domingo, 28 de novembro de 2021

AS METAMORFOSES DO ESPÍRITO

 


O ponto alto do livro Assim falou Zaratrusta (NIETZSCHE, 2009, p.51) é a metáfora dos três tipos de liberdade: a do Camelo, a do Leão e a da Criança.

A liberdade do Camelo é a autonomia de servir, de ser útil, o júbilo de fazer parte do conjunto ou de algo maior que si.

A liberdade do Leão é a capacidade da realização da vontade de potência, do poder o que se quer se fazer sem ajuda ou colaboração.

E a liberdade da “criança brincando sério com seu tambor” é a independência da criatividade de valores. O camelo aceita o mundo como ele é. O Leão deseja transformá-lo. A Criança aceita o mundo mas não se conforma com ele ...

[…] ela não está ligada nem à conservação, como o camelo, nem à destruição, como o leão. O artista criança, o lúdico-criador, é pura afirmação, pura atividade [...]. Ele independe do passado e do futuro, habita plenamente o presente, onde brinca gerando interpretações singulares (BARRENECHEA, M. A. 2008, p. 93).

Para Joseph Campbell, no livro/entrevista O Poder do Mito (1990), capítulo Sacrifício e Felicidade, as três metamorfoses correspondem as fases da vida (e também à Jornada do Herói). O Camelo é a infância e o chamado ao heroísmo. O Leão é a adolescência, a rebeldia, o 'dizer não' à injustiça moral e social. E por fim, a maturidade é a criança interior, criadora de seu próprio sentido e de sua própria dinâmica.

Osho (2006) faz uma interpretação mais profunda, em que o Camelo não é tão submisso, nem o Leão é tão revoltado, e que adota os níveis hermenêuticos de objetividade, subjetividade e intersubjetividade para definir melhor os tipos de liberdade.

  • O Camelo representa a ‘liberdade para’ fazermos algo. Em que lutamos contra as regras e contra a autoridade. É a liberdade política e objetiva, isto é: a ‘liberdade do não’ da autonomia de decidir o que ser e fazer e não o que os outros querem. Mas, de nada adianta a ‘liberdade para’ (cantar, por exemplo) senão temos a ‘liberdade de’ (a alegria de cantar).

  • O leão, por sua vez, é a ‘liberdade de’ fazer o que quiser. Agora, a luta pela liberdade é contra o próprio condicionamento, é o aperfeiçoamento interior para se conseguir usufruir da liberdade exterior. É a liberdade psicológica e subjetiva, a ‘liberdade do sim’ da aceitação da vida.

  • E a criança nietzschiana representa, para o guro indiano, a liberdade intransitiva. Aqui a luta pela liberdade consiste em libertar os outros através do exercício criativo da própria liberdade (quando, cantando, mudamos sentimentos e situações). É a liberdade intersubjetiva da criatividade.

Reparem que, enquanto Campbell dá uma ênfase heroica e biográfica às três metamorfoses, Osho ressalta a triade como diferentes perspectivas possíveis da liberdade de cada a cada momento. Em alguns aspectos, as duas interpretações são complementares; em outros, são contraditórias, o Leão como um 'sim para vida' e um 'não para as regras'.

Outras interpretações poéticas e filosóficas são interessantes e acrescentam mais sentidos ao tema, como a música do raper Gábe ou ainda a crítica de Clarissa Zelada - que compara as três metáforas nietzschianas aos heterônimos de Fernando Pessoa: Ricardo Reis (camelo); Álvaro de Campos (leão), Alberto Caeiro; (criança).

Eu, observando essas referências, gostaria de vislumbrar uma pedagogia para liberdade, uma forma de educar que leve em conta os desafios das três metamorfoses. Para tanto, é preciso pensar cada elemento dentro de seu contexto grupal e depois elaborar um desafio, um ritual de passagem representando as três metamorfoses.

Mas, para não me referenciar apenas nas diferentes interpretações dos elementos simbólicos, procurei uma fundamentação mais lógica nos conceitos de solidariedade mecânica e orgânica de Durkhein (1978), na noção de inteligência coletiva de Pierre Levy (2000) e na teoria integral dos três níveis da Psicologia do Desenvolvimento (modelo Eu/Outro), definidos por Ken Wilber (2007): pré-convencional (ou egocêntrico), o convencional (ou altercêntrico) e o pós-convencional (ou holoscêntrico).

Imagine-se, por exemplo, em um jogo de futebol em que todos os jogadores de cada time atacam e defendem em bando sem nenhuma preocupação tática com as posições. Temos aqui uma situação de anomia ou caos. Mas, alguns padrões de cooperação parcial surgem, aos poucos. Para Durkheim, nas sociedades primitivas a consciência coletiva predominava sobre a individual e a solidariedade entre seus integrantes é mecânica.

