AS FLECHAS
DE KRENAK
Marcelo
Bolshaw Gomes
1.
INTRODUÇÃO
Flechas Selvagens é uma série de sete vídeos de animações curtos, idealizados s por Ailton
Krenak. Ailton é considerado uma das maiores lideranças do movimento indígena
brasileiro, possuindo reconhecimento internacional. Ailton é da etnia indígena
krenak e escreveu vários livros,
é membro da Academia Brasileira de Letras e professor honoris causa pela
Universidade Federal de Juiz de Fora (2016) e pela Universidade de Brasília
(2021). Participou também de vários documentários importantes, dos quais
destaco: a série documental Índios no
Brasil;
o documentário Kopenawa: Sonhar a
Terra-Floresta;
e a série documental Guerras do Brasil.
A série Flechas faz parte de uma projeto maior Selvagem - ciclo de estudos sobre a vida - cujo o objetivo, segundo Krenak, é “retardar
o fim do mundo”.
Somos parte da
biosfera e cultivamos o entendimento da vida como uma rede de interligações. No
Selvagem, ciclo de estudos sobre a vida, desde 2018 oferecemos percursos de
estudo por diversos temas a partir do diálogo entre saberes indígenas, científicos,
filosóficos e de outras espécies. Os estudos se desdobram em cadernos,
audiovisuais, oficinas, conversas e exposições, sempre de forma gratuita para o
público. Nossas ações se direcionam para apoiar uma rede de Escolas Vivas,
centros indígenas de transmissão de conhecimentos tradicionais, garantindo o
repasse de 8 mil reais mensais a cada Escola e criando ações em conjunto. Todo
esse movimento procura contribuir para outros caminhos de educação, imaginando
posturas regenerativas e não destrutivas de estar no mundo.
O projeto
Selvagem é um mosaico de aprendizagens, práticas e percursos que articula
memórias e saberes indígenas e não indígenas, tradicionais, científicos,
acadêmicos, artísticos, rodas de conversas, publicação de cadernos e livros,
ciclos de leituras e conteúdos audiovisuais (conversas online, vídeos e
bate-papos). No Youtube,
o projeto disponibiliza vários outras séries de vídeos: Memórias Ancestrais, a
série Nhe'ery (com Carlos Papá e Cris Takuá), o ciclo do Sol, Ciclo dos Sonhos
(com Sidarta Ribeiro), Ciclo Jeremy Narby, parte do ciclo Mulheres, Plantas e
Cura, entre outros.
Bem vistas a complexidade do projeto Selvagem
e suas muitas possibilidades analíticas, o objetivo específico desse artigo é
extrair o conteúdo simbólico-conceitual da série audiovisual das Flechas – o que nem de longe esgota as
possibilidades de outros estudos sobre outras séries e propostas, ou mesmo a
necessidade de uma futura pesquisa sobre o conjunto do projeto Selvagem.
2.
METODOLOGIA
A hermenêutica, entendida como teoria
geral da interpretação, vem conquistando o lugar de disciplina analítica-compreensiva
mais abrangente do conhecimento. A epistemologia, por exemplo, trata apenas das
regras da produção científica, sendo inoperante diante da arte, da religião e
da política.
Originada da tradução de textos
sagrados (Talmude, Bíblia e Corão), a hermenêutica já tinha seu valor
reconhecido no campo do Direito e da Filologia. Friedrich Schleiermacher,
Wilhelm Dilthey e Hans Georg Gadamer contribuíram, de diferentes formas em
diferentes áreas, para que a intenção (de quem fala) se tornasse objeto de
investigação (GOMES,1996).
No século XX, a hermenêutica incorporou
a psicanálise, o estruturalismo e os estudos narrativos, sendo aplicada aos
sonhos, aos contos de fada, à atividade poética, e aos discursos simbólicos em
geral (RICOUER, 1988, 1999, 2000). Nesse segundo momento, o estudo da intenção
de quem fala foi aperfeiçoado pela assimilação e adaptação dos estudos da
psicologia e da linguística, mas a hermenêutica permaneceu muito literária, limitada
à análise de textos e discursos.
Porém, só agora recentemente, a
hermenêutica chegou à interpretação da imagem em sua diferentes concepções (DURAND,
1997), ao discurso audiovisual da mídia (THOMPSON, 1998) e ao estudo dos
comportamentos e ações interculturais (GEERZT, 2008). Não se trata mais de
analisar apenas os contextos interlocutores ou suas linguagens, mas sim de
compreender a subjetividade em suas práticas formativas ou “como se interpreta
isso”.
