quinta-feira, 20 de março de 2025

metajogador

 


Vilém Flusser (1998) caracteriza o ‘modo de ser brasileiro’ como um protótipo do homo ludens, um novo homem consciente de que joga com e contra outros; e de que outros jogam com e contra ele. A miscigenação nos fez ‘lúdicos’, um exemplo para outros povos. Flusser vê o brasileiro de modo semelhante a Darcy Ribeiro descrevendo três estratégias de jogo colonial.

É possível engajar-se de várias maneiras nos jogos. Por exemplo: jogar para ganhar, arriscando derrota. Ou jogar para não perder, para diminuir o risco da derrota e a probabilidade da vitória. Ou jogar para mudar o jogo. Nas duas primeiras estratégias o engajado se integra no jogo, e este passa a ser o universo no qual existe. Na terceira estratégia o jogo não passa de elemento do universo, e o engajado está "acima do jogo". Se ciência for jogo, o técnico se engaja nela pela estratégia um ou dois, e o cientista pela estratégia três (procura mudar o jogo, alterar suas regras e introduzir ou eliminar elementos). Se língua for jogo, o participante da conversação se engaja nela pela estratégia um ou dois, e o poeta pela estratégia três (pelas razões indicadas). O mesmo pode ser assim formulado: quem aplica estratégia um ou dois esqueceu que está jogando (por exemplo: técnico, participante de conversação, industrial, político, general e líder estudantil esqueceram que estão empenhados em jogo). Quem aplica estratégia três sempre conserva distância suficiente para dar-se conta do aspecto lúdico da sua atividade (por exemplo: cientista teórico, poeta filósofo e futurólogo). (Flusser, 1998, 108).

 

A estratégia um é a dos que jogam para vencer, mesmo arriscando a derrota – como os norte-americanos. A estratégia dois é o jogo dos excluídos que jogam para não perder, buscando reduzir os riscos tanto do fracasso como do sucesso – como a maioria dos povos latinos americanos. Já a estratégia três é o jogo dos que jogam para mudar o jogo, que caracteriza o ‘modo brasileiro’. A estratégia três corresponde a uma forma de resistência criativa à aculturação colonizadora, uma identidade híbrida, que não se identifica nem rejeita a cultura do colonizador: a absorve e a recria com sua própria linguagem.

Não se trata mais de identidade de um povo ou estratégia de sobrevivência dos dominados, mas sim de um comportamento cultural resiliente a ser adotado por todos os povos em um futuro global. As alteridades, aproximações, estranhamentos e a maneira como os grupos interagem ao longo da história acabam criando relações de poder de acordo com o desconhecimento e reconhecimento do outro. 

Flusser reconhece que, para os povos colonizados, afirmar sua identidade cultural é um ato de resistência muito doloroso porque implica em superar o não reconhecimento do outro (e de si mesmo projetado no colonizador), mas também compreende a antropofagia como um método de diálogo dentro de um contexto da interculturalidade, reconhecendo que cada um tem sua história e uma identidade própria a ser respeitada, cultivada e celebrada.

terça-feira, 18 de março de 2025

Guerrilha

 

Na teoria do cerco guerrilheiro, o procedimento conhecido por ‘alternância repetida de operações táticas contrárias’ é geralmente atribuída a Mao Tse-Tung, mas com notável influência das artes marciais chinesas, do jogo de tabuleiro “Go” e do livro A arte da guerra[1].

Essa estratégia é composta por três princípios: 1) tenha e mantenha a iniciativa; 2) ataque se defendendo e se defenda atacando; e 3) ataque apenas os pontos fracos do inimigo e defenda apenas seus pontos fortes (ou nunca ataque os pontos fortes do inimigo e nunca defenda seus pontos fracos).