E nesse contexto pré-convencional - em que os indivíduos disputam e colaboram sem regras - os mais fortes, os mais rápidos, os mais espertos prevalecem em detrimentos dos mais fracos, lentos e distraídos. O heroismo do Camelo é baseada na força, na sua capacidade de ser altruísta em um universo egocêntrico.

No entanto, se o esquema tático do time tolher as habilidades pessoais, com cada jogador preso a uma posição e com jogadas sempre previsíveis baseadas no desempenho físico, estaríamos em uma situação de solidariedade orgânica - aquela em que as duas formas de consciência – a individual e a coletiva – se mantiverem equilibradas, ou seja, que cada jogador dessa partida imaginária tiver uma visão de conjunto e alguma liberdade tática de movimento. O universo convencional é baseado em regras iguais para todos, com exceções para garantir a equidade: “primeiro os mais velhos, as crianças, as mulheres, etc”. E o heroismo do Leão é a de quebrar as regras, em ser egoista em um universo altercêntrico.

TABELA DE EQUIVALÊNCIA DOS CONCEITOS DE DURKHEIN, NIETZSCHE E WILBER

SOCIABILIDADE

ORGANIZAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

NIETZSCHE

KEN WILBER

Anomia

Consciência Coletiva < Consciência Individual

CAOS SOCIAL

Solidariedade Mecânica

Consciência Coletiva > Consciência Individual

CAMELO

Pré-convencional ou Egocêntrico

Solidariedade Orgânica

Consciência Coletiva = Consciência Individual

LEÃO

Convencional ou Altercêntrico

Inteligência Coletiva

Consciência Coletiva + Consciência Individual

CRIANÇA

Pós-convencional ou Holoscêntrico

Elaborado pelo autor

A noção de Levy (2000) de Inteligência Coletiva representa um nível de organização mais aperfeiçoado do que a solidariedade orgânica durkheimiana porque ao invés de um equilíbrio entre formas concorrentes de consciência racional entre o todo e as partes, ela representa sua interação em uma única consciência que, além de ser coletiva e individual simultaneamente, é também espontânea e intuitiva.

Em relação ao nosso jogo de futebol, é quando o futebol deixa de ser técnico (individual) e tático (coletivo), para ser artístico; quando sem nenhum planejamento anterior, armam-se tabelas de passes imprevisíveis e as jogadas acontecem como “se fossem por mágica”. Essa sinergia descentralizada e sincrônica é a inteligência coletiva.

E, nesse contexto pós-convencional, surge o protagonismo lúdico da criança.

A perspectiva de Ken Wilber é ainda mais evolucionista. Para ela, a humanidade está em estágio de desenvolvimento convencional (a democracia representativa) e caminha, através do desenvolvimento dos meios de comunicação, para um novo regime de cognição coletiva.

O brincar é uma atividade fundamental presente em todas as culturas. Walter Benjamin e Donald Winnicott pensam o lúdico como a base cognitiva do aprendizado. Outros como o historiador holandês Johan Huizinga acreditam no Homo Ludens, em um futuro em que o brincar retornará a centralidade, secundarizando as relações de força que herdou do Homo Faber e as relações de conhecimento do Homo Sapiens. Flusser (1998) caracteriza o ‘modo de ser brasileiro’ como um protótipo do homo ludens, um novo homem consciente de que joga com e contra outros; e de que outros jogam com e contra ele. A miscigenação nos fez ‘lúdicos’, um exemplo para outros povos.

Assim, a criança interior é o superhomem. O ser humano só conquista sua humanidade, quando abandona as animalidades do Camelo e do Leão – através de desafios de força e de equidade. Ainda estamos a caminho da utopia tecno-lúdica, origem e destino da jornada do espírito em metamorfose. Educar para liberdade é formar protagonistas lúdicos.

Referências

BARRENECHEA, Miguel Angel de. Nietzsche e a liberdade. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2008.

CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. Editora Palas Athena, São Paulo, 1990.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. Coleção Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

FLUSSER, Vilem. Fenomenologia do brasileiro: em busca de um novo homem. Rio de Janeiro: UERJ, 1998. Disponível: http://www.iphi.org.br/sites/filosofia_brasil/vilem_flusser_-_fenomenologia_do_brasileiro.pdf Último acesso em 17/4/2019.

LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. SP: Loyola, 2000.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. 3ª Edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

OSHO. Liberdade – a coragem de ser você mesmo. Tradução Denise de C. Rocha Delela. Dicas para uma nova maneira de viver. São Paulo: Cultrix, 2006.

WILBER, Ken. Espiritualidade Integral – uma nova função para religião neste inicio de milênio. Tradução Cássia Nassser. São Paulo: Alef, 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário