CARTOGRAFIA DAS LÁGRIMAS
Marcelo Bolshaw Gomes
Resumo: Quais são os elementos simbólicos e narrativos que definem o dorama asiático, principalmente o melodrama coreano? O objetivo deste texto é explorar, através de uma pesquisa documental qualitativa, como aplicar as ferramentas e modelos dos estudos narrativos a esse conjunto de séries audiovisuais. O resultado é uma breve cartografia do estilo e de seus subgéneros segundo seus elementos narrativos principais.
Palavras_chave: Estudos Narrativos1; Séries audiovisuais2; Melodrama coreano3;
Introdução
Definir o Dorama como forma narrativa esbarra em uma série de problemas conceituais e de classificação. ‘Dorama’ é um termo genérico de narrativa audiovisual seriada asiática. Há variações culturais: j-drama é japonês, c-drama é chinês e o K-drama, coreano. E esses tipos nacionais de dorama espelham as diferenças culturais entre esses países. Os K-dramas costuma ter final inconcluso e “agridoce”, semelhantes à vida que nunca se encerra; os J-dramas têm finais trágicos e “amargos”, duros e irreversíveis como a vida é - contrastando com os melodramas ocidentais (novelas mexicanas e brasileiras) de ‘happy end’. Ou seja: ao mesmo tempo que as produções audiovisuais asiáticas contemporâneas tem características em comum frente a outras narrativas seriadas, elas também têm diferenças culturais significativas entre si, impercetíveis para o público ocidental.
Além das diferenças culturais em relação ao conteúdo, há também diferentes contextos de produção: os c-dramas são novelas de mais de 40 capítulos feitos para o público interno da China; os j-dramas geralmente são mini-séries de 8 a 12 partes; os k-dramas normalmente são seriados de 16 episódio - ambos voltados para um público global apesar do foco local.
O melodrama ocidental têm personagens arquetípicos: o herói, o vilão e a vítima; enquanto o dorama deseja desconstruir essa relação. O protagonismo é coletivo e o vilão é o destino do qual todos somos vítimas. O antagonista é a fatalidade, ou “han”, uma emoção cultural coreana que reflete tristeza, ressentimento e sofrimento acumulado. O tratamento dado aos personagens é mais complexo e realista, eles não são ‘actantes’ fixos, encarnando ‘funções narrativas’, são quase-pessoas com qualidades e defeitos.
Outra característica muito comum e conhecida dos doramas é a inversão da depreciação de género, uma perspectiva anti-misógena sem ser explicitamente feminista. Nos filmes do passado, principalmente nos de Hollywood, as mulheres eram desqualificadas como ‘tontas’ e incapazes. No K-drama ou melodrama coreano acontece o contrário: os homens têm suas falhas de caráter expostas e as mulheres são representadas com personalidades fortes e bem sucedidas.
Também é importante ressaltar que, do ponto de vista contextual, o K-drama faz parte da “la Hallyu’ (a onda coreana), uma expansão comercial da cultura sul coreana baseada em quatro pilares: culinária, música pop, séries audiovisuais e cosméticos. Essas quatro indústrias interagem entre si, dentro e fora das telas, com várias simbioses e intercessões.
Após uma pesquisa exploratória de meses, identificamos quatro elementos simbólicos-narrativos nas séries audiovisuais do K-drama: o conteúdo temático multi-género; o foco e a invisibilidade; o protagonismo coletivo; e a adversidade como antagonista. Há também pelo menos duas características secundárias importantes: o roteiro alternando contemplação e ação; e trilha de áudio como forma de imersão emocional na narrativa.
Vejamos agora cada uma dessas características.
1. Conteúdo temático multi género
No ocidente chamamos de ‘narrativa de vingança’ às histórias em que o personagem principal sofre uma injustiça e retorna para se vingar - como no romance do Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Nos doramas, no entanto, uma narrativa de vingança é uma história que discute a vingança (o “olho por olho, dente por dente”) como um tema, vendo como vários personagens lidam com ela, quando a vingança é legítima e quando não, etc - como nas séries The Glory (2022) e Revenge of Others (2022).
O dorama é sempre ‘sobre algo’, com um tema específico, com historias de amor trágicas, conflitos familiares, segredos de nascimento, enfermidades terminais e dilemas morais. Pode-se inclusive pensar uma classificação dos melodramas coreanos por tema.