De acordo com esse desenvolvimento
uma análise hermenêutica completa deve sempre levar em conta os três aspectos
interdisciplinares cumulativos: a
intenção de quem diz (a sociologia, a história, a antropologia); a forma que é dita (a linguística, a
semiótica, a análise do discurso); e como é entendida (a psicologia social e
cognitiva, a pedagogia do aprendizado). E, para tanto, a hermenêutica assimila
e reconstruí vários métodos e técnicas analíticas menores conforme seus
objetos.
TABELA 1 – Método
tríplice da Hermenêutica
|
TRANSMISSÃO
|
LINGUAGEM
|
RECEPÇÃO
|
OBJETO
|
Significado
|
Significante
|
Sentido
|
MÉTODO
|
Ciências Sociais
|
Linguística e Semiótica
|
Psicologia Social e Cognitiva
|
SUJEITO
|
O que quis dizer
|
O que foi dito
|
Como foi compreendido
|
FONTE: ELABORADO
PELO AUTOR
O projeto Selvagem conta com vídeos
sobre as Escola Vivas,
locais em que os vídeos das Flechas foram apresentados e problematizados – o
que é uma forma de estudo de recepção agregada. No entanto, aqui nesse artigo
analisamos apenas As Flechas,
desenvolvendo apenas as duas primeiras etapas do método hermenêutico (O que é
dito e Como), deixando a terceira fase (Como foi aprendido) para uma futura
pesquisa mais abrangente.
Também é preciso lembrar, do ponto de
vista metodológico, que a noção de “Pensamento Selvagem” é um livro e uma
categoria de Lévi-Strauss (1976), oposta ao “Pensamento Civilizado”, utilizada
para validar os saberes tradicionais diante do conhecimento científico.
É oposta, mas ...
(...) o “pensamento
selvagem” não é o pensamento dos “selvagens” ou dos “primitivos” (em oposição
ao “pensamento ocidental”), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o
pensamento humano em seu livre exercício, um exercício ainda não-domesticado em
vista da obtenção de um rendimento (Viveiros de Castro, 2011, 3).
Assim, o pensamento selvagem não se opõe ao pensamento científico como
duas formas ou duas lógicas mutuamente exclusivas. Sua relação é, antes, uma
relação entre gênero (o pensamento selvagem) e espécie (o pensamento
científico). Ambas as formas de pensamento se utilizam dos mesmos recursos
cognitivos; o que as distingue é, diz Lévi-Strauss, o nível do real ao qual
eles se aplicam: o nível das propriedades sensíveis (caso do pensamento
selvagem) e o nível das propriedades abstratas (caso do pensamento científico,
domesticado pela razão).
Então, não se trata de decifra símbolos e metáforas. Por exemplo: a
flecha NÃO representa o pensamento. A imagem do objeto não é um conceito
disfarçado ou um enunciado poético. Não se trata de buscar equivalências
racionais para imagens e expressões estranhas. Essa forma de traduzir o
pensamento selvagem é totalmente redutora e em nada valoriza ou equipara os
saberes antigos ao conhecimento atual. Não queremos explicar as ideias nativas
dos vídeos, mas sim compreende-las à luz de outras linguagens. Poderíamos dizer
que a flecha se assemelha uma cápsula do tempo.
O objetivo principal de nossa leitura não é apenas demonstrar que o
pensamento selvagem equivale ao conhecimento científico e que todos os saberes
convergem em relação à vida e ao controle de suas condições; mas, sobretudo,
que a linguagem da arte é capaz de ampliar a percepção da realidade através de
uma rede de conceitos integrados. Nossa hipótese é que As Flechas são um
mapa estético de assuntos filosóficos conexos, uma teia de ideias ainda em
processo, formando uma concepção de mundo ou cosmovisão.
3.
ANÁLISE
A série audiovisual Flechas é formada por sete animações curtas,
de cerca de dez minutos em média, e está disponível no Youtube,
é acompanhada de cadernos com informações complementares, propostas de
atividades e dinâmicas para a utilização do material em grupos e escolas. O
projeto foi inspirada em um sonho de Ailton Krenak e foi desenvolvido por uma
equipe de profissionais com apoios institucionais e colaboradores voluntários.
O material iconográfico e audiovisual
é estruturado, em cada documentário, por uma narração principal em off, adensada
por participações especiais de elenco convidado em leituras de trechos
literários e científicos relevantes, enriquecido por trilha sonora customizada.
