus leitores minimizem essa mudança.
O certo, no entanto,
é que seus livros mais recentes são bem diferentes dos mais
antigos. O Roland Barthes estruturalista do Sistema
da moda,
da Introdução
a análise estrutural da narrativa,
do Grau
zero da Escritura
e de Elementos
de Semiologia
(1971b) não é o mesmo Roland Barthes pós-moderno dos livros
Fragmentos
do Discurso Amoroso
(1977),
um dicionário de verbetes filosóficos sobre o amor;
Camera
Clara
(1980),
um estudo sobre fotografia e morte.
Há também textos
de transição como A
Morte do Autor
(2004),
escrito dez anos antes da Aula de 1977. A morte do autor é na
verdade o nascimento do leitor e é considerado um marco de superação
do estruturalismo (para quem o autor já não importava).
Em seus primeiros
livros, Barthes enfatiza mais o significado que o significante, que
confunde com o aspecto material do signo, chegando a dizer que a
semiologia deveria ser uma parte da linguística (e não o contrário
como pensam Saussure e Peirce) devido ao predomínio do verbal sobre
não verbal. Ele combatia a noção de um 'significante
transcendental' e do conceito de símbolo na tradição freudiana.
Assim, o significante é material e haveriam sempre dois
significados, o denotativo e o conotativo. Por exemplo: um conjunto
de significantes (luvas, gorro, casaco) tem como significado
denotativo 'o frio' e como significado conotativo, a condição
social do portador.
Particularmente, considero essa
incapacidade de entender o papel cognitivo da imagem, da entonação
de voz e dos símbolos em real uma 'misogenia linguística'. Porém,
compreendo que muitos ainda continuem pensando assim. Além disso, a
verdade é que há
uma grande diferença entre analisar narrativas e interpretar a
própria história. Os últimos textos de Barthes são um convite à
ruptura de um paradigma e à superação de um modo de vida através
de uma nova atitude diante do mundo. Mas, só alguns percebem:
Barthes não é mais um analista, tornou-se um escritor (ou um
scriptor, como preferia).
A hermenêutica
narrativa
A
hermenêutica é a teoria da interpretação dos discursos e é
utilizada em diferentes áreas do conhecimento, no Direito e nos
estudos bíblicos. Ela é conhecida pela capacidade de assimilação
de outros saberes, pela combinação de métodos e de teorias em nome
da compreensão. Paul Ricoeur é o grande codificador contemporâneo
da hermenêutica filosófica, combinando as teorias psicanalítica,
estruturalista e fenomenológica. Ricoeur também é
o marco de divisão entre a narratogia estruturalista (que tinha por
objetivo descrever e explicar) para os estudos narrativos
compreensivos, em que as narrativas nos dizem que somos e nos ensinam
a resolver nossos problemas. A
narrativa agora é vista como processo cultural é centrada na
narração ou na enunciação narrativa, mais do que na narrativa em
si. Enquanto o círculo de recorrência semiótica se limita ao mundo
dos interlocutores através do discurso, o círculo hermenêutico
comporta ainda a presença de outros agentes e objetos em um universo
mais vasto e aberto a influências inesperadas. O enunciado não é
mais imposto pela codificação do enunciador, mas produzido e
compartilhado semioticamente pelos interlocutores dentro de um
contexto hermenêutico mais amplo. Abre-se uma perspectiva mais
cultural e antropológica do que linguística, mais fenomenológica
que estrutural.
Tempo
e Narrativa
(RICOEUR:
1994; 1995; 1997)
absorve Aristóteles, o estruturalismo, a mitologia e a tese da
semiose ilimitada para mostrar que a historiografia (a narrativa dos
historiadores) é uma construção poética. Constata que não há
diferenças estruturais entre as narrativas reais e as imaginárias.
A diferença entre as narrativas reais e as ficcionais são as
provas, as fontes, as evidências comprovadas. E, claro, o pacto de
leitura. O leitor sabe de antemão se o texto se refere a
acontecimentos reais ou se tem licença poética para inventar
situações e ações, que, indiretamente, transmitam a realidade ou
destaque elementos discretos.
Narrar
história é enredar pessoas, instituições e ideias, é também
enredar-se como narrador – seja em textos científicos ou
jornalísticos. A noção de intriga passa a ser utilizado, não
apenas como a coluna vertebral da narrativa, mas, principalmente,
como a configuração invertida das mimesis do autor, da linguagem e
dos leitores. Invertida porque, de forma semelhante ao processo de
elaboração secundárias dos sonhos de Freud, organiza a narrativa
de trás para frente, sempre a partir da última percepção do
receptor, elegendo aliados e vilões, criando ganchos de suspense,
viradas e surpresas para enganar o leitor.
Thompson
(1995) aplica
as ideias de Ricoeur ao aspecto simbólico das narrativas mediadas.
