PUXANDO A BRASA PARA PRÓPRIA SARDINHA
Entre o
internacionalismo simbólico e a sociologia compreensiva
RESENHA: NIZET, Jean; RIGAUX, Natalie. A Sociologia de Erving Goffman. Tradução Ana Cristina Arantes
Nasser. Petrópolis, Vozes, 2016. (Coleção Sociologia: pontos de referência)
Marcelo Bolshaw Gomes[1]
A
interação teatral
Erving Goffman é um analista das
interações, do que acontece quando duas ou mais pessoas se encontram face a
face. ‘Inter-ação’ é uma relação mútua e recíproca entre o Eu e o Outro (dentro
de mim). Respeitar o outro assim como a si mesmo, implica em amor próprio e
consideração, em porte e deferência. Há também uma audiência, um público, os
olhares que apenas observam a ação dentro do jogo das interações. E, havendo
público, há também o palco e os bastidores; o espaço de exposição e os locais
de recolhimento.
O palco é composto por quatro
elementos: a) expressões explícitas (comunicação verbal), b) expressões
indiretas (gestos, faces, posturas corporais), c) objetos (figurino, acessórios)
e d) cenário (representando os contextos). Há dois níveis de representação da
interação. O primeiro é o imediato: um professor e seus alunos – por exemplo.
No segundo nível, representa-se o conjunto dos professores diante da juventude.
O segundo nível de representação é a própria realidade social que simbolizada
no interior da interação. Por exemplo: em uma conferência intitulada ‘A
conferência’, na Universidade de Michigan em 1976[2],
Goffman analisa as interações da situação, e que, no final das contas, o
conferencista e público produzem uma realidade externa sobre a qual tecem
considerações (NIZET, 2016, 61).
Outra distinção chave é entre o palco
(a visibilidade púbica) e os bastidores (muitas vezes comparado ao
inconsciente). A dicotomia é vista de forma semelhante ao par figura/fundo da
teoria da imagem da Gestalt. O fundo é tudo o que está fora de foco. A figura é
o foco da percepção.
A análise de Goffman contempla várias
nuances: o controle das impressões (do público pelos atores) substituindo a
realidade; a nota falsa (quando há uma ruptura na representação entre os atores
e/ou o público ou na representação entre o que a figura diz e o que fundo
mostra); e as trocas reparadoras, necessárias para corrigir as rupturas
representacionais. Além das noções de ator, cenário, papeis; Goffman analisa as
interações através de noções e conceitos singulares. Por exemplo, a noção de
equipe (ator coletivo que conduz uma representação) é quando um conjunto de
pessoas estabelecem uma cumplicidade, escondendo elementos negativos ou
desnecessários do público. Toda equipe é uma “sociedade secreta”, em que a
imagem de unidade esconde divergências e atritos. Ou ainda, a noção de
envolvimento, a atenção afetiva em relação à interação e aos seus elementos. Há
o envolvimento na conversação, o envolvimento nas ocasiões sociais, o
envolvimento nas ocasiões públicas não focalizadas.
O Estigma é um conceito diferencial
nas interações sociais, uma marca simbólica que desqualifica a identidade de
seu portador nas relações imediatas. Ser negro ou mestiço, deficiente físico ou
mental, mulher, homossexual, estrangeiro, obeso, doente e divorciado são os
estigmas mais recorrentes. O estigmas afetam principalmente a área chamada de
‘fachada pessoal do indivíduo’ e tem como efeito principal ‘desacreditar’ seus
portadores. Goffman estuda as estratégias dos estigmatizados, seja se adaptando
individualmente, seja formando comunidades, com outros que partilham do mesmo
estigma, buscando a aceitação social do seu grupo, mas, na verdade, reafirmando
a diferença que tentam reduzir.
Outro conceito marcante é o de ‘instituições
totais’ – desenvolvido no livro Manicômios,
prisões e conventos:
[...} “um lugar de residência e de trabalho, onde um
grande número de indivíduos, colocados em uma mesma situação, afastados do
mundo exterior por um período relativamente longo, levam conjuntamente uma vida
reclusa, cujas modalidades são explícita e rigorosamente regradas” (GOFFMAN,
APUD NIEZET, 2016, 75).
Infelizmente, Nizet não compreende a
afirmação de Goffman de que “a loucura é a incapacidade de se orientar pelas
regras sociais” (que interpreta como sociologismo), como também do papel das
instituições totais na modernidade – pontos que aproximam o americano ao
pensamento de Michel Foucault, em relação à Sociedade Disciplinar e ao
confinamento como um adestramento ao cotidiano e às rotinas da vida industrial.