Alguns comentaristas unem esses dois princípios em um: ataque sempre os pontos fracos adversários, defenda apenas os seus pontos fortes. A ideia é (através da repetição alternada desses movimentos) forçar o inimigo a defender seus pontos fracos (que atacamos para nos defender) e induzir os adversários a atacarem nossos pontos fortes (que defendemos sempre como movimento de ataque). Essa manobra força o inimigo a sair de sua área de conforto e entrar em nosso campo, permitindo encurralá-lo.

A estratégia foi criada para a guerrilha territorial, mas pode também ser aplicada a um debate ideológico. Imagine uma pessoa de esquerda (ponto forte: programas sociais; ponto fraco: estado ineficiente e corrupto) debatendo com uma de direita (ponto forte: liberdade individual; ponto fraco: desigualdade). O esquerdista ataca defendendo os programas sociais e se defende atacando o mercado. O direitista ataca o estado e defende o livre comércio. Caso o esquerdista defenda o Estado e clame pela regulamentação da liberdade econômica, vai estar caindo no campo de argumentação da direita. Porém, se ele insistir na defesa dos trabalhadores e atacar as injustiças sociais poderá acontecer o inverso. Caso o direitista ataque os programas sociais e defenda diretamente o capitalismo estará caindo no campo discursivo de esquerda.

É claro que a estratégia só funciona graças ao primeiro princípio (tenha e mantenha a iniciativa) e a capacidade de estar sempre um passo à frente do inimigo no planejamento das ações, fazendo planos dentro de planos contrários, armadilhas dentro de armadilhas, atraindo o adversário para seu campo até cerca-lo.

Aplicado ao conflito colonial, essa estratégia implica em que os colonizados ‘joguem’ juntos contra o colonizador. Lenin tinha um planejamento estratégico baseado em uma dupla dialética entre a luta de classes e a luta contra o imperialismo. Porém, considerava a contradição interna principal. 

Já Mao Tse-Tung inovou considerando o imperialismo (o capitalismo internacional) como seu inimigo principal secundarizando o conflito interno. Além disso, utilizou vários elementos simbólicos da cultura chinesa tradicional: adotou a ideia de cerco do popular jogo tradicional ‘Go’; adicionou as táticas de ‘guerra de movimento’ x ‘guerra de posição’, elaboradas na Arte da Guerra; e aproximou a dialética marxista da alternância de movimentos defesa e ataque (representados pela mandala do ying e yang) do Tai-Chi e do Kung-fu. 

Reza a lenda que Vietnam, Nicarágua e o PC do B na guerrilha do Araguaia no Brasil utilizaram esse modelo de “cerco chinês”, baseado na “alternância repetida de operações contrárias” em seus movimentos, mas, a verdade é que não existe uma explicação completa dessa teoria, nem nos manuais de guerrilha rural do passado, nem no campo da guerrilha cultural da globalização contemporânea.



[1] TZU, Sun. 2007.


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

AS FLECHAS DE KRENAK

 


AS FLECHAS DE KRENAK

                                                                                                 Marcelo Bolshaw Gomes[1]

 

 

1.      INTRODUÇÃO

Flechas Selvagens é uma série de sete vídeos de animações curtos, idealizados s por Ailton Krenak. Ailton é considerado uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, possuindo reconhecimento internacional. Ailton é da etnia indígena krenak e escreveu vários livros[2], é membro da Academia Brasileira de Letras e professor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2016) e pela Universidade de Brasília (2021). Participou também de vários documentários importantes, dos quais destaco: a série documental Índios no Brasil[3]; o documentário Kopenawa: Sonhar a Terra-Floresta[4]; e a série documental Guerras do Brasil[5].

A série Flechas faz parte de uma projeto maior Selvagem - ciclo de estudos sobre a vida[6] - cujo o objetivo, segundo Krenak, é “retardar o fim do mundo”.

Somos parte da biosfera e cultivamos o entendimento da vida como uma rede de interligações. No Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida, desde 2018 oferecemos percursos de estudo por diversos temas a partir do diálogo entre saberes indígenas, científicos, filosóficos e de outras espécies. Os estudos se desdobram em cadernos, audiovisuais, oficinas, conversas e exposições, sempre de forma gratuita para o público. Nossas ações se direcionam para apoiar uma rede de Escolas Vivas, centros indígenas de transmissão de conhecimentos tradicionais, garantindo o repasse de 8 mil reais mensais a cada Escola e criando ações em conjunto. Todo esse movimento procura contribuir para outros caminhos de educação, imaginando posturas regenerativas e não destrutivas de estar no mundo.

O projeto Selvagem é um mosaico de aprendizagens, práticas e percursos que articula memórias e saberes indígenas e não indígenas, tradicionais, científicos, acadêmicos, artísticos, rodas de conversas, publicação de cadernos e livros, ciclos de leituras e conteúdos audiovisuais (conversas online, vídeos e bate-papos). No Youtube[7], o projeto disponibiliza vários outras séries de vídeos: Memórias Ancestrais, a série Nhe'ery (com Carlos Papá e Cris Takuá), o ciclo do Sol, Ciclo dos Sonhos (com Sidarta Ribeiro), Ciclo Jeremy Narby, parte do ciclo Mulheres, Plantas e Cura, entre outros.

Bem vistas a complexidade do projeto Selvagem e suas muitas possibilidades analíticas, o objetivo específico desse artigo é extrair o conteúdo simbólico-conceitual da série audiovisual das Flechas – o que nem de longe esgota as possibilidades de outros estudos sobre outras séries e propostas, ou mesmo a necessidade de uma futura pesquisa sobre o conjunto do projeto Selvagem.

 

2.      METODOLOGIA

A hermenêutica, entendida como teoria geral da interpretação, vem conquistando o lugar de disciplina analítica-compreensiva mais abrangente do conhecimento. A epistemologia, por exemplo, trata apenas das regras da produção científica, sendo inoperante diante da arte, da religião e da política.

Originada da tradução de textos sagrados (Talmude, Bíblia e Corão), a hermenêutica já tinha seu valor reconhecido no campo do Direito e da Filologia. Friedrich Schleiermacher, Wilhelm Dilthey e Hans Georg Gadamer contribuíram, de diferentes formas em diferentes áreas, para que a intenção (de quem fala) se tornasse objeto de investigação (GOMES,1996).

No século XX, a hermenêutica incorporou a psicanálise, o estruturalismo e os estudos narrativos, sendo aplicada aos sonhos, aos contos de fada, à atividade poética, e aos discursos simbólicos em geral (RICOUER, 1988, 1999, 2000). Nesse segundo momento, o estudo da intenção de quem fala foi aperfeiçoado pela assimilação e adaptação dos estudos da psicologia e da linguística, mas a hermenêutica permaneceu muito literária, limitada à análise de textos e discursos.

Porém, só agora recentemente, a hermenêutica chegou à interpretação da imagem em sua diferentes concepções (DURAND, 1997), ao discurso audiovisual da mídia (THOMPSON, 1998) e ao estudo dos comportamentos e ações interculturais (GEERZT, 2008). Não se trata mais de analisar apenas os contextos interlocutores ou suas linguagens, mas sim de compreender a subjetividade em suas práticas formativas ou “como se interpreta isso”.

De acordo com esse desenvolvimento uma análise hermenêutica completa deve sempre levar em conta os três aspectos interdisciplinares cumulativos: a intenção de quem diz (a sociologia, a história, a antropologia); a forma que é dita (a linguística, a semiótica, a análise do discurso); e como é entendida (a psicologia social e cognitiva, a pedagogia do aprendizado). E, para tanto, a hermenêutica assimila e reconstruí vários métodos e técnicas analíticas menores conforme seus objetos.

TABELA 1 – Método tríplice da Hermenêutica

 

TRANSMISSÃO

LINGUAGEM

RECEPÇÃO

OBJETO

Significado

Significante

Sentido

MÉTODO

Ciências Sociais

Linguística e Semiótica

Psicologia Social e Cognitiva

SUJEITO

O que quis dizer

O que foi dito

Como foi compreendido

FONTE: ELABORADO PELO AUTOR

O projeto Selvagem conta com vídeos sobre as Escola Vivas[8], locais em que os vídeos das Flechas foram apresentados e problematizados – o que é uma forma de estudo de recepção agregada. No entanto, aqui nesse artigo analisamos apenas As Flechas, desenvolvendo apenas as duas primeiras etapas do método hermenêutico (O que é dito e Como), deixando a terceira fase (Como foi aprendido) para uma futura pesquisa mais abrangente.

Também é preciso lembrar, do ponto de vista metodológico, que a noção de “Pensamento Selvagem” é um livro e uma categoria de Lévi-Strauss (1976), oposta ao “Pensamento Civilizado”, utilizada para validar os saberes tradicionais diante do conhecimento científico.

É oposta, mas ...

(...) o “pensamento selvagem” não é o pensamento dos “selvagens” ou dos “primitivos” (em oposição ao “pensamento ocidental”), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o pensamento humano em seu livre exercício, um exercício ainda não-domesticado em vista da obtenção de um rendimento (Viveiros de Castro, 2011, 3).

Assim, o pensamento selvagem não se opõe ao pensamento científico como duas formas ou duas lógicas mutuamente exclusivas. Sua relação é, antes, uma relação entre gênero (o pensamento selvagem) e espécie (o pensamento científico). Ambas as formas de pensamento se utilizam dos mesmos recursos cognitivos; o que as distingue é, diz Lévi-Strauss, o nível do real ao qual eles se aplicam: o nível das propriedades sensíveis (caso do pensamento selvagem) e o nível das propriedades abstratas (caso do pensamento científico, domesticado pela razão).

Então, não se trata de decifra símbolos e metáforas. Por exemplo: a flecha NÃO representa o pensamento. A imagem do objeto não é um conceito disfarçado ou um enunciado poético. Não se trata de buscar equivalências racionais para imagens e expressões estranhas. Essa forma de traduzir o pensamento selvagem é totalmente redutora e em nada valoriza ou equipara os saberes antigos ao conhecimento atual. Não queremos explicar as ideias nativas dos vídeos, mas sim compreende-las à luz de outras linguagens. Poderíamos dizer que a flecha se assemelha uma cápsula do tempo.

O objetivo principal de nossa leitura não é apenas demonstrar que o pensamento selvagem equivale ao conhecimento científico e que todos os saberes convergem em relação à vida e ao controle de suas condições; mas, sobretudo, que a linguagem da arte é capaz de ampliar a percepção da realidade através de uma rede de conceitos integrados. Nossa hipótese é que As Flechas são um mapa estético de assuntos filosóficos conexos, uma teia de ideias ainda em processo, formando uma concepção de mundo ou cosmovisão.

 

3.      ANÁLISE

A série audiovisual Flechas é formada por sete animações curtas, de cerca de dez minutos em média, e está disponível no Youtube[9], é acompanhada de cadernos com informações complementares, propostas de atividades e dinâmicas para a utilização do material em grupos e escolas. O projeto foi inspirada em um sonho de Ailton Krenak e foi desenvolvido por uma equipe de profissionais com apoios institucionais e colaboradores voluntários[10].

O material iconográfico e audiovisual é estruturado, em cada documentário, por uma narração principal em off, adensada por participações especiais de elenco convidado em leituras de trechos literários e científicos relevantes, enriquecido por trilha sonora customizada.

A combinação entre o texto poético dos mitos indígenas com a pesquisa de imagem iconográficas e a trilha sonora produzem uma experiência cognitiva, um efeito de sentido onírico, como se a flecha fosse um sonho. A mensagem é o meio, o conteúdo é o design. No entanto, as relações entre os três elementos da linguagem não são simbólicas ou figurativas (como nos sonhos) mas alegóricas e icônicas, tentando transmitir toda uma forma de pensar, e não conteúdos mentais e informações vestidas de linguagem nativa.

