quarta-feira, 4 de junho de 2025

Elementos Narrativos do Dorama

 CARTOGRAFIA DAS LÁGRIMAS



Marcelo Bolshaw Gomes

 

Resumo: Quais são os elementos simbólicos e narrativos que definem o dorama asiático, principalmente o melodrama coreano? O objetivo deste texto é explorar, através de uma pesquisa documental qualitativa, como aplicar as ferramentas e modelos dos estudos narrativos a esse  conjunto de séries audiovisuais. O resultado é uma breve cartografia do estilo e de seus subgéneros segundo seus elementos narrativos principais.

Palavras_chave: Estudos Narrativos1; Séries audiovisuais2; Melodrama coreano3;

 

Introdução

Definir o Dorama como forma narrativa esbarra em uma série de problemas conceituais e de classificação. ‘Dorama’ é um termo genérico de narrativa audiovisual seriada asiática. Há variações culturais: j-drama é japonês, c-drama é chinês e o K-drama, coreano. E esses tipos nacionais de dorama espelham as diferenças culturais entre esses países. Os K-dramas costuma ter final inconcluso e “agridoce”, semelhantes à vida que nunca se encerra; os J-dramas têm finais trágicos e “amargos”, duros e irreversíveis como a vida é - contrastando com os melodramas ocidentais (novelas mexicanas e brasileiras) de ‘happy end’. Ou seja: ao mesmo tempo que as produções audiovisuais asiáticas contemporâneas tem características em comum frente a outras narrativas seriadas, elas também têm diferenças culturais significativas entre si, impercetíveis para o público ocidental.

Além das diferenças culturais em relação ao conteúdo, há também diferentes contextos de produção: os c-dramas são novelas de mais de 40 capítulos feitos para o público interno da China; os j-dramas geralmente são mini-séries de 8 a 12 partes; os k-dramas normalmente são seriados de 16 episódio - ambos voltados para um público global apesar do foco local.

O melodrama ocidental têm personagens arquetípicos: o herói, o vilão e a vítima; enquanto o dorama deseja desconstruir essa relação. O protagonismo é coletivo e o vilão é o destino do qual todos somos vítimas. O antagonista é a fatalidade, ou “han”, uma emoção cultural coreana que reflete tristeza, ressentimento e sofrimento acumulado. O tratamento dado aos personagens é mais complexo e realista, eles não são ‘actantes’ fixos, encarnando ‘funções narrativas’, são quase-pessoas com qualidades e defeitos.

Outra característica muito comum e conhecida dos doramas é a inversão da depreciação de género, uma perspectiva anti-misógena sem ser explicitamente feminista. Nos filmes do passado, principalmente nos de Hollywood, as mulheres eram desqualificadas como ‘tontas’ e incapazes. No K-drama ou melodrama coreano acontece o contrário: os homens têm suas falhas de caráter expostas e as mulheres são representadas com personalidades fortes e bem sucedidas.

Também é importante ressaltar que, do ponto de vista contextual, o K-drama faz parte da “la Hallyu’ (a onda coreana), uma expansão comercial da cultura sul coreana baseada em quatro pilares: culinária, música pop, séries audiovisuais e cosméticos. Essas quatro indústrias interagem entre si, dentro e fora das telas, com várias simbioses e intercessões.   

Após uma pesquisa exploratória de meses, identificamos quatro elementos simbólicos-narrativos nas séries audiovisuais do K-drama: o conteúdo temático multi-género; o foco e a invisibilidade; o protagonismo coletivo; e a adversidade como antagonista. Há também pelo menos duas características secundárias importantes: o roteiro alternando contemplação e ação; e trilha de áudio como forma de imersão emocional na narrativa.

Vejamos agora cada uma dessas características.


1. Conteúdo temático multi género

No ocidente chamamos de ‘narrativa de vingança’ às histórias em que o personagem principal sofre uma injustiça e retorna para se vingar - como no romance do Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Nos doramas, no entanto, uma narrativa de vingança é uma história que discute a vingança (o “olho por olho, dente por dente”) como um tema, vendo como vários personagens lidam com ela, quando a vingança é legítima e quando não, etc - como nas séries The Glory (2022) e Revenge of Others (2022).