A interação ritual
Segundo os especialistas (BRANAMAN,
1997 APUD NIZET, 2016, pág. 12), embora Goffman tome as interações sociais como
objeto de análise em todos seus livros, elas são abordadas de diferentes pontos
de vistas, através de metáforas. E cada
livro não faz referência aos outros, “como se a cada vez a pesquisa recomeçasse
a partir do nada”. Assim, há trabalhos (referenciado no teatro e nos jogos) que
se aproximam mais do ‘Individualismo metodológico’ do interacionismo simbólico,
isto é do idealismo que crê que os agentes cria sua realidade; enquanto os
trabalhos da metáfora ritual são mais próximos de Durkheim e das regras sociais,
em que as pessoas não têm autonomia diante dos mecanismos sociais abstratos.
Ao longo do seu percurso intelectual,
Goffman utilizou os termos ‘fachada’, ‘face’ e ‘imagem’ para caracterizar a
experiência de palco. O ‘face work’ ou a ‘figuração’ significa perseverar a
própria face e face do outro, a dupla representação da interação é chamada
tanto pelo par ‘amor próprio/consideração’, como também pela oposição entre
‘porte’ e ‘deferência’, nas obras mais recentes.
Tabela da
produção de Erving Goffman
|
LIVROS/ANO
|
METÁFORA TEATRAL
|
|
METÁFORA RITUAL
|
Ritual de
interação – Ensaios sobre o comportamento face a face (1967)
Relações em
público: micro estudos sobre a ordem pública (1971)
|
METÁFORA LÚDICA
|
Encounters (1961)
Strategic
interations (1969)
|
METÁFORA AUDIOVISUAL
|
Os quadros da
experiência (1974)
Forms of talk
(1981)
|
Fonte: Elaborado pelo autor a
partir de Nizet, 2016.
Ao chamar as interação sociais de
representações teatrais Goffman está fazendo uso de uma metáfora? Prefiro
pensa-las como ‘categorias descritivas’. Considerá-las como metáforas ou
analogias poéticas significa esvaziá-las de seu poder cognitivo. E Goffman descreve
as interações a partir da própria experiência e não através de um observador
externo como faz a sociologia objetivista, associando as interações às regras
estruturais. Nizet considera os livros ‘da metáfora ritual’ mais próximos da
sociologia holística da tradição de Durkheim. Há inclusive uma demonstração de
que Goffman não se considerava parte do interacionalismo simbólico e de que os
membros do movimento também não o consideravam como interacionista (NIZET,
2006, 103).
Nizet utiliza essa dupla rejeição
como argumento para aproximar Goffman de Durkheim, mas, a verdade é que a
análise goffimaniana das interações está mais próxima da sociologia
compreensiva de Max Weber do que do objetivismo sociológico das regras
estruturais. E, a despeito do que todos dizem, a afinidade teórica entre a
escola de Chicago e Goffman é inegável. Talvez o mais adequado seja dizer que
ele é a expressão mais sofisticada do interacionalismo simbólico – justamente
por ter um horizonte mais abrangente das relações sociais, e dos
constrangimentos estruturais impostos aos atores que produzem a realidade
social.
Nizet tem razão quando considera que
houve um avanço qualitativo entre os livros mais teatrais para os que entendem
as interações como rituais. Porém, ele tem uma visão superficial da mudança
(uma troca de metáforas) e simplesmente não entende a evolução do pensamento de
Goffman os trabalhos posteriores sobre teoria dos jogos[3]
e sobre a noção de enquadramento.
A interação audiovisual
O livro Os quadros da experiência social, o último de Goffman, tem
características bem peculiares em relação aos seus trabalhos anteriores. Não é
uma coletânea de artigos e sim um livro contínuo e extenso, em que o autor
assimila os elementos dos trabalhos anteriores, de modo diferente. Ao invés de
analisar situações reais e fictícias, Goffman utiliza-se recortes de jornais,
peça de publicidade e de outros fragmentos da mídia para fazer suas análises.
