sábado, 10 de fevereiro de 2018

Erving Goffman

PUXANDO A BRASA PARA PRÓPRIA SARDINHA
Entre o internacionalismo simbólico e a sociologia compreensiva

RESENHA: NIZET, Jean; RIGAUX, Natalie. A Sociologia de Erving Goffman. Tradução Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis, Vozes, 2016. (Coleção Sociologia: pontos de referência)
Marcelo Bolshaw Gomes[1]

A interação teatral
Erving Goffman é um analista das interações, do que acontece quando duas ou mais pessoas se encontram face a face. ‘Inter-ação’ é uma relação mútua e recíproca entre o Eu e o Outro (dentro de mim). Respeitar o outro assim como a si mesmo, implica em amor próprio e consideração, em porte e deferência. Há também uma audiência, um público, os olhares que apenas observam a ação dentro do jogo das interações. E, havendo público, há também o palco e os bastidores; o espaço de exposição e os locais de recolhimento.
O palco é composto por quatro elementos: a) expressões explícitas (comunicação verbal), b) expressões indiretas (gestos, faces, posturas corporais), c) objetos (figurino, acessórios) e d) cenário (representando os contextos). Há dois níveis de representação da interação. O primeiro é o imediato: um professor e seus alunos – por exemplo. No segundo nível, representa-se o conjunto dos professores diante da juventude. O segundo nível de representação é a própria realidade social que simbolizada no interior da interação. Por exemplo: em uma conferência intitulada ‘A conferência’, na Universidade de Michigan em 1976[2], Goffman analisa as interações da situação, e que, no final das contas, o conferencista e público produzem uma realidade externa sobre a qual tecem considerações (NIZET, 2016, 61).
Outra distinção chave é entre o palco (a visibilidade púbica) e os bastidores (muitas vezes comparado ao inconsciente). A dicotomia é vista de forma semelhante ao par figura/fundo da teoria da imagem da Gestalt. O fundo é tudo o que está fora de foco. A figura é o foco da percepção.
A análise de Goffman contempla várias nuances: o controle das impressões (do público pelos atores) substituindo a realidade; a nota falsa (quando há uma ruptura na representação entre os atores e/ou o público ou na representação entre o que a figura diz e o que fundo mostra); e as trocas reparadoras, necessárias para corrigir as rupturas representacionais. Além das noções de ator, cenário, papeis; Goffman analisa as interações através de noções e conceitos singulares. Por exemplo, a noção de equipe (ator coletivo que conduz uma representação) é quando um conjunto de pessoas estabelecem uma cumplicidade, escondendo elementos negativos ou desnecessários do público. Toda equipe é uma “sociedade secreta”, em que a imagem de unidade esconde divergências e atritos. Ou ainda, a noção de envolvimento, a atenção afetiva em relação à interação e aos seus elementos. Há o envolvimento na conversação, o envolvimento nas ocasiões sociais, o envolvimento nas ocasiões públicas não focalizadas.
O Estigma é um conceito diferencial nas interações sociais, uma marca simbólica que desqualifica a identidade de seu portador nas relações imediatas. Ser negro ou mestiço, deficiente físico ou mental, mulher, homossexual, estrangeiro, obeso, doente e divorciado são os estigmas mais recorrentes. O estigmas afetam principalmente a área chamada de ‘fachada pessoal do indivíduo’ e tem como efeito principal ‘desacreditar’ seus portadores. Goffman estuda as estratégias dos estigmatizados, seja se adaptando individualmente, seja formando comunidades, com outros que partilham do mesmo estigma, buscando a aceitação social do seu grupo, mas, na verdade, reafirmando a diferença que tentam reduzir.
Outro conceito marcante é o de ‘instituições totais’ – desenvolvido no livro Manicômios, prisões e conventos:
[...} “um lugar de residência e de trabalho, onde um grande número de indivíduos, colocados em uma mesma situação, afastados do mundo exterior por um período relativamente longo, levam conjuntamente uma vida reclusa, cujas modalidades são explícita e rigorosamente regradas” (GOFFMAN, APUD NIEZET, 2016, 75).
Infelizmente, Nizet não compreende a afirmação de Goffman de que “a loucura é a incapacidade de se orientar pelas regras sociais” (que interpreta como sociologismo), como também do papel das instituições totais na modernidade – pontos que aproximam o americano ao pensamento de Michel Foucault, em relação à Sociedade Disciplinar e ao confinamento como um adestramento ao cotidiano e às rotinas da vida industrial.
A interação ritual
Segundo os especialistas (BRANAMAN, 1997 APUD NIZET, 2016, pág. 12), embora Goffman tome as interações sociais como objeto de análise em todos seus livros, elas são abordadas de diferentes pontos de vistas, através de metáforas.  E cada livro não faz referência aos outros, “como se a cada vez a pesquisa recomeçasse a partir do nada”. Assim, há trabalhos (referenciado no teatro e nos jogos) que se aproximam mais do ‘Individualismo metodológico’ do interacionismo simbólico, isto é do idealismo que crê que os agentes cria sua realidade; enquanto os trabalhos da metáfora ritual são mais próximos de Durkheim e das regras sociais, em que as pessoas não têm autonomia diante dos mecanismos sociais abstratos.
Ao longo do seu percurso intelectual, Goffman utilizou os termos ‘fachada’, ‘face’ e ‘imagem’ para caracterizar a experiência de palco. O ‘face work’ ou a ‘figuração’ significa perseverar a própria face e face do outro, a dupla representação da interação é chamada tanto pelo par ‘amor próprio/consideração’, como também pela oposição entre ‘porte’ e ‘deferência’, nas obras mais recentes.
Tabela da produção de Erving Goffman

LIVROS/ANO
METÁFORA TEATRAL
METÁFORA RITUAL
Ritual de interação – Ensaios sobre o comportamento face a face (1967)
Relações em público: micro estudos sobre a ordem pública (1971)
METÁFORA LÚDICA
Encounters (1961)
Strategic interations (1969)
METÁFORA AUDIOVISUAL
Os quadros da experiência (1974)
Forms of talk (1981)
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Nizet, 2016.
Ao chamar as interação sociais de representações teatrais Goffman está fazendo uso de uma metáfora? Prefiro pensa-las como ‘categorias descritivas’. Considerá-las como metáforas ou analogias poéticas significa esvaziá-las de seu poder cognitivo. E Goffman descreve as interações a partir da própria experiência e não através de um observador externo como faz a sociologia objetivista, associando as interações às regras estruturais. Nizet considera os livros ‘da metáfora ritual’ mais próximos da sociologia holística da tradição de Durkheim. Há inclusive uma demonstração de que Goffman não se considerava parte do interacionalismo simbólico e de que os membros do movimento também não o consideravam como interacionista (NIZET, 2006, 103).
Nizet utiliza essa dupla rejeição como argumento para aproximar Goffman de Durkheim, mas, a verdade é que a análise goffimaniana das interações está mais próxima da sociologia compreensiva de Max Weber do que do objetivismo sociológico das regras estruturais. E, a despeito do que todos dizem, a afinidade teórica entre a escola de Chicago e Goffman é inegável. Talvez o mais adequado seja dizer que ele é a expressão mais sofisticada do interacionalismo simbólico – justamente por ter um horizonte mais abrangente das relações sociais, e dos constrangimentos estruturais impostos aos atores que produzem a realidade social.
Nizet tem razão quando considera que houve um avanço qualitativo entre os livros mais teatrais para os que entendem as interações como rituais. Porém, ele tem uma visão superficial da mudança (uma troca de metáforas) e simplesmente não entende a evolução do pensamento de Goffman os trabalhos posteriores sobre teoria dos jogos[3] e sobre a noção de enquadramento.
A interação audiovisual
O livro Os quadros da experiência social, o último de Goffman, tem características bem peculiares em relação aos seus trabalhos anteriores. Não é uma coletânea de artigos e sim um livro contínuo e extenso, em que o autor assimila os elementos dos trabalhos anteriores, de modo diferente. Ao invés de analisar situações reais e fictícias, Goffman utiliza-se recortes de jornais, peça de publicidade e de outros fragmentos da mídia para fazer suas análises.
O próprio conceito de ‘enquadramento’ (framing temporal, no gerúndio; e não de um ‘quadro’ instantâneo e estático) é tomado de um teórico da comunicação Gregory Bateson, que o utiliza neste contexto de análise específico de como a mídia constrói a realidade social. Ele nos remete a um recorte temporal, em que uma forma de interpretar os acontecimentos é sempre repetida. Goffman define enquadramentos como os princípios de organização que orientam os eventos sociais, a construção de como as pessoas organizam a experiência. São marcos interpretativos mais gerais, construídos socialmente, que permitem às pessoas dar sentido aos eventos e às situações (PORTO, 2004).
O conceito de enquadramento passou a ser utilizado por vários autores de comunicação para entender como a mídia constrói culturalmente uma imagem da sociedade, destacando alguns elementos da realidade em detrimento de outros. Quais são os critérios de seleção, ênfase e exclusão; não apenas de notícias, mas também do entretenimento? Tornou-se uma ferramenta de análise empírica dos Estudos da Mídia, ao lado da Agenda-Setting[4], do Gatekeeper[5] e do Newsmaking[6].
Como utilizar o enquadramento como instrumento de investigação empírica da realidade social? Integrando uma extensa análise quantitativa (o tempo e/ou o espaço dedicado a determinados enquadramentos ou temas nas mídias) a uma abordagem qualitativa (interpretação textual).
Para Nizet e os sociólogos clássicos, adeptos da estrutura sociais e das regras que as constituem, os quadros primários equivalem a fatos sociais e os quadros secundários são interpretações (modalizações ou fabricações, caso parte dos participantes não tenha consciência da representação). No entanto, para um olhar mais contemporâneo, é evidente que os quadros primários são os recortes da mídia e os secundários são as formas de reinterpreta-los.
Tipos de Quadros segundo Nizet
Quadros primários
Quadros naturais
Quadros sociais
Quadros secundários
Modalizações
Fabricações
O Quadro ou Enquadramento de Goffman não substitui um fato social objetivo, mas se tornou uma ferramenta crítica para desmascarar o papel político da mídia pela falta de objetividade ou imparcialidade das mensagens. Desmitificado o mito da objetividade, o conceito de enquadramento é hoje instrumento para examinar empiricamente o papel da mídia na construção da hegemonia.
E a interação lúdica?
Nizet nada nos fala sobre as interações vistas como metáforas dos jogos. Talvez ele suspeite que Goffman considere a possibilidade da natureza lúdica das interações. Talvez desconfie de que Goffman entendia a representação como uma atividade cognitiva de si mesmo, e que tenha descoberto que a interação tem um prazer lúdico ainda mais essencial que a dimensão teatral.
Mas, isso jamais saberemos.




