Há mais Multiversos entre o Céu e a Terra do que supõe
nossa vã Semiótica das Interações
Resumo: O
presente estudo investiga as ideias de Multiverso e de Gameficação Narrativa na
série de TV The Good Place, em suas
três temporadas (2016-2018). Com o
objetivo de analisar como o seriado vê a influência do grupo sobre o caráter do
indivíduo de modo sistêmico, recorre-se aqui à teoria sócio semiótica dos
quatro regimes de interação (LANDOWSKI, 2014).
Palavras-chave: Comunicação midiática1; Estudos narrativos audiovisuais2;
Filosofia moral3;
1.
Introdução
O bem e mal são interações coletivas grupais e
não qualidades individuais da natureza humana. Assim, todo mundo é bom e/ou mal
dependendo do contexto e de suas companhias. Essa é uma das premissas do
seriado The Good Place ,
em que quatro protagonistas morrem e vão para o inferno (the bad place) holograficamente
construído como se fosse um paraíso (the good place).
Ao final da primeira temporada, os
protagonistas percebem que não estão no paraíso e porque se encontram naquela
situação. No processo, com vários flashbacks da vida antes da morte dos quatro
protagonistas, fazem uma revisão dos conceitos do bem e mal na filosofia moral (Kant,
Hume, Aristóteles) - em conjunto com o demônio, Michael, em uma dupla menção, ao Arcanjo Solar do Juízo Final e ao
produtor executivo da série Michael Shur, que convidou especialmente o ator Ted
Danson para o papel por se identificar com ele.
Os quatro protagonistas não são nem boas
pessoas nem assassinos violentos, mas pessoas normais, com falhas de caráter
comuns. Eleanor Shellstrop (Kristen
Bell), uma vendedora desonesta do Arizona que entrou em no paraíso aparentemente confundida como uma advogada de direitos humanos com o mesmo nome
que morreu no mesmo dia e local. Chidi Anagonye (William Jackson Harper), um africano, professor de ética, chato, indeciso e sem
sentimentos com os outros. Tahani Al-Jamil (Jameela Jamil), uma filantropa rica,
fútil, invejosa e falsa. Jianyu Li (Manny Jacinto), um monge budista
silencioso de Taiwan, que mais tarde revela-se realmente como Jason Mendoza, DJ e pequeno traficante de drogas da Flórida.
Outra personagem
importantíssima é Janet (D'Arcy Carden), uma forma de inteligência artificial
que se confunde com o próprio sistema holográfico The Good Place. Embora seja programada, tem autonomia relativa para
fazer escolhas pessoais e várias vezes produz resultados inusitados. Janet é
morta várias vezes durante a segunda temporada, isto é, o sistema é
reinicializado, apagando a memórias dos quatro protagonistas. Eles voltam ao
começo da narrativa, quando descobrem que morreram e são informados que estão no
Good Place, embora intimamente saibam
que não merecem e que algo está errado. E a cada morte de Janet, e cada
repetição da narrativa, em algum momento os protagonistas percebem que não
estão no Good Place.
E essa
descoberta de que se está no inferno, reinicializa novamente o sistema,
aperfeiçoando todos os seus agentes (inclusive a própria Janet) em uma história
cada vez mais complexa. Em uma das primeiras versões do universo, Janet e Jason
se apaixonam e se casam. Muitas versões após, embora ninguém se lembrasse
desses acontecimentos, eles passaram a interferir no desenvolvimento do
sistema-narrativa atual.
O enredo da série é
um quebra-cabeça lógico contínuo com reviravoltas que têm que funcionar em
várias dimensões diferentes, centralizado por uma questão simples e
infinitamente complexa: o que significa ser uma boa pessoa.
2.
Gameficação narrativa e multiverso
12:01 (1990), de Hillary Ripp e Jonathan
Heap, é um curta metragem feito para televisão, que mostra um dia que se repete
da mesma forma menos para o protagonista em um 'laço no tempo' (ou time loop),
uma situação em que o tempo corre normalmente durante um determinado período
(um dia ou algumas horas), mas em certo ponto o tempo "pula" para
trás, de volta ao ponto inicial, como um disco de vinil riscado, repetindo o
exato período em questão.