O dorama é sempre ‘sobre algo’, com um tema específico, com historias de amor trágicas, conflitos familiares, segredos de nascimento, enfermidades terminais e dilemas morais. Pode-se inclusive pensar uma classificação dos melodramas coreanos por tema.

Tabela 1 - Classificação de melodramas coreanos por tema

TIPO

ELEMENTO PRINCIPAL

Romántico

Género que prioriza a jornada do casal em um mundo repleto de adversidades,

Familiar

Com ênfase nas relações familiares entre pais e filhos, mães, irmãs e em personagens órfãos.

Makjang

 Género misto com a comédia popular, com heróis virtuosos versus vilões malvados; tramas exageradas, viradas dramáticas e situações de alto impacto emocional. Passam na TV de sinal aberto todos os dias, com atores menos conhecidos.  

Melodrama Sageuk

Género romântico misto com filmes históricos, podendo ter elementos de viagens no tempo e mudanças de corpos entre os personagens.

Melodrama Médico

Género que combina romances com mortes e perdas clínicas em ambientes hospitalares. Vários tem ‘easter eggs’ sobre doenças e cirurgias ultra-realistas.

Melodrama de Venganza

Género que enfatiza a luta entre os personagens e se combina com outros elementos

Fonte: elaborado pelo autor com ajuda de IA

Existe uma característica que atravessa todos temas e géneros: é a redenção. Muitas histórias têm dois enredos: um no passado (que vai sendo conhecido através de ‘feedbacks’ progressivos) e outro no presente (em que a história principal se desenvolve). Há (quase) sempre segredos esquecidos e um ‘karma’ no passado que explica e justifica a linha do tempo do enredo imediato.

 

2. Focos e invisibilidades

Muitos atribuem o sucesso do melodrama coreano a falta de cenas de sexo em sua narrativa romântica. É verdade que, principalmente após os anos 60 com a contra-cultura, as narrativas tornaram-se mais eróticas e sexuais. E também que as novas gerações, em resposta a essa saturação pornográfica provocada pela libertação de séculos de repressão, preferem as narrativas românticas que enfatizam a afetividade e os sentimentos. Mas, essa é apenas uma parte da verdade. A ênfase na afetividade tem um efeito de sentido terapêutico para mulheres e pedagógico para os homens através das inversões em relação aos modelos ideológicos de dominação de género. Mulheres fortes em posição de poder fazem par com homens inseguros e imaturos.

A comida é a grande estrela do audiovisual coreano. Está presente praticamente em todos os k-dramas, não apenas como parte do enredo, mas também como produto de marketing (pratos, receitas, cultura culinária) e até como merchandising (inserção comercial de marcas dentro da narrativa). A música pop coreana e a indústria de cosméticos também aparecem e financiam os k-dramas, mas o papel da comida com ênfase na cultura tradicional e em locais turísticos é de longe o elemento de visibilidade mais forte nas narrativas.  As bebidas alcoólicas tradicionais - Soju (uma água ardente de batata doce) e Makgeolli (vinho de arroz) - são sempre consumidas alegremente sem censura (inclusive por personagens femininos de forma desmedida) em contextualizações positivas (ter coragem, superar limitações, falar a verdade) ou cómicas.

Particularmente não acho que os coreanos bebam menos que os brasileiros e imagino que os problemas decorrentes do consumo excessivo de bebidas alcoólicas seja o mesmo. Da mesmo forma, não acredito que os homens coreanos sejam menos machistas que os latinos. No entanto, a representação dessas questões nas narrativas audiovisuais não pretende retratar a realidade, mas intencionalmente modelá-la. Em nosso caso optamos por esconder não apenas o consumo de substâncias tóxicas como também nossa rica culinária; enquanto a narrativa melodramática coreana invisibiliza a sexualidade e ... a política.

A política é outra grande ausência no melodrama coreano. Aliás, embora as séries audiovisuais do sul não sejam assistidas na Coreia do Norte, é impossível deixar de imaginar que elas não são uma forma de propaganda ideológica de um estilo de vida híbrido entre o asiático e o ocidental. No entanto, esse ponto é completamente camuflado com o glamour e a afetividade. O K-drama Pousando no amor (ou Crash Landing On You) é um bom exemplo disso.

Mas enquanto dos doramas vendem o consumismo estilizado para os coreanos, os fãs da cultura coreana no Brasil e nos Estados Unidos são extremamente politizados, participando dos protestos do movimento Black Lives Matter e manifestações contra Donald Trump. No Brasil, fãs do BTS arrecadaram recursos para a proteção do Pantanal. Há diferenças entre as recepções e entre os públicos alvo dos doramas na semiosfera coreana e na semiosfera ocidental.

Os k-dramas, em sua origem, são produtos que nascem da intersecção de culturas. Se antes eles precisavam incorporar elementos ocidentais para atrair a atenção do próprio público local, agora também incidem sobre uma semiosfera de sentido que não se restringe à orientalidade. Essas trocas vão aparecer de maneira contínua e não somente com a ocidentalidade. Essas interações entre culturas e entre as formas de representação, condicionam o signo mulher a partir de uma única parte representável do objeto (OLIVEIRA, STEFENON; ABREU, 2021, 10) .

 

3. O protagonismo coletivo

Oliveira, Stefenon e Abreu (2021, 4) acreditam que a representação da mulher preserva matrizes de uma determinada tradição asiática conservadora e reforça a divisão entre os géneros. No entanto, apesar dos elementos machistas tradicionais (mesclado com o marketing capitalista) para o público interno coreano, há também vários elementos progressistas para as jovens ocidentais de classe média alta dos países consumidores das culturas asiáticas.

Uma forma simples de definir o protagonismo feminino na jornada do herói é a mudança do antagonista: nas histórias patriarcais o inimigo é a natureza (e suas metáforas); na jornada feminina, o inimigo é a sociedade distópica e machista, a máquina e a razão sem sentimentos. De modo, que homens e mulheres podem ser protagonistas das duas jornadas, cuja a diferença estrutural seria inimigo-contexto.

Greimas (1976) tem um modelo mais complexo, mas ainda incapaz de caraterizar a mudança de valores nas narrativas atuais. Para ele, as narrativas são compostas de quatro ‘actantes’ principais: o objeto de valor, o sujeito (que deseja o objeto), o anti-sujeito (que impede a realização do desejo do sujeito) e o narrador. Nesse modelo, a natureza do objeto de valor determina de que tipo a narrativa é.  

Através da compreensão do objeto de valor de uma narrativa é que podemos entender não apenas quem são os sujeitos da disputa e quais suas dificuldades, mas também quem é que está nos contando essa história, ancorada em que valores e em com objetivos. A maioria dos triângulos amorosos das narrativa dos ocidentais são edipianos, formados por dois homens (o herói e o vilão) e uma mulher (disputada por ele), são uma replicação narrativa da tragédia de Tristão e Isolda. No melodrama coreano, porém, os vilões vão se humanizando no decorrer da narrativa e as falhas de caráter do herói vão aparecendo durante a trama. E o pior (ou o melhor): os dois se tornam amigos, tornando a escolha mais difícil.

A mulher, ao invés de vítima ou objeto de disputa, é colocada em uma posição de autonomia e decisão. Mas, não de protagonista única e solitária. No melodrama coreana, a narrativa não é uma jornada heroica épica como em Joseph Campbell (1990) nem uma história trágica clássica como em Aristóteles. É uma jornada coletiva: do casal, do grupo de amigos, da comunidade.

Todos são protagonistas! Todos têm seus conflitos para resolver. Mas, todos também são vítimas da entropia fatal que a todos derrota. Por isso, mesmo quando acaba bem, o K-drama é uma celebração das perdas. “A adversidade como antagonista” significa que os personagens, na verdade, lutam contra a irreversibilidade do tempo, contra a implacabilidade das coisas, contra a dureza da vida que segue.

Ao contrário da tragédia clássica, em que a catarse de expiação é ativada por uma antecipação constante do final inevitável, no melodrama coreana há viradas, surpresas, suspense. Os golpes do destino são inesperados. A catarse dorâmica é de redenção do passado e o final, uma espécie de balanço das derrotas sofridas e dos personagens sobreviventes.

Além dessa quatro características narrativas (o conteúdo temático multi-género; o foco e a invisibilidade; o protagonismo coletivo; e a adversidade como antagonista), existem ainda duas características semióticas marcantes: o roteiro alternando contemplação e ação; e trilha de áudio como  imersão emocional na narrativa.

A influência do budismo e do confucionismo também pode ser observada, não apenas no conteúdo, mas na necessidade de oferecer uma narrativa mais contemplativa e menos ansiosa. Além de um ritmo de edição mais calmo, há inserção de clips musicais com cenas de alto impacto visuais (o primeiro dia da neve, o florescer das cerejeiras, o luar em um lago, etc). E não se trata apenas de músicas, toda trilha de áudio é artificialmente adicionada nas imagens e mixado ao som direto durante a pós-produção. Assim, a sonoplastia é altamente narrativa e mantém o telespectador emocionalmente ligado à história.

 

Referências

CAMPBELL, J. O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990.

GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1976.

PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Tradução de Jasna Paravich Sarhan. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

OLIVEIRA, Felipe Moura de; STEFENON, Eduarda; ABREU, Júlia Ozorio de. O dorama como texto da cultura: a mulher nas séries sul-coreanas mais vistas entre janeiro e junho de 2020. Semeiosis - Semiótica e Transdisciplinaridade em revista. V.9 N2 2021.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

A Onda (2008)

 



A ONDA, A SEITA E A BOLHA IDENTITÁRIA

A retribalização pós-moderna dos grupos

 

Marcelo Bolshaw Gomes[1]

 

Resumo: Como indica o título, o texto discute três temas correlatos: o filme a Onda (2008), o conceito de Seita em psicologia social e a noção de Bolha, resultado da retribalização pós-modernas dos grupos nas redes sociais. O objetivo é comparar os três temas mostrando sua inter-relação e o método, a pesquisa crítica bibliográfica e documental. O resultado é que as atuais bolhas virtuais têm as mesmas características simbólicas das antigas seitas presenciais.

Palavras-chave: Cinema1; Psicologia de Seita2; Retribalização pós-moderna3;


1.      Introdução

Marshall Mcluhan (1972) definiu evolução da comunicação humana pode ser dividida em três fases: a tribalização (a comunicação oral), a destribalização (a comunicação escrita) e a retribalização (comunicação eletrônica). E essa ideia foi adaptada de diferentes formas. Vilém Flusser, enfatizando a representação do tempo, fala de pré-história (a simultaneidade cíclica), de tempo histórico (a continuidade linear) e de pós-história (simultaneidade contínua). Pierre Levy (1995) prefere “tecnologias da inteligência” e os modelos de interação: um-um (interlocutores em um único contexto presencial); um-muitos (o panóptico); e muitos-muitos (redes ou rizoma).

Entre os que enfatizam a organização como fator, como Maffesolli (1987) e Lemos (2007), no entanto, a ideia de retribalização pós-moderna ainda era profética e dependia da desfragmentação da cultura de massas. Pensavam em uma sociedade ainda no estágio histórico e convencional (a democracia representativa, o governo das regras escritas) caminhando para, através do desenvolvimento dos meios de comunicação audiovisuais, um regime pós convencional de cognição coletiva descentralizada (a sociedade retribalizada das redes e comunidades virtuais).

Mas ninguém esperava por um tsunami de seitas pentecostais, comunidades quilombolas, milícias digitais de direita e movimentos sociais aparelhados de esquerda. Além disso, com a segmentação interativa do mercado consumidor em nichos surgiram as bolhas virtuais. As bolhas não apenas deturpam as informações correntes, mas também produzem informações inverídicas com base em sua ideologia, se comportando de forma a impedir o debate democrático.

Hoje, os marqueteiros e web designers acreditam que as bolhas são tribos artificiais, criadas pelas redes sociais e que retroalimentam preferências de consumo. Porém, em uma perspectiva sociológico, é a bolha é uma representação de tendências sociais e históricas reais. A bolha é apenas uma representação virtual de grupos já existem e seus mecanismos de constituição são semelhantes aos de formação de coletivos menores que negam a vida democrática.

E aqui entra nosso primeiro tema.

 

2.      A Onda

A onda (2008)[2] é um filme ficcional alemão que conta uma história real: o experimento social da Terceira Onda, realizado pelo professor de história Ron Jones nos anos 70 em Palo Alto, EUA. No filme, o professor colegial Rainer Wenger (Jürgen Vogel) é indicado para ministrar um curso sobre autarquia (e não de anarquismo, como estava acostumado). Para demonstrar a seus alunos (que não acreditavam na possibilidade da Alemanha moderna voltar a ser nazista), Rainer propõem um experimento para mostrar como fácil é manipular as massas.