Mas
há uma diferença marcante entre a hermenêutica clássica e a de
Thompson. Os hermeneutas clássicos dão mais ênfase ao ‘texto’,
isto é, ao significado intrínseco da linguagem, do que às
condições de enunciação e de apropriação desse sentido. E, por
ser sociólogo, para Thompson, a ‘autonomia semântica das
mensagens’ (e sua análise independentemente dos interlocutores) é
secundária diante dos contextos sócio-históricos de transmissão e
de recepção.
Para
ele,
os
contextos fazem parte da narrativa
e
do seu aspecto ideológico. Thompson
define ideologia como “uma forma simbólica que está a serviço do
poder”, deixando claro que existem outras formas simbólicas que
não cumprem esse papel, ou mesmo que ideologia é apenas uma das
formas de interpretação possíveis de uma determinada forma
simbólica. A ideologia
não está apenas no contexto de quem diz, também não apenas no
como se diz, mas, principalmente, no que se compreende.
Thompson parte da compreensão imediata que se tem de uma determinada
narrativa ou forma simbólica na vida cotidiana, depois busca
construir uma concepção objetiva explicativa dessa interpretação
preliminar (consorciando vários métodos de análise) e, finalmente,
reinterpreta o significado da narrativa através de outras
interpretações diferentes.
A
esta metodologia geral, chama-se “enfoque tríplice”. (THOMPSON,
1995, p. 355)
Tabela
3 – Metodologia Triplice
-
OBJETO
|
ETAPAS
|
MÉTODOS
CONJUGADOS
|
RESULTADO
|
Emissor
|
Análise
sócio-histórica da produção e transmissão
|
Situações
espaço-temporais
Campos
de interação
Instituições
Sociais
Estrutura Social
Meios técnicos
de transmissão
|
Síntese
Hermenêutica
|
Mensagem
|
Análise Formal
ou Discursiva
|
Análise
semiótica
Análise de
conversação
Análise
sintática
Análise
narrativa
Análise
argumentativa
|
Receptor
|
Análise
sócio-histórica da apropriação
|
Interpretação
das Mensagens
Mapa das
diferentes interpretações
Re-interpretação
da interpretação
|
Fonte:
próprio autor resumindo Thompson
Inicialmente
(THOMPSON,
1995, 366),
o objetivo da análise sócio-histórica é reconstruir as condições
sociais e históricas de produção, circulação e difusão das
narrativas. As situações de tempo e espaço em que as narrativas
foram produzidas; os campos de interação (face-a-face, interação
mediada, quase interação mediada, etc) em que elas foram contadas;
as instituições sociais que as produziram; a estrutura social (as
classes sociais, as relações entre gêneros e outros fatores
sociais permanentes) e os meios técnicos de construção e
transmissão das narrativas (sua fixação material e sua
reprodutividade técnica).
Em
um segundo momento, toma-se a narrativa como um texto, como uma
estrutura discursiva relativamente autônoma de sua produção e de
seu consumo. Nesse sentido, a análise implica em uma abstração
metodológica das condições sócio-históricas de produção e
recepção das narrativas. Thompson adota vários métodos de
análise. Assim, Thompson utiliza a hermenêutica não como uma
alternativa aos outros métodos de análise de formas simbólicas e
ideológicas já existentes, mas sim como um referencial
metodológico geral, dentro do qual alguns desses métodos podem ser
situados e correlacionados entre si (THOMPSON,
1995, 369).
Finalmente
(1995,
375),
na última fase de sua hermenêutica, Thompson leva em conta a
interpretação criativa do significado das formas simbólicas em
diferentes contextos de recepção, inclusive no próprio contexto
do analista/enunciador da interpretação. O estudo analógico dos
diferentes contextos de recepção demonstra que por mais rigorosos
que sejam os métodos e as técnicas analíticas, eles não podem
abolir a liberdade de interpretação dos públicos e das situações
em que se encontram inseridos.
No
Brasil, Luiz
Gonzaga Motta, em Análise
Crítica da Narrativa
(2013), é o principal introdutor das ideias de Ricoeur no estudo das
narrativas mediadas. Por
que estudamos narrativas? Para nos
conhecermos; para aprender sobre o mundo; para distinguir entre o que
é benéfico do que não é; e para “melhor recontá-las”. E
nós acrescentaríamos: elas são uma forma de investigação e uma
forma de localização no tempo/espaço. Motta
apresenta uma proposta metodológica, que consiste em um esquema de
a) três planos, b) a definição de três níveis de narração, em
que operam c) sete movimentos analíticos. O
Plano da expressão
(linguagem) corresponde à Descrição; o Plano
da história
(ou conteúdo) equivale à Análise; e o Plano
da metanarrativa (tema
de fundo) é a Interpretação.