Porém, foi o filme Feitiço do Tempo (Groundhog Day, 1993)
dirigido por Harold Ramis, que popularizou a narrativa de recorrência temporal.
O filme foi um grande sucesso de público e de crítica, ganhando vários prêmios
importantes e gerando filmes similares, inúmeras adaptações em episódios de
seriados de TV e até vários jogos eletrônicos (The Legend of Zelda: Majora's Mask; Dragon Quest
VII; Prince of Persia: The Sands of Time; Final Fantasy; entre outros) foram elaborados dentro do paradigma narrativo do 'laço recorrente de
tempo'. A expressão "Groundhog Day"
(dia da marmota) tornou-se gíria em inglês, significando uma situação
desagradável que se repete continuamente nas narrativas reais da mídia.
É a ‘Gameficação das Narrativas’ – fenômeno que hoje atinge não apenas
todas as mídias, mas também a educação, a chamada ‘Gameficação do Aprendizado’.
Aliás, The Good Place é uma narrativa
seriada ‘tradicional’ (no sentido de não ser interativa) sobre a Gameficação da
Vida. O seriado simula um videogame em que os participantes jogam para não ir
para o inferno, mas já estão nele. As múltiplas reinicialização do sistema, a
restauração dos karmas individuais, a repetição das situações são metáforas em
uma narrativa linear.
Além desta noção de ‘narrativa cumulativa de loop’, de laço de
recorrência temporal dentro do tempo contínuo, outro conceito fundamental para
entender a seriado The Good Place é o
de ‘Multiverso’ .
A noção de Multiverso (múltiplos universos entrelaçados sem um lado
exterior) já existia na literatura há muito tempo antes da física quântica,
justamente para falar da vida após a morte como uma dimensão da realidade. O
livro dos mortos tibetano e várias narrativas de descidas aos infernos pelos
heróis de diferentes culturas. No ocidente, o mito de Er de Platão, na
República conta uma experiência de quase-morte, que pode ser interpretada de
modo mutiversal, isto é, de que diferentes realidades coexistem em um universo-multiplo-complexo.
E essas
duas ‘categorias descritivas’ – a Gameficação e o Multiverso – nos permitem
interpretar o seriado The Good Place
em uma ótica singular, diferente das opiniões predominantes entre os críticos e
ao público em geral .
3.
Metodologia
Com o
objetivo de compreender como o seriado vê a influência do grupo sobre o caráter
do indivíduo de modo sistêmico, recorre-se aqui à teoria sócio semiótica.
Landowski (2014) sugere a distinção de quatro regimes de interações: a) a
programação ou operação (a interação sempre constante e contínua, um algoritmo
objetivo); b) a manipulação ou estratégia (a interação inconstante e contínua
em que a intencionalidade se superpõe ao causal, o efeito do narrado sobre o
vivido, por exemplo); c) a interação de ajuste (constante e descontínua); e o
fator imprevisível das interações (o aspecto inconstante e descontínuo). Cada
regime corresponde a uma lógica semiótica distinta. A programação corresponde à
regularidade. A manipulação é regida pela intencionalidade. O ajustamento
funciona por sensibilidade. E o acidente corresponde à aleatoriedade.
A
programação é o primeiro regime de interação. A vida pode ser vista como uma
programação de eventos irreversíveis: o sol no transcorrer do dia, as estações
durante o ano, o envelhecimento dos seres orgânicos. O tempo é constante e
contínuo; e essa regularidade forma a dimensão objetiva da existência.
Há duas
formas ideias de programação (que na prática, no entanto, são sempre
indissociáveis): a regularidade causal ou algorítmica (o “automatismo anônimo”)
e a regularidade sociocultural, isto é, uma programação em que as estratégias
de manipulação foram assimiladas e naturalizadas como fazendo parte do
programa.
Landowski
admite que esses dois regimes de interação não existem de forma independente,
que estão sempre intricados um no outro, mas os distingue metodologicamente
como modos de interpretar, como a combinação de um modelo estrutural
determinista como uma abordagem fenomenológica da intencionalidade. Essa
duplicidade teórica produz conceitos gêmeos: há duas regularidades, dois tipos
de motivação, dois tipos de sensibilidade e até dois tipos acaso.