O professor, então, exige ser tratado por "Herr Wenger", muda as carteiras de lugar, colocando todos de frente para ele e posicionando os alunos segundo suas notas, de modo que cada dupla seja formado por um estudante com notas ruins e outro com notas boas. A ideia é que uns aprendam com os outros. Além disso, todo aluno que quiser fazer alguma colocação deverá levantar a mão e se expressar de forma militar.  Para empoderar coletivamente os alunos, Rainer faz uma marcha sem sair do lugar fazendo com que se sintam parte de uma única entidade, incomodando a turma de anarquismo, que está na sala a baixo da deles.

Continuando o experimento, Rainer então sugere que todos os alunos do grupo devem vestir uma camisa branca e calças jeans, para que não haja mais distinções entre os alunos. Mona (Amelie Kiefer), uma aluna relutante a fazer parte da proposta, diz que usar uniformes vai acabar com a individualidade de cada um (e mais tarde troca de turma e passa a integrar a classe de anarquismo). Outra aluna, Karo (Jennifer Ulrich) vai à aula do dia seguinte e descobre ser a única a não aderir ao uniforme.

Após uma rápida eleição, o nome "A Onda" (Die Welle) é escolhido. Além do nome, o grupo cria uma forma de saudação, que consiste em imitar o movimento de uma onda com o braço direito em frente ao peito. Criam também um símbolo, que é pichado por toda a cidade, inclusive na fachada do prédio da prefeitura. Além disso, o grupo promove festas onde só membros do grupo podem entrar, e alguns começam a hostilizar os não-iniciados.

A união do grupo altera o comportamento de vários integrantes. Bomber (Maximilian Vollmar) é um badboy valentão que passa de assediador a protetor de seu colega Tim (Frederick Lau). Tim é um dos que mais envolvidos, pois pela primeira vez ele se sente aceito em um grupo. Ele queima todas as suas roupas de marca e mais tarde aparece na casa de Rainer, oferecendo-se para ser seu segurança. Apesar do professor recusar, o rapaz dorme no quintal de sua casa. Sua esposa, Anke (Christiane Paul), também uma professora da escola, acredita que a situação já foi longe demais e pede para Rainer encerre o experimento. Ele, no entanto, a acusa de estar com inveja por ele estar fazendo mais sucesso com os alunos do que ela. Ofendida, ela o abandona.

Em virtude de uma briga generalizada durante o jogo de polo aquático, Marco (Max Riemelt), briga com a namorada Karo e a acusa de ter causado a briga que levou ao cancelamento da partida. Durante o desentendimento, Marco bate em Karo e a faz sangrar. Percebendo o que fez, ele vai até a casa de Rainer, onde pede que ele acabe com o movimento. Rainer então convoca uma assembleia com todos os membros no auditório da escola. No encontro, Rainer fecha as portas e discursa para os alunos, exaltando a atuação da seita e enaltecendo suas chances mudar a Alemanha. Marco protesta e Rainer o acusa de trair a confiança do grupo, pedindo que o tragam para o palco para ser punido. Rainer então faz os alunos perceberem o quão longe foram e como estavam sendo manipulados.

Inesperadamente, no entanto, Rainer decreta o fim do experimento, afirmando que provou seu argumento principal: de que a Alemanha pode voltar a se tornar um regime autoritário, mas Tim saca um revólver, se recusa a aceitar que a seita acabe com medo de voltar a ser sozinho e atira em sua própria boca. O filme termina com Rainer sendo levado preso pela polícia, enquanto os alunos, seus pais e os professores (incluindo sua esposa) o observam.

O filme retrata fielmente o processo de formação de uma Seita. Uma história real, não apenas em relação ao experimento escolar de Palo Alto, mas também de vários outros grupos que se radicalizam em torno da construção de uma identidade coletiva, nos fazendo pensar sobre como abrimos mão da individualidade em troca da aceitação.

A seita nos aceita e nós acabamos aceitando a seita.