A primeira flecha, A Serpente e a Canoa[11], por exemplo, viaja por teorias científicas contemporâneas e memórias das culturas ancestrais. O fio condutor deste episódio costura duas narrativas: a da canoa cobra, memória originária de povos nativos, e a serpente cósmica, presente em mitos de origem de diferentes culturas, vista como a dupla hélice do DNA, código de memória presente em tudo que é vivo. A viagem percorre uma sequência que entrelaça saberes indígenas e hipóteses científicas sobre o surgimento da Vida.  

A Flecha é baseada principalmente nos livros: Antes o mundo não existia, de Firmiano Arantes Lana e Luiz Gomes Lana (2019); e A Serpente cósmica, o DNA e a origem do saber, de Jeremy Narby (2018). O vídeo começa com a narração do mito de origem do povo Desana:

Depois o Deus da Terra subiu à superfície da terra para formar a humanidade. Levantou-se num grande lago chamado “Lago de Leite”, que deve ser o Oceano. Enquanto ele vinha subindo, o Terceiro Trovão desceu nesse grande lago na forma de uma jiboia gigantesca. A cabeça da cobra se parecia com a proa de uma canoa, era a “Canoa de Transformação”, a canoa cobra.

Há também um levantamento bem completo sobre o símbolo da serpente em diferentes mitologias – não apenas em culturas nativas, mas entre os Incas, os Maias e até nas religiões semíticas. E sempre associado às origens e às águas – o que aponta para uma universalidade do símbolo em várias narrativas.

Um exemplo de interpretação arbitrária e etnocêntrica do mito é entender a serpente-canoa como sendo um disco voador. Por que não estou surpreso dos colonizadores imaginarem nossa origem como um processo de colonização alienígena! Porém, a própria Flecha associa o mito da cobra-canoa a panspermia, teoria que defende que a vida na Terra surgiu a partir de seres vivos ou substâncias precursoras da vida vindos de outros locais do Universo.

A serpente-canoa é meteoro e seus tripulantes, os homens-peixes, são bactérias consumidoras de carbono? O mito nos faz pensar: não há uma única resposta certa, todas são interpretações parciais.

Outra imagem marcante dessa Flecha é a imagem de um homem formado por minúsculas borboletas luminosas. As borboletas seriam uma representação das duplas hélices do DNA. “A distância que separa a biologia molecular do xamanismo e da mitologia é, na verdade, uma ilusão de ótica gerada justamente por esse olhar que aprioristicamente separa as coisas.”, diz Jeremy Narby, na p. 04 do caderno 1.

Incontáveis serpentes duplas estão dentro de cada ser vivo, imersas no ambiente líquido de cada célula. A água dentro de cada célula tem a mesma composição da água do mar. Duas serpentes luminescentes dançam numa porção de água do mar e viajam desde o princípio dos tempos por dentro de nossos corpos. A vida é transformação. O futuro é ancestral.

A segunda Flecha, O Sol e a Flor[12], é uma síntese das ideias exploradas em outros vídeos do Projeto Selvagem[13]) e nos livros Biosfera (de Vladimir Vernadsky) e A Queda do Céu, palavras de um xamã yanomami (de Davi Kopenawa e Bruce Albert). É uma narrativa sobre a interação do sol com a matéria verde, que transforma a Terra em um superorganismo vivo, no qual tudo está absolutamente relacionado, das cianobactérias ao ozônio. A Flecha celebra a fotossíntese que se apresenta como chave de manutenção do equilíbrio dinâmico e da regulação da biosfera, entre a radiação solar e o mundo verde. As plantas fazem o mundo. É delas que a vida se origina diariamente.