Tabela1 - Tipologia ideal das interações de Landowski
|
ESTRUTURA
|
FENÔMENO
|
REGULARIDADE
|
Causal ou Algoritmia
(Tempo contínuo)
|
Reprodução sócio cultural
(Tempo narrativo)
|
MOTIVAÇÃO
|
Aprender a aprender
Competência modal compreensiva
|
Autoprogramação
Competência modal criativa
|
SENSIBILIDADE
|
Homem x Máquina
Reativa
|
Homem x homem
Empatia
|
ACASO
|
Acidente programado
O aleatório ou sorte/azar
|
Acidente motivado
O ruído ou risco
|
Fonte: elaborado pelo autor
Então,
esses oito tipos ideais (a regularidade causal, a reprodução cultural, a
competência sintática, a criatividade, a interação com as máquinas, a
interatividade com as pessoas, a capacidade de corrigir os próprios erros e de
viver a própria vida como uma aventura) podem ser aplicados para compreender a
narrativa de The Good Place?
A
regularidade causal, em nosso caso, é o planejamento de Michael para que os
protagonistas torturem uns aos outros, uma vez que os colocou em pares de almas
gêmeas, formado, na verdade, por pessoas claramente incompatíveis. Além disso,
os quatro pensam que estão no céu por engano e fingem desesperadamente que são
boas pessoas, torturando incessantemente a si próprias, para não irem para o
Bad Place. A regularidade causal induz a culpa permanente e à falsidade
crônica.
A
regularidade intencional corresponde à ação da consciência dos protagonistas e
à supervisão de Michael - principalmente. Há várias camadas de intencionalidade
que incidem de modo desigual e combinado sobre o curso dos acontecimentos narrados
(os outros demônios, os juízes, as janet’s) mas que são secundários. O que realmente conta é como os quatro
personagens interagem entre si (se eles se torturam ou se ajudam)
e como a posição de Michael e Janet se modifica em função das mudanças de
comportamento provocadas pelos protagonistas. "O que nós devemos uns aos outros" de Thomas M. Scanlon é um livro citado
diversas vezes durante a série e serve como uma inspiração geral da proposta do
seriado.
Os dois
tipos de motivação são competências distintas: ‘Ser Bom’ para não ir
para o inferno e ‘Ser Bom’ por simplesmente ser bom. Os dois tipos de motivação
são frequentemente confrontados. Na primeira temporada, a bondade interesseira
faz parte da hipocrisia geral de um local do inferno que se disfarça de
paraíso. Na segunda temporada a bondade interesseira é colocada como um treinamento
para a bondade desinteressada. Curiosamente, o seriado discute apenas sobre o
que é ser bom e não sobre ser mal. E, na terceira temporada, o altruísmo passa
a ser valorizado como elemento essencial da bondade verdadeira. É preciso ser
‘bom por natureza’, sem esperar recompensa nem temer castigos.
Os dois
tipos de sensibilidade também são polarizados por Landowski e podem ser
observados e aferidos de vários modos no seriado The Good Place. Uma é a capacidade de interação com as máquinas (e
também analogicamente com outros objetos sociais abstratos); a outra, é a
interatividade entre as pessoas. Para identificar e analisar essa duas
sensibilidade, a personagem Janet é um foco precioso. Sendo um sistema de
informação programada para atender equivocadamente a todos os desejos dos
condenados a danação eterna, Janet se casa com Jason, alguém certamente sem
nenhuma sensibilidade pessoal, em uma de suas atualizações. O evento
desconstrói por completo a política de almas gêmeas de Michael e tem
consequências sobre a sensibilidade de todos os outros personagens, tanto entre
si (eles descobrem que a alma gêmea era um mentira) como com seus desejos e
pedidos ao sistema. Isto é particularmente trabalho para personagem Tahani, ‘alma
gêmea’ de Jason.
Aliás, os
casais de ‘almas gêmeas’ combinam sensibilidades opostas de propósito. Enquanto
Jason é malandro e esperto; Tahani acredita ser uma boa pessoa e realmente
estar no paraíso. Chili tem uma sensibilidade intelectual voltada para o mundo
das ideias; Eleonor é prática e instintiva, tem ‘paresia’ (vontade de verdade).