 

3.      Teoria da Seita

A Seita é ‘uma manada que se destaca do rebanho’, incluindo a maioria e excluindo alguns como “bodes expiatórios”, despersonalizando os indivíduos em nome de uma identidade coletiva e de um líder carismático. Há seitas religiosas, políticas e com temas culturais específicos. Uma igreja dissidente, uma tendência de partido político, uma parte da torcida esportiva podem degenerar para o fanatismo identitário e se tornar uma seita.

As duas principais características das seitas são: a liderança carismática-autoritária e as crenças exclusivistas (as seitas frequentemente afirmam uma verdade singular que as diferencia do resto da sociedade).

  Há crenças explícitas e implícitas. Uma seita budista declara a crença nas quatro nobres verdades e na senda óctupla, mas suas crenças não declaradas (a impermanência, o “grande vazio”, a não existência do eu) é que vão diferenciar sua identidade. Da mesma forma, poucos adeptos da Biodanza leem Rolando Toro, mas todos acreditam que a prática é capaz de “dissolver suas couraças”. A Bíblia e o Capital de Marx são livros muito pouco lidos, mas muitos acreditam em vencer na vida pagando dízimo ou que a revolução é uma fatalidade histórica. “Vestir a camisa” da Seita é abraçar suas crenças não declaradas e até inconscientes. As crenças explícitas são apenas para propaganda externa.

Outras duas características secundárias importantes são o isolamento físico e psicológico dos membros (da família e dos amigos que não participam da Seita) e o controle rígido sobre comportamento, pensamento e até emoções, popularmente chamado de “lavagem cerebral”.  

Deste último ponto, é possível também destacar alguns elementos simbólicos importantes: os rituais (iniciações e celebrações) e as várias práticas distintivas: o acolhimento afetivo como tática de recrutamento; a culpa e a cobrança de gratidão como forma de manipulação permanente; e a visão dicotômica do mundo dividido entre "nós" e "eles" (ZAGO, 2022) [3].

No entanto, a característica mais visível é a exploração econômica dos membros. Em muitos casos, há demandas por tempo, dinheiro ou trabalho excessivo em benefício do grupo e do líder, às vezes sob a justificativa de um propósito maior. Na linguagem cotidiana, "seita" muitas vezes carrega um tom pejorativo, associado a grupos manipuladores que exploram seguidores emocionalmente, financeiramente ou até fisicamente. A exploração, muitas vezes voluntária dos adeptos, leva a todo tipo de abuso moral, sexual e a um regime de trabalho próximo ao da servidão.

Essas características (vistas no seu conjunto) variam em intensidade e nem todas estão presentes em todos os grupos chamados de seitas.

Resumindo: pela lógica tribalização/destribalização/retribalização de McLuhan, o ‘bando’ é pré-histórico; o grupo de indivíduos regrados e disciplinados corresponde ao aspecto convencional da modernidade; e a Bolha é a tribo virtual. Ser um indivíduo é uma conquista da modernidade e a Seita é um passo atrás, um retorno ao bando.

 

4.      Amor e ódio

O filme A Onda tem pelo menos duas contribuições importantes para uma teoria da Seita: 1) minimiza o sistema de crenças explícito, a ideologia, como fator de radicalização do processo de formação da identidade coletiva da Seita; e 2) também minimiza a importância à exploração econômica da servidão voluntária dos membros aos líderes e à organização.

Assim, o filme não considera relevante justamente as duas características mais visíveis ao senso comum. Ao invés de enfatizar a exploração, há referências ao empoderamento pessoal resultante do trabalho coletivo, em que o resultado conjunto é superior à soma das capacidades individuais graças ao papel do líder, gerente do capital grupal. Já em relação às crenças inconscientes, destaca-se o papel do “bode expiatório”, do inimigo externo ou do traidor. Aqui, ao contrário da situação anterior, o resultado é menor que a soma das partes, pois são inibidos e represados emoções, instintos e sentimentos. Assim, mais do que lucro ou ideias, o importante é que haja um objeto de ódio para ser detestado e um objeto de culto para ser amado.

Nessa perspectiva, os grupos operam em dois regimes distintos: o diurno ou do grupo de trabalho (e de cooperação consciente) e o regime noturno da emergência dos “pressupostos básicos” do inconsciente arcaico estabelecendo sentimentos comuns aos indivíduos do grupo.