A Terra não é uma rocha onde há vida. A Terra é viva, e tudo aqui é uma manifestação do Sol. (...) Dois bilhões e meio de anos atrás, a Terra começou a ficar azul. O azul vem da dispersão da luz pelos átomos de oxigênio. O oxigênio trazido por cianobactérias que se tornariam depois as partes verdes das plantas. Elas encontraram uma maneira de usar a luz do sol para quebrar as ligações de hidrogênio da água, espalharam-se como um fogo verde vivo, liberando oxigênio para a atmosfera. Graças a eles – e a imensa rede de fungos que envolve o mundo todo – a floresta é um processo contínuo de transformação.

“A Terra não pertence aos humanos. Os humanos pertencem à terra” (chefe Seattle). A biosfera é uma crosta feita de carbono na qual vivem plantas e bichos. A vida nasce das trocas químicas entre o sol e a água através das plantas. Os homens deveriam ser os jardineiros dessa fotossíntese. Mas, por algum motivo, se tornaram uma praga.

No entanto, esse “pluriversalismo” selvagem do conhecimento originário e tradicional é atacado pelo “sistema monocultural”. A teoria de Gaia é contraposta à queda do céu profetizada pelos xamãs: a destruição da biosfera fará com que a atmosfera perca seu elemento azul, o oxigênio, se tornando ácida e inflamável.

Com base nesse cenário inicial posto pelas duas primeiras flechas, a chegada da vida na Terra e o desdobramento da energia solar em vida, a terceira flecha mergulha no movimento da força vital através dos tempos, dos territórios, dos elementos e dos corpos. A terceira flecha aponta para mudança permanente e se chama Metamorfose.[14]

Um canal de transformação que leva vida de uma forma a outra. Uma mesma vida conecta vários mundos. No entrelace das partículas que atravessam vidas e corpos, somos quimeras, seres multiespécies.

A Flecha Metamorfose reúne conhecimentos dos povos Tukano e conta com a participação de João Paulo Lima Barreto, autor das obras Waimahsã: Peixes e Humanos e Kumuã na kahtiroti-ukuse, além da narração inicial de Daiara Tukano. A terceira Flecha Selvagem combina a filosofia de Emanuele Coccia com ensinamentos Huni Kuï contidos na expressão Shuku Shukuwe, “a vida é para sempre”. A coexistência da eternidade com impermanência nos coloca novas questões: as plantas, o invisível e o tempo. Cada um desses temas é discutido em uma flecha.

A quarta flecha, A Selva e a Seiva[15] acompanha o percurso da luz à seiva elaborada, seu poder de visão e cura. Todas as plantas são sagradas, mas as plantas professoras são aquelas que conhecem o caminho da luz do sol, aquelas que abrem a percepção da realidade cósmica da vida. A energia da vida vem do Sol e é tragada pelos seres fotossintéticos, algumas bactérias, algas e plantas.

Curiosamente, a flecha não fala da conhecida tese dos irmãos McKenna (1993; 1995; 1996; 1994), de que as plantas mestras, sobretudo a ayahuasca, são uma tentativa do reino vegetal para domesticar a (auto) destrutividade humana (pessoal e ambiental) e harmonizar o ser humano em relação à biosfera.

A quinta flecha, Uma flecha invisível[16], traça sua trajetória rumo às camadas da vida que humanos não enxergam: o microcosmos. Esse “lugar” se faz presente na realidade, como uma estrutura interna que sustenta tudo que é vivo. Ele molda o mundo visível, o desenha, mas não o vemos. E tudo que vemos é uma expressão desse invisível. Ativada pelo sol, a vida se desenrola no invisível formando sua teia selvagem.

“Tudo que vemos é uma expressão do invisível.” Concerne a um estado de grandeza física mensurável em escala infinitesimal; e, conjuntamente, considera a condição invisível da presença de outras dimensões, espirituais, paralelas e agenciadoras da vida no planeta.