PLANO
DE EXPRESSÃO
|
PLANO
DE CONTEÚDO
|
PLANO
METANARRATIVO
|
Signo
|
Significado
|
Significante
|
Dentro
destes três planos, o analista pode operar os sete movimentos: a
intriga, o paradigma, os episódios, o conflito dramático, os
personagens, as estratégias argumentativas e a metanarrativa.
O
primeiro procedimento analítico é definir a intriga, o plot, da
narrativa como um todo. Há um resumo técnico no plano da expressão;
um storyline no plano de conteúdo; e uma interpretação de conjunto
no plano metanarrativo.
O
segundo e o terceiro procedimentos são a decomposição desta
intriga principal em diferentes arcos narrativos. Em séries de
ficção existem arcos narrativos de temporada decompostas em
episódios regulares. Nas análises de narrativas jornalísticas,
essas unidades não são uniformes. Aqui também cada procedimento
pode ser realizado em cada um dos três planos.
O
quarto procedimento consiste em estabelecer os diferentes tipos de
conflito da narrativa, os conflitos no plano da expressão, no plano
de conteúdo e no plano metanarrativo.
Os
personagens podem ser vistos como agentes de funções (Propp), como
actantes (Greimas) e de vários outros modos . O importante é
descrevê-los nos diferentes planos físico, mental e moral.
Desta
descrição, certamente emergirão estratégias argumentativas
explícitas e implícitas aos personagens internos da narrativa, mas
também entre o destinador e o destinatário externos.
O
´setimo procedimento corresponde a interpretação dessas
estratégias.
MOVIMENTO
|
PROCEDIMENTO
ANALÍTICO
|
1º
Movimento: compreender a intriga como síntese do heterogêneo
|
STORYLINE
Resumo-síntese
|
2º
Movimento: compreender a lógica do paradigma narrativo
|
Decomposição
dramática da narrativa em temporadas
|
3º
Movimento: deixar surgirem novos episódios
|
Decomposição
dramática da narrativa em episódios
|
4º
Movimento: permitir ao conflito dramático se revelar
|
Identificar
conflitos psicológicos e sociais no conflito dramático
|
5º
Movimento: personagem: Metamorfose de pessoa a persona
|
Funções,
actante e outros
|
6º
Movimento: as estratégias argumentativas
|
Produção de
efeitos reais
Produção
de efeitos estéticos
|
7º
Movimento: permitir às metanarrativas aflorar
|
Interpretação
|
Há
ainda nessa metodologia a prescrição de observar três diferentes
níveis de narração.
Um
exemplo: A protagonista escreve uma carta para seus amigos da
ex-escola em que estudava, dizendo que está se adaptando, fazendo
novos amigos, etc. O texto é narrado pelo audio da personagem. No
entanto, a imagem mostra a personagem sofrendo discriminações e
bulling na nova escola. Então, o narrador
personagem
diz que está tudo bem. O narrador
mediador
diz que está tudo mal. E o narrador
autor
diz que a protagonista está mentindo. Essa mesma lógica das
narrativas ficcionais pode ser apliacada às narrativas
jornalísticas e comunicacionais.
NARRADOR-AUTOR
|
NARRADOR-MEDIADOR
|
NARRADOR
PERSONAGEM
|
O
primeiro se refere ao autor na tradição literária e é posto
por Motta como uma narração institucional do meio de
comunicação, é a linha editorial do veículo, em que são
defindios os limites e as prioridades. Também pode ser chamado
de enquadramento.
|
O
segundo narrador é o mediador entre o veículo e o público, é
o narrador-imaginador das narrativa ficcionais e corresponde aos
editores e jornalistas, aos produtores do texto.
|
E,
finalmente, o narrador-personagem são as fontes, os
entrevistados, os agentes responsáveis pelas informações
primárias.
|
Produção
|
Direção
|
Interação
|
O
público só vê os narradores-personagens, mas quem seleciona e
prioriza os temas é a instituição narradora e quem imagina os
temas como narrativas são os editores/redatores. Os personagens são
organizados e qualificados dentro das narrações anteriores.
Hoje,
no entanto, em virtude da presentificação das narrativas
audiovisuais, os narradores-personagens estão ganhando autonomia em
relação aos outros níveis de narração.
A
Narrativa Mediada
Nos dias atuais, a
grande maioria das estórias que nos contaram e que nós contamos são
midiatizadas, são transmitidas, distribuídas e recebidas através
de meios de comunicação eletrônicos – combinando as linguagens
oral, escrita e audiovisual. Houve um tempo em que as narrativas
eram apenas orais; houve um tempo em que elas foram predominantemente
escritas; e, hoje, combinando a oralidade e o texto, as narrativas
são audiovisuais.