“Pressupostos Básicos” (BION, 1975) são padrões de comportamento coletivo – situações emocionais arcaicas – que tendem a evitar a frustração inerente à aprendizagem por experiência, quando esta implica em dor, esforço ou sofrimento.

Bion identifica três tipos: dependência; acasalamento; e ataque e defesa diante do inimigo. No pressuposto de dependência, o sentimento de proteção e de adoração em relação aos líderes ou às divindades é representado pela relação autocrática do professor com os alunos em sala de aula. O pressuposto do acasalamento aparece nas festas e no sentimento de esperança no futuro da comunidade.  E, no pressuposto de ataque e fuga diante do inimigo, os sentimentos de medo e de raiva, são utilizados para constituição de objetos de ódios e para formar uma unidade coesa no grupo.

Entre os objetos de ódio, a configuração grupal arcaica mais importante é comumente chamada de ‘bode expiatório’. É a “lata de lixo” emocional do grupo, em vários níveis de intensidade. O mais leve é o ‘ajuste de conduta’ quando todos do grupo debocham de um elemento em relação a algo em particular.

Porém, quando o indivíduo não se enquadra no comportamento do grupo começa um segundo nível de ódio, em que, ao invés de forçar a inclusão da diferença pela adequação, deseja excluí-la. É a ‘produção do transgressor’. O complexo de bode expiatório chega ao seu ápice, o terceiro estágio, quando o grupo decide culpar o transgressor de todas as adversidades pelas quais os outros elementos do grupo passam e, então, o sacrificam para se purificarem de seus erros. E isso acontece muito mais corriqueiramente do que se imagina.

Outra contribuição preciosa do filme é que a formação da ‘Onda’ oscila entre a Equipe (os aspectos positivos) e a Gangue, quando a Seita comete crimes, como acontece nas cenas da torcida organizada no jogo de polo aquático – e, em uma oitava maior, durante toda narrativa.

A Equipe (Goffman, 2021[4]) está ligada a alguma forma de performance coletiva (jogo, arte, trabalho), seus integrantes desenvolvam certas habilidades psicológicas e competências subjetivas (além da excelência das qualidades técnicas e artísticas), tais como: afinidade emocional, capacidade de sincronia intuitiva, criatividade coletiva, improviso em conjunto, tolerância com erros secundários e gentileza nas correções necessárias. Essas mesmas habilidades também são necessárias para a produção colaborativa em rede que envolvem vários tipos de artistas e técnicos.

A diferença entre o ‘grupo’ e a ‘equipe’ é que a última ultrapassa a soma das habilidades de seus integrantes através da inteligência coletiva, da capacidade de interagir criativamente em conjunto. Tanto a Gangue quanto a Equipe partilham da cumplicidade emocional das Seitas. A lealdade emocional acima das regras, apesar de antidemocrática e antirrepublicana, é o cimento da sociabilidade. A diferença da Equipe em relação à Seita e à Gangue é o papel da família, das amizades e da comunidade. Na equipe, a lealdade não implica no abandono das relações familiares e de amizade. 

A comunidade é uma estrutura formada a partir da cooperação entre famílias. Não se deve confundi-la com a horda ou com rebanho. Ao contrário, a família tem interesses próprios e entra em oposição com a estrutura centralizadora e desigual da seita. A comunidade provavelmente surgiu da institucionalização sedentária da defesa dos interesses das crianças, mulheres e dos idosos em relação aos objetivos nômades do rebanho. Então, desde o começo da sociabilização existiu um conflito estrutural entre a família e os grupos formados por participação voluntária.

 

5.      A bolha identitária

Na visão técnica, a bolha é “o resultado da algoritmização da sociabilidade online, ela nada mais é do que grupos de indivíduos se retroalimentando de ideias e convicções” (Pariser, 2012, 98).

Há dois tipos de bolha: a Bolha Informacional (formada a partir do algoritmo de consumo e das restrições regionais) e a Bolha Ideológica, polarizada pela valorização dos objetos de ódio. A direita odeia os imigrantes, os bandidos e o estado corrupto; a esquerda odeia o luxo, a polícia, os burgueses. Ambos cultuando líderes populistas e valores simétricos.