A combinação entre o texto poético
dos mitos indígenas com a pesquisa de imagem iconográficas e a trilha sonora
produzem uma experiência cognitiva, um efeito de sentido onírico, como se a
flecha fosse um sonho. A mensagem é o meio, o conteúdo é o design. No entanto,
as relações entre os três elementos da linguagem não são simbólicas ou
figurativas (como nos sonhos) mas alegóricas e icônicas, tentando transmitir
toda uma forma de pensar, e não conteúdos mentais e informações vestidas de
linguagem nativa.
A primeira flecha, A Serpente e a Canoa, por exemplo, viaja por teorias científicas
contemporâneas e memórias das culturas ancestrais. O fio condutor deste
episódio costura duas narrativas: a da canoa cobra, memória originária de povos
nativos, e a serpente cósmica, presente em mitos de origem de diferentes
culturas, vista como a dupla hélice do DNA, código de memória presente em tudo
que é vivo. A viagem percorre uma sequência que entrelaça saberes indígenas e
hipóteses científicas sobre o surgimento da Vida.
A Flecha é baseada principalmente nos livros: Antes o mundo não existia, de Firmiano
Arantes Lana e Luiz Gomes Lana (2019); e A
Serpente cósmica, o DNA e a origem do saber, de Jeremy Narby (2018). O vídeo começa com a narração do mito
de origem do povo Desana:
Depois o Deus da Terra
subiu à superfície da terra para formar a humanidade. Levantou-se num grande
lago chamado “Lago de Leite”, que deve ser o Oceano. Enquanto ele vinha
subindo, o Terceiro Trovão desceu nesse grande lago na forma de uma jiboia gigantesca.
A cabeça da cobra se parecia com a proa de uma canoa, era a “Canoa de
Transformação”, a canoa cobra.
Há também um levantamento bem
completo sobre o símbolo da serpente em diferentes mitologias – não apenas em
culturas nativas, mas entre os Incas, os Maias e até nas religiões semíticas. E
sempre associado às origens e às águas – o que aponta para uma universalidade
do símbolo em várias narrativas.
Um exemplo de interpretação
arbitrária e etnocêntrica do mito é entender a serpente-canoa como sendo um
disco voador. Por que não estou surpreso
dos colonizadores imaginarem nossa origem como um processo de colonização
alienígena! Porém, a própria Flecha associa o mito da cobra-canoa a panspermia, teoria que defende que a
vida na Terra surgiu a partir de seres vivos ou substâncias precursoras da vida
vindos de outros locais do Universo.
A serpente-canoa é meteoro e seus
tripulantes, os homens-peixes, são bactérias consumidoras de carbono? O mito
nos faz pensar: não há uma única resposta certa, todas são interpretações
parciais.
Outra imagem marcante dessa Flecha é
a imagem de um homem formado por minúsculas borboletas luminosas. As borboletas
seriam uma representação das duplas hélices do DNA. “A distância que separa a
biologia molecular do xamanismo e da mitologia é, na verdade, uma ilusão de
ótica gerada justamente por esse olhar que aprioristicamente separa as coisas.”,
diz Jeremy Narby, na p. 04 do caderno 1.
Incontáveis serpentes
duplas estão dentro de cada ser vivo, imersas no ambiente líquido de cada
célula. A água dentro de cada célula tem a mesma composição da água do mar.
Duas serpentes luminescentes dançam numa porção de água do mar e viajam desde o
princípio dos tempos por dentro de nossos corpos. A vida é transformação. O
futuro é ancestral.
A segunda Flecha, O Sol e a Flor[12], é uma síntese das ideias exploradas
em outros vídeos do Projeto Selvagem)
e nos livros Biosfera (de Vladimir
Vernadsky) e A Queda do Céu, palavras de
um xamã yanomami (de Davi Kopenawa e Bruce Albert). É uma narrativa sobre a
interação do sol com a matéria verde, que transforma a Terra em um
superorganismo vivo, no qual tudo está absolutamente relacionado, das
cianobactérias ao ozônio. A Flecha celebra a fotossíntese que se apresenta como
chave de manutenção do equilíbrio dinâmico e da regulação da biosfera, entre a
radiação solar e o mundo verde. As plantas fazem o mundo. É delas que a vida se
origina diariamente.
A Terra não é uma
rocha onde há vida. A Terra é viva, e tudo aqui é uma manifestação do Sol.
(...) Dois bilhões e meio de anos atrás, a Terra começou a ficar azul. O azul
vem da dispersão da luz pelos átomos de oxigênio. O oxigênio trazido por
cianobactérias que se tornariam depois as partes verdes das plantas. Elas
encontraram uma maneira de usar a luz do sol para quebrar as ligações de
hidrogênio da água, espalharam-se como um fogo verde vivo, liberando oxigênio
para a atmosfera. Graças a eles – e a imensa rede de fungos que envolve o mundo
todo – a floresta é um processo contínuo de transformação.