[1] Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN.
[2] Publicada depois em Forms of Talk.
[3] Cujos os textos ainda não foram traduzidos nem para o francês e nem para o português.
[4] Agenda-setting Metodologia que compara as agendas da mídia, das pessoas e das autoridades públicas sob dois aspectos: a ordem do dia dos temas, assuntos e problemas; a hierarquia de importância e de prioridade pela qual esses elementos são dispostos.
[5] Os gatekeepers (selecionadores de notícias - editores) - zonas de filtro controladas por sistemas objetivos de regras ou por gatekeepers (pessoa ou grupo que tem o poder de decidir se deixa passar a informação ou se a bloqueia); na seleção e na filtragem de notícias, as normas ocupacionais, profissionais ou organizacionais parecem ser mais fortes do que as preferências pessoais; seleção como processo hierárquico, ordenado e ligado a uma rede complexa de feedback; mais do que recusa ou aceitação, inclui todas as formas de controle da informação - codificação, edição, difusão, programação, etc.
[6] Newsmaking (critérios de noticiabilidade) - Quais acontecimentos são suficientemente interessantes, significativos e relevantes para virarem notícia? 1) Importância - determinada por quatro variáveis: a) grau e nível hierárquico dos envolvidos no acontecimento noticiável; b) impacto sobre a nação e sobre o interesse nacional; c) quantidade de pessoas envolvidas; e d) relevância do acontecimento e suas implicações futuras. 2) Interesse - determinado por fatores subjetivos. 3) Produto - disponibilidade, brevidade, atualidade, frequência, qualidade, importância, ineditismo, equilíbrio. 4) Meio de comunicação, qual repórter, com que recursos, formato, frequência; 5) Público - compreensão, adequação da linguagem. 6) Concorrência - o furo, fragmentação, expectativas recíprocas, referência. 

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