A quinta Flecha também dialoga com as demais. Em A serpente e a canoa, mergulhamos na galáxia oculta a olho nu. O sol e a flor tem como essência a atividade de seres fotossintéticos, como as cianobactérias. Metamorfose proporciona a visão do papel fundamental dos seres invisíveis para a permanência da vida na Terra e sua transformação contínua. A selva e a seiva revela a sabedoria contida no belo sistema de regulação da vida[17]. Todas as flechas dialogam entre si. Aos poucos e de forma cumulativa, forma-se uma rede de conceitos que se apoiam e completam. As flechas apontam alvos, focos, pontos de aglutinação, compondo uma teia imaginária.

A sexta flecha, Tempo e Amor[18] atravessa todas as outras flechas, enfatizando o tema do tempo do ponto de vista da física teórica. Várias flechas dialogam com diferentes áreas do saber: a Metamorfose estuda a bioquímica da vida; a Seiva e a Selva trabalha com etnobotânica; e a Flecha Invisível conversa com a microbiologia genética. A sexta flecha trabalha com a perspectiva relativista de tempo simultâneo (Einstein) e com a entropia, o colapso gradativo do universo[19]. Enquanto o universo se expande, o amor aglutina. Enquanto se expande, ele esfria e caminha em direção a sua dissipação, a sua própria morte.

A segunda lei da termodinâmica é a única lei geral da física que distingue passado e futuro. Como uma flecha do tempo, o calor passa somente de corpos quentes a frios, nunca ao contrário. Se nada é provocado externamente, um corpo frio não se torna quente. Esse fluxo natural de dissipação dança com outro: o fluxo biológico da vida, que aglutina e envolve Gaia numa metamorfose contínua.

O fluxo biológico, o metabolismo da Terra, é amor que reelabora os elementos e mantém o pulsar coletivo. Através da experiência de trançar compreensões científicas, artísticas e tradicionais, esta Flecha fala de entropia e sintropia, sem mencionar estas palavras. (...)

Talvez seja uma Flecha sobre o feitiço que dissociou humanos dos ciclos naturais. Ela foi inspirada pela beleza das relações colaborativas que são feitas no tempo e no espaço, como plantar uma árvore que um dia será a canoa de alguém futuro. A consciência de que habitamos com gratidão o mesmo jardim planetário.

A sétima Flecha, A Fera e a Esfera[20], a última da série de audiovisuais é um manifesto Selvagem – demanda, reclamação, reivindicação, súplica – para que, enfim, seja evidente que integramos um sistema vivo maravilhoso e que o destruir, por cegueira e ganância, é suicídio coletivo provocado por alguns humanos. É fundamental a transformação cognitiva do desejo capitalista de como estar no mundo e a permissão para que a floresta se reinfiltre em nossos sentidos.

Esta flecha “caiu” em Londres, no Barbican Centre, incorporada à exposição Our time on Earth. O devir da Flecha é a ferida. Esta Flecha cruza o oceano Atlântico, no caminho inverso ao da expansão marítima europeia, com o destino de tocar corações civilizados e buscar a inversão da lógica colonialista, reproduzida até hoje pelo fluxo consumidor que devora o planeta e transforma tudo em mercadoria, citando Davi Kopenawa.

A flecha em sua dimensão política é uma arma. Seu “Devir é uma ferida” de um animal caçado ou de um inimigo. Aqui descobrimos que o contexto das Flechas é uma guerra de interpretação sobre o mundo, em que a ciência quer assimilar os saberes e que o conhecimento ancestral se apropria e integra os saberes científicos. A flecha é um esforço para dar a última palavra sobre si mesmo, sobre a própria cultura, sobre a realidade planetária contra o discurso etnocêntrico e colonialista.

Que chova flechas selvagens sobre o céu dos domesticados! Que as flechas adiem a queda dos céus e o fim do mundo!

 

4.      RESULTADO

Arjuna recebeu de Krishna a seguinte instrução: o guerreiro tem três flechas. A primeira já foi lançada. É o passado. A terceira está guardada e é o futuro. A segunda flecha é o presente e está no arco pronta para ser disparada.

Se o arqueiro lança a flecha do presente na mesma direção da flecha passada, então, haverá KARMA, uma ação do passado sobre o presente determinando o Destino. Porém, se o arqueiro aponta a flecha para uma direção diferente da flecha já lançada, então haverá DHARMA, uma ação em que o Destino é imprevisível.