“A Terra não pertence aos humanos. Os
humanos pertencem à terra” (chefe Seattle). A biosfera é uma crosta feita de carbono na
qual vivem plantas e bichos. A vida nasce das trocas químicas entre o sol e a
água através das plantas. Os homens deveriam ser os jardineiros dessa
fotossíntese. Mas, por algum motivo, se tornaram uma praga.
No entanto, esse
“pluriversalismo” selvagem do conhecimento originário e tradicional é atacado
pelo “sistema monocultural”. A teoria de Gaia é contraposta à queda do céu
profetizada pelos xamãs: a destruição da biosfera fará com que a atmosfera
perca seu elemento azul, o oxigênio, se tornando ácida e inflamável.
Com base nesse cenário inicial posto pelas duas primeiras
flechas, a chegada da vida na
Terra e o desdobramento da energia solar em vida, a terceira flecha mergulha no
movimento da força vital através dos tempos, dos territórios, dos elementos e
dos corpos. A terceira flecha aponta para mudança permanente e se chama Metamorfose.[14]
Um canal de
transformação que leva vida de uma forma a outra. Uma mesma vida conecta vários
mundos. No entrelace das partículas que atravessam vidas e corpos, somos
quimeras, seres multiespécies.
A Flecha Metamorfose reúne
conhecimentos dos povos Tukano e conta com a participação de João Paulo Lima
Barreto, autor das obras Waimahsã: Peixes e Humanos e Kumuã na kahtiroti-ukuse,
além da narração inicial de Daiara Tukano. A terceira Flecha Selvagem combina a
filosofia de Emanuele Coccia com ensinamentos Huni Kuï contidos na expressão
Shuku Shukuwe, “a vida é para sempre”. A coexistência da eternidade com
impermanência nos coloca novas questões: as plantas, o invisível e o tempo.
Cada um desses temas é discutido em uma flecha.
A quarta flecha, A Selva e a Seiva[15] acompanha o percurso da luz à seiva
elaborada, seu poder de visão e cura. Todas as plantas são sagradas, mas as
plantas professoras são aquelas que conhecem o caminho da luz do sol, aquelas que
abrem a percepção da realidade cósmica da vida. A energia da vida vem do Sol e
é tragada pelos seres fotossintéticos, algumas bactérias, algas e plantas.
Curiosamente, a flecha não fala da
conhecida tese dos irmãos McKenna (1993; 1995; 1996; 1994), de que as plantas
mestras, sobretudo a ayahuasca, são uma tentativa do reino vegetal para
domesticar a (auto) destrutividade humana (pessoal e ambiental) e harmonizar o
ser humano em relação à biosfera.
A quinta flecha, Uma flecha invisível[16], traça sua trajetória rumo às
camadas da vida que humanos não enxergam: o microcosmos. Esse “lugar” se faz
presente na realidade, como uma estrutura interna que sustenta tudo que é vivo.
Ele molda o mundo visível, o desenha, mas não o vemos. E tudo que vemos é uma
expressão desse invisível. Ativada pelo sol, a vida se desenrola no invisível
formando sua teia selvagem.
“Tudo que vemos é uma
expressão do invisível.” Concerne a um estado de grandeza física mensurável em
escala infinitesimal; e, conjuntamente, considera a condição invisível da
presença de outras dimensões, espirituais, paralelas e agenciadoras da vida no
planeta.
A quinta Flecha também dialoga com as
demais. Em A serpente e a canoa,
mergulhamos na galáxia oculta a olho nu. O
sol e a flor tem como essência a atividade de seres fotossintéticos, como
as cianobactérias. Metamorfose proporciona
a visão do papel fundamental dos seres invisíveis para a permanência da vida na
Terra e sua transformação contínua. A selva
e a seiva revela a sabedoria contida no belo sistema de regulação da vida.Todas
as flechas dialogam entre si. Aos poucos e de forma cumulativa, forma-se uma
rede de conceitos que se apoiam e completam. As flechas apontam alvos, focos,
pontos de aglutinação, compondo uma teia imaginária.