TABELA
1
– Narrativas segundo o suporte
LINGUAGEM
|
ELEMENTO
CHAVE
|
ÊNFASE
|
DOMINÍO
|
Narrativas orais
|
Aqui e agora
|
Mensagem
|
Identidade local
|
Narrativas
escritas
|
Metalinguagem
|
Transmissor
|
Sujeito
universal
|
Narrativas
audiovisuais
|
Fabulação
|
Receptor
|
Globalização
|
As
narrativas audiovisuais atuais são ainda: a) interculturais
(mesclando o local e o universal); b) seriadas (fragmentadas em
episódios durante longo períodos de tempo); c) virtuais (acontecem
simultaneamente em vários locais ao mesmo tempo para um público
não-presencial); e d) interativas/segmentadas (com a internet, o
público deixou de ser passivo e passou a interferir de vários modos
na construção da narrativa, orientando o narrador e os
personagens). Na
verdade, há uma reunificação dos contextos dos interlocutores,
dissociados no tempo/esáço pelas narrativas escritas.
Antes
da escrita, toda comunicação era presencial entre interlocutores
partilham de um mesmo contexto, sediada no corpo, principalmente na
fala. Chama-se isso de 'mídia primária' (PROSS, 1997).
As narrativas eram orais e o corpo era a memória principal. Com a
escrita e a história, os contextos de transmissão e de recepção
se dissociam. A 'mídia secundária' é formada por suportes extra
corporais que fixam as narrativas no tempo espaço. Há um único
contexto de transmissão para muitos de recepção. E ‘mídia
terciária’ ou elétrica implica na existência de suportes
tecnológicos nos dois polos da comunicação. Há muitos contextos
de transmissão e muitos contextos de recepção. A noção de ‘mídia
terciária’ engloba tanto os meios de comunicação tradicionais
como também a internet; a ‘mídia secundária’ corresponde à
linguagem; e a ‘mídia primária’ insere o corpo como suporte.
As
narrativas orais enfatizam a própria narrativa e definem identidades
simbólicas locais. As narrativas modernas são ‘históricas’,
centradas no narrador e na metalinguagem, se destinando a um receptor
passivo e no sujeito universal. E, nas narrativas audiovisuais, a
ênfase está na narratividade do receptor,
a fabulação.
Em
outros textos (GOMES, 2022a), comparou-se o efeito conjunto dessas
três mídias ao mito das moiras e a noção de uma máquina mimética
de três
operações sistêmicas: memória do passado, auto observação
descritiva do presente e simulação de possibilidades futuras. Essas
três operações formam o mecanismo de autopoesis, de criatividade
sistêmica. As moiras seriam uma representação desta máquina
cognitiva, antagonista do homem. Porém,
essa narrativa do protagonista contra as estruturas narrativas do
tempo implodiu diante de novos valores e de um novo tipo de
protagonismo/antagonismo. Nos últimos anos, o protagonismo tornou-se
feminino e a sociedade patriarcal tornou-se a antagonista de grande
parte das narrativas. Hoje percebe-se que não
é suficiente que as mulheres se tornem protagonistas das próprias
vidas, elas têm também que contar as próprias histórias.
O
aspecto feminino não aceita mais seu antigo papel (de par romântico
e refém do vilão) e torna-se também protagonista/narradora de sua
identidade e de suas narrativas. A jornada da heroína cria um
roteiro de desenvolvimento interior (inclusive e principalmente para
os protagonistas masculinos). Maureen Murdock (MARTINEZ, 2008, 139)
era uma psicóloga que trabalhava com empoderamento de mulheres em
situação de vulnerabilidade e através do processo de crescimento
de seus pacientes elaborou a Jornada da Heroína. E o novo roteiro
está gerando um tsunami de narrativas de protagonismo feminino, bem
como trabalhos acadêmicos a respeito.
Conclusão
Revisamos as
principais contribuições teóricas e metodológicas, que
cumulativamente formaram os Estudos Narrativos: Propp, Campbell,
Levi-strauss, Greimas, Barthes, Eco, Ricoeur e Motta. Ressaltamos
algumas metodologias de análise de narrativas. Definimos a narrativa
audiovisual em relação às narrativas orais e escritas, observando
suas principais caraterísticas, inclusive o aparecimento do atual
fenômeno do protagonismo feminino.
Transmutações
da Jornada Heroia - O épico, o tragicômico e o feminino
(2022b) descreve o conceito original da Jornada do Herói, de Joseph
Campbell, demostrando o impacto da narrativa cristã sobre o modelo e
seus principais desdobramentos narrativos: as histórias de Hamlet,
de A Divina Comédia de Dante e de Don Quixote de La Mancha, de
Miguel de Cervantes. Ao final, há uma transformação radical na
armadura narrativa da Jornada, que passa a ser feminina, tanto em seu
protagonismo como nos valores embutidos em suas narrativas .
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