Tabela 1 - Classificação de melodramas coreanos por tema
TIPO | ELEMENTO PRINCIPAL |
Romántico | Género que prioriza a jornada do casal em um mundo repleto de adversidades, |
Familiar | Com ênfase nas relações familiares entre pais e filhos, mães, irmãs e em personagens órfãos. |
Makjang | Género misto com a comédia popular, com heróis virtuosos versus vilões malvados; tramas exageradas, viradas dramáticas e situações de alto impacto emocional. Passam na TV de sinal aberto todos os dias, com atores menos conhecidos. |
Melodrama Sageuk | Género romântico misto com filmes históricos, podendo ter elementos de viagens no tempo e mudanças de corpos entre os personagens. |
Melodrama Médico | Género que combina romances com mortes e perdas clínicas em ambientes hospitalares. Vários tem ‘easter eggs’ sobre doenças e cirurgias ultra-realistas. |
Melodrama de Venganza | Género que enfatiza a luta entre os personagens e se combina com outros elementos |
Fonte: elaborado pelo autor com ajuda de IA
Existe uma característica que atravessa todos temas e géneros: é a redenção. Muitas histórias têm dois enredos: um no passado (que vai sendo conhecido através de ‘feedbacks’ progressivos) e outro no presente (em que a história principal se desenvolve). Há (quase) sempre segredos esquecidos e um ‘karma’ no passado que explica e justifica a linha do tempo do enredo imediato.
2. Focos e invisibilidades
Muitos atribuem o sucesso do melodrama coreano a falta de cenas de sexo em sua narrativa romântica. É verdade que, principalmente após os anos 60 com a contra-cultura, as narrativas tornaram-se mais eróticas e sexuais. E também que as novas gerações, em resposta a essa saturação pornográfica provocada pela libertação de séculos de repressão, preferem as narrativas românticas que enfatizam a afetividade e os sentimentos. Mas, essa é apenas uma parte da verdade. A ênfase na afetividade tem um efeito de sentido terapêutico para mulheres e pedagógico para os homens através das inversões em relação aos modelos ideológicos de dominação de género. Mulheres fortes em posição de poder fazem par com homens inseguros e imaturos.
A comida é a grande estrela do audiovisual coreano. Está presente praticamente em todos os k-dramas, não apenas como parte do enredo, mas também como produto de marketing (pratos, receitas, cultura culinária) e até como merchandising (inserção comercial de marcas dentro da narrativa). A música pop coreana e a indústria de cosméticos também aparecem e financiam os k-dramas, mas o papel da comida com ênfase na cultura tradicional e em locais turísticos é de longe o elemento de visibilidade mais forte nas narrativas. As bebidas alcoólicas tradicionais - Soju (uma água ardente de batata doce) e Makgeolli (vinho de arroz) - são sempre consumidas alegremente sem censura (inclusive por personagens femininos de forma desmedida) em contextualizações positivas (ter coragem, superar limitações, falar a verdade) ou cómicas.
Particularmente não acho que os coreanos bebam menos que os brasileiros e imagino que os problemas decorrentes do consumo excessivo de bebidas alcoólicas seja o mesmo. Da mesmo forma, não acredito que os homens coreanos sejam menos machistas que os latinos. No entanto, a representação dessas questões nas narrativas audiovisuais não pretende retratar a realidade, mas intencionalmente modelá-la. Em nosso caso optamos por esconder não apenas o consumo de substâncias tóxicas como também nossa rica culinária; enquanto a narrativa melodramática coreana invisibiliza a sexualidade e ... a política.
A política é outra grande ausência no melodrama coreano. Aliás, embora as séries audiovisuais do sul não sejam assistidas na Coreia do Norte, é impossível deixar de imaginar que elas não são uma forma de propaganda ideológica de um estilo de vida híbrido entre o asiático e o ocidental. No entanto, esse ponto é completamente camuflado com o glamour e a afetividade. O K-drama Pousando no amor (ou Crash Landing On You) é um bom exemplo disso.
Mas enquanto dos doramas vendem o consumismo estilizado para os coreanos, os fãs da cultura coreana no Brasil e nos Estados Unidos são extremamente politizados, participando dos protestos do movimento Black Lives Matter e manifestações contra Donald Trump. No Brasil, fãs do BTS arrecadaram recursos para a proteção do Pantanal. Há diferenças entre as recepções e entre os públicos alvo dos doramas na semiosfera coreana e na semiosfera ocidental.
Os k-dramas, em sua origem, são produtos que nascem da intersecção de culturas. Se antes eles precisavam incorporar elementos ocidentais para atrair a atenção do próprio público local, agora também incidem sobre uma semiosfera de sentido que não se restringe à orientalidade. Essas trocas vão aparecer de maneira contínua e não somente com a ocidentalidade. Essas interações entre culturas e entre as formas de representação, condicionam o signo mulher a partir de uma única parte representável do objeto (OLIVEIRA, STEFENON; ABREU, 2021, 10) .