Os pares foram concebidos com sensibilidades contrárias para não dar certo.
E,
finalmente, há, na teoria sócio semiótica, dois tipos de acidente: o acaso programado decorrente das falhas na
programação, que, se estudado estatisticamente pode ser explicado, corrigido e
assimilado pelas interações regulares; e o acaso
motivado reside na crença de que existe um destino (e que “não existem
coincidências”), as adversidades inesperadas existem para nos ensinar. Enquanto
o primeiro é objetivo e procura descobrir fatores desconhecidos no
imprevisível; o segundo é subjetivo, extraindo ensinamentos de suas
adversidades. No primeiro, há o risco objetivo de morte e das perdas (ou de fim
da regularidade); e, no segundo, há o risco de não ser amado e de não ser
manipulado (de expulso do Good Place).
A morte é a
grande descontinuidade constante, que gera não apenas a regularidade da vida,
mas também mudanças qualitativas na natureza. Desafiamos riscos para nos
tornarmos pessoas melhores e não para fugir da Bad Place. E sem a ameaça da
morte, ninguém sai da zona de conforto. No episódio Crise Existencial (S2E4), Michael, um ser imortal, compreende pela
primeira vez o significado que a mortalidade tem para os humanos e surta (ideia
desenvolvida a partir do livro Morte,de Todd May, outra inspiração da série).
A partir desse ponto, Michael passa para o lado dos protagonistas e de
sua capacidade de se tornarem pessoas melhores em grupo. Assim, a série discute o que é ser uma pessoa melhor coletivamente diante da "indiferença silenciosa de nosso universo vazio", mas não diz nada sobre como não se tornar uma pessoa pior (destrutiva e autodestrutiva) e, pensando bem, essa é que é (ou que deveria ser) a verdadeira questão da Ética e da filosofia moral. O trabalho da moralidade é uma atividade de resistência ao mal, ao contágio emocional da destrutividade (e não da morte).
4.
Conclusão
O seriado The
Good Place é uma comédia tipo sitcom ‘sobre filosofia’, mas não exatamente do
mesmo modo que The Big Bang Teory é
‘sobre ciência’. Seriados de humor não são seminários de pós-graduação, a
filosofia e a ciência são superficiais e utilizadas como pano de fundo para
piadas. The Good Place, no entanto, vai um pouco mais além pois as ideias
filosóficas sobre o bem e o mal realmente determinam e moldam o enredo.
E quais são essas ideias filosóficas?
Primeira ideia:
The Good Place is here; o inferno disfarçado de céu é o mundo em que vivemos. E
se o mundo foi concebido para nos torturar e nos fazer sofrer, e não somos responsáveis
por isso, por que então ser bons? Mesmo que nascêssemos bons por natureza,
seríamos corrompidos pela maldade desta sociedade sádica e suas maquinações
depreciativas.
Segunda ideia: Somos seres imperfeitos em um mundo perfeito
(situação da qual a primeira temporada faz parodia) ou somos seres perfeitos por natureza que a imperfeição social corrompeu? E se a vida fosse, eticamente falando,
uma videogame; se cada ação tivesse um valor pontual, positivo ou
negativo; e o objetivo da vida fosse acumular a pontuação mais alta? Será justo julgar homens de diferentes etnias e
credos por leis e regras universais? Essa é a polêmica entre o idealismo ético de JohnRawls e o realismo cultural de John Stuart Mills. Há também o problema do bonde , apresentado
formalmente na segunda temporada e universalizado no final da terceira
temporada .
O melhor, no entanto, são as perguntas que podemos formular de fora: vivemos
a experiência subjetiva do laço temporal recorrente, em que os dias se repetem
iguais como nos filmes 12:01 e Groundhog Day? Ou ainda: é possível tirar vantagem desta
repetição para se aperfeiçoar seja no sentido moral ou simplesmente de
antecipar os acontecimentos e escolher as melhores possibilidades?
Certamente, The Good Place nos coloca
para pensar.
Referências bibliográficas
LANDOWSKI, Eric. Interações
Arriscadas. Tradução de Luiza Helena Oliveira da Silva. – São Paulo:
Estação das Letras e Cores: Centro de Pesquisa Sociossemióticas, 2014.