A sexta flecha, Tempo e Amor[18] atravessa todas as outras flechas,
enfatizando o tema do tempo do ponto de vista da física teórica. Várias flechas
dialogam com diferentes áreas do saber: a Metamorfose
estuda a bioquímica da vida; a Seiva e a
Selva trabalha com etnobotânica; e a Flecha
Invisível conversa com a microbiologia genética. A sexta flecha trabalha
com a perspectiva relativista de tempo simultâneo (Einstein) e com a entropia, o
colapso gradativo do universo.
Enquanto o universo se expande, o amor aglutina. Enquanto se expande, ele esfria
e caminha em direção a sua dissipação, a sua própria morte.
A segunda lei da
termodinâmica é a única lei geral da física que distingue passado e futuro.
Como uma flecha do tempo, o calor passa somente de corpos quentes a frios,
nunca ao contrário. Se nada é provocado externamente, um corpo frio não se
torna quente. Esse fluxo natural de dissipação dança com outro: o fluxo
biológico da vida, que aglutina e envolve Gaia numa metamorfose contínua.
O fluxo biológico, o
metabolismo da Terra, é amor que reelabora os elementos e mantém o pulsar
coletivo. Através da experiência de trançar compreensões científicas,
artísticas e tradicionais, esta Flecha fala de entropia e sintropia, sem
mencionar estas palavras. (...)
Talvez seja uma Flecha
sobre o feitiço que dissociou humanos dos ciclos naturais. Ela foi inspirada
pela beleza das relações colaborativas que são feitas no tempo e no espaço,
como plantar uma árvore que um dia será a canoa de alguém futuro. A consciência
de que habitamos com gratidão o mesmo jardim planetário.
A sétima Flecha, A Fera e a Esfera[20], a última da série de audiovisuais é
um manifesto Selvagem – demanda, reclamação, reivindicação, súplica – para que,
enfim, seja evidente que integramos um sistema vivo maravilhoso e que o
destruir, por cegueira e ganância, é suicídio coletivo provocado por alguns
humanos. É fundamental a transformação cognitiva do desejo capitalista de como
estar no mundo e a permissão para que a floresta se reinfiltre em nossos
sentidos.
Esta flecha “caiu” em
Londres, no Barbican Centre, incorporada à exposição Our time on Earth. O devir
da Flecha é a ferida. Esta Flecha cruza o oceano Atlântico, no caminho inverso
ao da expansão marítima europeia, com o destino de tocar corações civilizados e
buscar a inversão da lógica colonialista, reproduzida até hoje pelo fluxo
consumidor que devora o planeta e transforma tudo em mercadoria, citando Davi
Kopenawa.
A flecha em sua dimensão política é
uma arma. Seu “Devir é uma ferida” de um animal caçado ou de um inimigo. Aqui
descobrimos que o contexto das Flechas é uma guerra de interpretação sobre o
mundo, em que a ciência quer assimilar os saberes e que o conhecimento
ancestral se apropria e integra os saberes científicos. A flecha é um esforço
para dar a última palavra sobre si mesmo, sobre a própria cultura, sobre a
realidade planetária contra o discurso etnocêntrico e colonialista.
Que chova flechas selvagens sobre o
céu dos domesticados! Que as flechas adiem a queda dos céus e o fim do mundo!
4.
RESULTADO
Arjuna recebeu de
Krishna a seguinte instrução: o guerreiro tem três flechas. A primeira já foi
lançada. É o passado. A terceira está guardada e é o futuro. A segunda flecha é
o presente e está no arco pronta para ser disparada.
Se o arqueiro lança a
flecha do presente na mesma direção da flecha passada, então, haverá KARMA, uma
ação do passado sobre o presente determinando o Destino. Porém, se o arqueiro
aponta a flecha para uma direção diferente da flecha já lançada, então haverá
DHARMA, uma ação em que o Destino é imprevisível.
O Karma é Dívida,
cobrada através da família; o Dharma é a Dádiva, expressa através do trabalho.
Se o homem repete seu passado, vive eternamente em dívida. Mas, se o homem
trabalha um futuro melhor para todos, então, ele é o senhor do seu destino.
Aqui se
descreveu e interpretou a série de sete vídeos Flechas de Ailton Krenak e equipe. O estudo chegou à conclusão de
que o ideia de “Flecha”, aparentemente utilizada como metáfora de pensamento, é
uma das contribuições mais importantes do trabalho, mesmo sem ser evidente. Essa ideia se aproxima da noção de
arte anterior à reprodutividade técnica e à indústria cultural. A ‘arte primitiva’
representava o invisível e a arte ocidental, o visível. As flechas são ‘sonhos
artificiais’, fluxos de sons, imagens e palavras que mimetizam o onírico e
dialogam com o científico.
REFERÊNCIAS
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