 Acrescentamos um terceiro tipo, ou melhor, um terceiro estágio de fanatização: a Bolha Identitária. Imagine-nos uma cidade com dois bairros de trabalhadores vizinhos. Em um bairro, há mais católicos e no outro, mais protestantes. Então, o algorítmico datifica os dados e passa a considerar esses dados em duas bolhas informacionais. Então, chegam as eleições e cada comunidade adota um lado, polarizando-as. Temos agora as bolhas ideológicas. Com o passar do tempo, as diferenças se tornam parte da identidade dos bairros, que passam a torcer por times rivais e ostentam símbolos próprios. Essa, então, é uma bolha identitária.

A Bolha é apenas a datificação do mercado de consumo. Ela não é a causa da retribalização e sim um fator derivado que potencializa sua origem. Por isso, para entender o fenômeno da Bolha (em seus diferentes níveis) é preciso entender primeiro o processo de formação das seitas.

 

6.      Conclusão

Introduzimos o tema da retribalização e descrevemos o filme A Onda, apontamos as principais características das seitas (o líder carismático, a doutrina, as crenças inconscientes, o isolamento, o mundo dicotômico e a exploração econômica). Ao contrário do senso comum, que vê a seita como um conjunto de alienados explorados, detalhamos o processo de formação real, oscilando entre o empoderamento de união e a administração dos objetos de ódio; entre a excelência cooperativa das equipes e o uso criminoso da violência das gangues.

Também ressaltamos a oposição estrutural entre a Família/Comunidade e a Seita, pois mesmo que a última absorva a primeira, os interesses sedentários se oporiam à mobilidade dos objetivos táticos do grupo.

Apesar desses cortes temáticos descontínuos, o leitor já deve ter percebido para onde caminhamos: as bolhas informacionais podem ser tornar bolhas ideológicas e identitárias através dos mesmos mecanismo uniformização e de desindividualização de formação das seitas. Não apenas através da administração dos objetos de ódio, mas também pela promessa da excelência cooperativa.

Todos temos um sentimento de incompletude, um desejo de união a algo maior que a soma dos esforços isolados, uma compulsão gregária pela Utopia. Fazer parte de alguma coisa significativa, que faça a diferença, empodera e dá segurança. Mas também exige cuidado e controle, pede que sejamos menos do que somos – o que cria um inconsciente grupal cheio de resistências fraternas, inimigos externos e traidores.

 

Referências

BION, W. R. Experiências com grupos. Rio de Janeiro: Imago; São Paulo: EDUSP, 1975.

DIE Welle (Original) A Onda (em Português). Direção de Dennis Gansel. Produção de Christian Becker e Martin Moszkowick. Intérpretes: Jürgen Vogel, Frederic Lau e outros. Roteiro: Dennis Gansel e Peter Thorwharth. Música: Heiko Maile. Alemanha: Constantin Film Produktion Gmbh e Rat Pac Filmproduktion Gmbhk, 2008. (107 min.), son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zG3TfjAhs30&ab_channel=ALuzMcOficial

GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. Tradução de Dante Moreira. Leite. 7ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.

LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

LEMOS, André. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sullinas, 3ª edição. 2007.

MAFESOLI, M. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. RJ: Forense, 1987.

MCLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg. A formação do homem tipográfico. São Paulo: Cia Ed. Nacional e EDUSP, 1972

MORAIS, Marina Magalhães de; PEREIRA Wellington. Tribalização no Ciberespaço: O Fenômeno das Comunidades no Mundo Virtual. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXXI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Natal, RN – 2 a 6 de setembro de 2008

PARISER, Eli. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

ZAGO, Rayhanne Simon Dardengo.  A psicologia das seitas. 1 de setembro de 2022. https://rayhannezago.com/a-psicologia-das-seitas/


[1] Professor titular DECOM/UFRN.

[2] A Onda (Die Welle) é um filme de 2008 dirigido por Dennis Gansel e produzido por Christian Becker. .

[3] Para aprofundar no estudo dos abusos psicológicos em seitas e seu tratamento, v.: https://rayhannezago.com/a-psicologia-das-seitas/

[4] Outro conceito correlato é o de ‘Instituição Total”, organização fechada de confinamento de um grande número de pessoas em que todos os aspectos da vida social (aprendizado, trabalho, residência) ocorrem no mesmo local. Há seitas que nascem de propostas de instituições totais em que a sustentação econômica, a representação política e a vida cultural coincidem na mesma organização.