3. O protagonismo coletivo
Oliveira, Stefenon e Abreu (2021, 4) acreditam que a representação da mulher preserva matrizes de uma determinada tradição asiática conservadora e reforça a divisão entre os géneros. No entanto, apesar dos elementos machistas tradicionais (mesclado com o marketing capitalista) para o público interno coreano, há também vários elementos progressistas para as jovens ocidentais de classe média alta dos países consumidores das culturas asiáticas.
Uma forma simples de definir o protagonismo feminino na jornada do herói é a mudança do antagonista: nas histórias patriarcais o inimigo é a natureza (e suas metáforas); na jornada feminina, o inimigo é a sociedade distópica e machista, a máquina e a razão sem sentimentos. De modo, que homens e mulheres podem ser protagonistas das duas jornadas, cuja a diferença estrutural seria inimigo-contexto.
Greimas (1976) tem um modelo mais complexo, mas ainda incapaz de caraterizar a mudança de valores nas narrativas atuais. Para ele, as narrativas são compostas de quatro ‘actantes’ principais: o objeto de valor, o sujeito (que deseja o objeto), o anti-sujeito (que impede a realização do desejo do sujeito) e o narrador. Nesse modelo, a natureza do objeto de valor determina de que tipo a narrativa é.
Através da compreensão do objeto de valor de uma narrativa é que podemos entender não apenas quem são os sujeitos da disputa e quais suas dificuldades, mas também quem é que está nos contando essa história, ancorada em que valores e em com objetivos. A maioria dos triângulos amorosos das narrativa dos ocidentais são edipianos, formados por dois homens (o herói e o vilão) e uma mulher (disputada por ele), são uma replicação narrativa da tragédia de Tristão e Isolda. No melodrama coreano, porém, os vilões vão se humanizando no decorrer da narrativa e as falhas de caráter do herói vão aparecendo durante a trama. E o pior (ou o melhor): os dois se tornam amigos, tornando a escolha mais difícil.
A mulher, ao invés de vítima ou objeto de disputa, é colocada em uma posição de autonomia e decisão. Mas, não de protagonista única e solitária. No melodrama coreana, a narrativa não é uma jornada heroica épica como em Joseph Campbell (1990) nem uma história trágica clássica como em Aristóteles. É uma jornada coletiva: do casal, do grupo de amigos, da comunidade.
Todos são protagonistas! Todos têm seus conflitos para resolver. Mas, todos também são vítimas da entropia fatal que a todos derrota. Por isso, mesmo quando acaba bem, o K-drama é uma celebração das perdas. “A adversidade como antagonista” significa que os personagens, na verdade, lutam contra a irreversibilidade do tempo, contra a implacabilidade das coisas, contra a dureza da vida que segue.
Ao contrário da tragédia clássica, em que a catarse de expiação é ativada por uma antecipação constante do final inevitável, no melodrama coreana há viradas, surpresas, suspense. Os golpes do destino são inesperados. A catarse dorâmica é de redenção do passado e o final, uma espécie de balanço das derrotas sofridas e dos personagens sobreviventes.
Além dessa quatro características narrativas (o conteúdo temático multi-género; o foco e a invisibilidade; o protagonismo coletivo; e a adversidade como antagonista), existem ainda duas características semióticas marcantes: o roteiro alternando contemplação e ação; e trilha de áudio como imersão emocional na narrativa.
A influência do budismo e do confucionismo também pode ser observada, não apenas no conteúdo, mas na necessidade de oferecer uma narrativa mais contemplativa e menos ansiosa. Além de um ritmo de edição mais calmo, há inserção de clips musicais com cenas de alto impacto visuais (o primeiro dia da neve, o florescer das cerejeiras, o luar em um lago, etc). E não se trata apenas de músicas, toda trilha de áudio é artificialmente adicionada nas imagens e mixado ao som direto durante a pós-produção. Assim, a sonoplastia é altamente narrativa e mantém o telespectador emocionalmente ligado à história.
Referências
CAMPBELL, J. O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990.
GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1976.
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Tradução de Jasna Paravich Sarhan. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
OLIVEIRA, Felipe Moura de; STEFENON, Eduarda; ABREU, Júlia Ozorio de. O dorama como texto da cultura: a mulher nas séries sul-coreanas mais vistas entre janeiro e junho de 2020. Semeiosis - Semiótica e Transdisciplinaridade em revista. V.9 N2 2021.