O próprio conceito de ‘enquadramento’
(framing temporal, no gerúndio; e não de um ‘quadro’ instantâneo e estático) é
tomado de um teórico da comunicação Gregory Bateson, que o utiliza neste
contexto de análise específico de como a mídia constrói a realidade social. Ele
nos remete a um recorte temporal, em que uma forma de interpretar os
acontecimentos é sempre repetida. Goffman define enquadramentos como os
princípios de organização que orientam os eventos sociais, a construção de como
as pessoas organizam a experiência. São marcos interpretativos mais gerais,
construídos socialmente, que permitem às pessoas dar sentido aos eventos e às
situações (PORTO, 2004).
O conceito de enquadramento passou a
ser utilizado por vários autores de comunicação para entender como a mídia
constrói culturalmente uma imagem da sociedade, destacando alguns elementos da
realidade em detrimento de outros. Quais são os critérios de seleção, ênfase e
exclusão; não apenas de notícias, mas também do entretenimento? Tornou-se uma
ferramenta de análise empírica dos Estudos da Mídia, ao lado da Agenda-Setting[4],
do Gatekeeper[5] e
do Newsmaking[6].
Como utilizar o enquadramento como
instrumento de investigação empírica da realidade social? Integrando uma extensa
análise quantitativa (o tempo e/ou o espaço dedicado a determinados enquadramentos
ou temas nas mídias) a uma abordagem qualitativa (interpretação textual).
Para Nizet e
os sociólogos clássicos, adeptos da estrutura sociais e das regras que as
constituem, os quadros primários equivalem a fatos sociais e os quadros
secundários são interpretações (modalizações ou fabricações, caso parte dos
participantes não tenha consciência da representação). No entanto, para um
olhar mais contemporâneo, é evidente que os quadros primários são os recortes
da mídia e os secundários são as formas de reinterpreta-los.
Tipos de
Quadros segundo Nizet
Quadros primários
|
Quadros naturais
|
Quadros sociais
|
|
Quadros secundários
|
Modalizações
|
Fabricações
|
O Quadro ou Enquadramento de Goffman
não substitui um fato social objetivo, mas se tornou uma ferramenta crítica para
desmascarar o papel político da mídia pela falta de objetividade ou
imparcialidade das mensagens. Desmitificado o mito da objetividade, o conceito
de enquadramento é hoje instrumento para examinar empiricamente o papel da
mídia na construção da hegemonia.
E a interação lúdica?
Nizet nada nos fala sobre as
interações vistas como metáforas dos jogos. Talvez ele suspeite que Goffman
considere a possibilidade da natureza lúdica das interações. Talvez desconfie
de que Goffman entendia a representação como uma atividade cognitiva de si
mesmo, e que tenha descoberto que a interação tem um prazer lúdico ainda mais
essencial que a dimensão teatral.
Mas, isso jamais saberemos.
[1]
Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN.
[2]
Publicada depois em Forms of Talk.
[3]
Cujos os textos ainda não foram traduzidos nem para o francês e nem para o
português.
[4]
Agenda-setting – Metodologia
que compara as agendas da mídia, das pessoas e das autoridades públicas sob
dois aspectos: a ordem do dia dos temas, assuntos e problemas; a
hierarquia de importância e de prioridade pela qual esses elementos são
dispostos.
[5]
Os gatekeepers (selecionadores
de notícias - editores) - zonas de filtro controladas por sistemas objetivos de
regras ou por gatekeepers (pessoa ou grupo que tem o poder de decidir se
deixa passar a informação ou se a bloqueia); na seleção e na filtragem de
notícias, as normas ocupacionais, profissionais ou organizacionais parecem ser
mais fortes do que as preferências pessoais; seleção como processo hierárquico,
ordenado e ligado a uma rede complexa de feedback; mais do que recusa ou
aceitação, inclui todas as formas de controle da informação - codificação,
edição, difusão, programação, etc.
[6]
Newsmaking (critérios de
noticiabilidade) - Quais acontecimentos são suficientemente interessantes,
significativos e relevantes para virarem notícia? 1) Importância - determinada
por quatro variáveis: a) grau e nível hierárquico dos envolvidos no
acontecimento noticiável; b) impacto sobre a nação e sobre o interesse nacional;
c) quantidade de pessoas envolvidas; e d) relevância do acontecimento e suas implicações
futuras. 2) Interesse - determinado por fatores subjetivos. 3) Produto -
disponibilidade, brevidade, atualidade, frequência, qualidade, importância, ineditismo,
equilíbrio. 4) Meio de comunicação, qual repórter, com que recursos, formato, frequência;
5) Público - compreensão, adequação da linguagem. 6) Concorrência - o furo,
fragmentação, expectativas recíprocas, referência.
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