O Karma é Dívida, cobrada através da família; o Dharma é a Dádiva, expressa através do trabalho. Se o homem repete seu passado, vive eternamente em dívida. Mas, se o homem trabalha um futuro melhor para todos, então, ele é o senhor do seu destino.

Aqui se descreveu e interpretou a série de sete vídeos Flechas de Ailton Krenak e equipe. O estudo chegou à conclusão de que o ideia de “Flecha”, aparentemente utilizada como metáfora de pensamento, é uma das contribuições mais importantes do trabalho, mesmo sem ser evidente.            Essa ideia se aproxima da noção de arte anterior à reprodutividade técnica e à indústria cultural. A ‘arte primitiva’ representava o invisível e a arte ocidental, o visível. As flechas são ‘sonhos artificiais’, fluxos de sons, imagens e palavras que mimetizam o onírico e dialogam com o científico.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CASTRO, Eduardo Viveiros. O pensamento em estado selvagem do pensamento científico Com Ciência 46 Jan. 2011

DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

GEERTZ, Clifford. (1926) A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GOMES, M. B. O Hermeneuta - Uma Introdução ao Estudo de Si. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Natal: UFRN, 1996.

LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem SP, Ed. Nacional, 1976

MCKENNA, T. - Alucinações Reais Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1993.

_____ Alimento dos Deuses Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1995.

_____ Retorno à cultura arcaica Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1996.

_____ (com Ralph Abraham e Rupert Sheldrake) Caos, Criatividade e o retorno do Sagrado - triálogos nas fronteiras do Ocidente São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1994.

RICOEUR, Paul. O Conflito das Interpretações, ensaios de hermenêutica. Lisboa: Rés Editora, 1988.

______________ Teoria da Interpretação. Lisboa: Edições 70, 1999.

 ______________ A Metáfora Viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade – uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.



[1] Professor Titular do Departamento de Comunicação Social da UFRN, doutor em Ciências Sociais. E-mail: <marcelo.bolshaw@ufrn.br> ORCID: <https://orcid.org/0000-0002-8227-3672>

[2] Publicações: O lugar onde a terra descansa, 2000; Ailton Krenak (Encontros). Organização de Sergio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue, 2015; Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019; O Amanhã Não está à Venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020; A Vida Não é Útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020; Firmando o pé no território, 2020; Lugares de Origem, com Yussef Campos. Editora Jandaíra, 2021; O sistema e o antissistema: três ensaios, três mundos no mesmo mundo, 2021; Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022; Kuján e os Meninos Sabidos. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2024. 

[9] < https:// selvagemciclo.org.br/flecha/ >

[10] Os textos, pesquisa de imagens e direção são de Anna Dantes e a produção de Madeleine Deschamps. Edição: Elisa Mendes; Animações: Livia Serri Francoio; Trilha sonora: Lucas Santtana e Gil Monte; Assistentes de produção: Victoria Moawad, Laís Furtado e Isabelle Passos. Todos episódios são narrados por Ailton Krenak.

[17] Além disso, a quinta flecha é baseada nos livros e Cadernos Selvagem: Livro de Seres Invisíveis, Dorion Sagan (Dantes, 2021); Seres criativos da floresta, Cristine Takuá (Cadernos Selvagem, 2020); Propriocepção, quando o ambiente se torna o corpo, Lynn Margulis, Dorion Sagan, Ricardo Guerrero e Luis Rico (Cadernos Selvagem, 2020); Carta do chefe Seattle comentada por Ailton Krenak (Caderno Selvagem, 2021); A Queda do Céu, palavras de um xamã yanomami, Davi Kopenawa e Bruce Albert (Cia das Letras, 2015).

[19] Baseada em: Regenerantes de Gaia, Fabio Scarano (2019); A ordem do tempo, Carlo Rovelli (2018).