Repostas e novas perguntas para futuros
começos
Embora a vida siga, toda narrativa tem seu
final.
Os estudos narrativos também. Muitos acreditam
que tudo sempre acaba bem, é conhecido do ditado que reza que se ainda não está
bem é porque não acabou. Mas, os estudos narrativos também comportam finais
trágicos em seus desfechos e a História pode acabar mal. A narrativa
histórica complexa não termina em uma utopia humanista nem em uma distopia
tecnológica, mas em ambas.
As narrativas de ficção científica entendam a
máquina social como um inimigo ficcional a ser vencido. Mas, essa máquina
mimética é também um dispositivo sistêmico real em nossa vidas. A sociedade
distópica, em que a tecnologia aumenta as desigualdades e a falta de autonomia,
é uma simulação projetada pela própria máquina trimidiática para nos alertar
sobre um futuro possível. A utopia, por outro lado, sugere o uso da máquina
mimética para um aprendizado individualizado, um mundo de oportunidades iguais
e uma relação ecológica com o meio ambiente.
Senão vejamos ...
Os
conceitos de Aristóteles são utilizados ainda hoje. A noção de ‘catarse’, por
exemplo, é a purgação e esclarecimento, sofrimento sentido por nós projetarmos
em situações dolorosas simuladas, que nos causam alívio e bem estar. Ou ainda
‘Intriga’, o agenciamento de fatos, sujeitos e cenários segundo o desfecho
desejado. Há também a dialética entre Mimese e Diegesis, cujo significado varia
bastante segundo o autor e sua filosofia. De forma geral, enquanto a Mimese é
associada a ‘Narrar’; a Diegesis é relacionada ao ‘Mostrar’. Então, para senso
comum, os elementos diegéticos são aqueles extra narrativos, como a trilha
sonora de um filme. Em uma perspectiva mais teórica, no entanto, a Mimese é a
imitação criativa ou representação interpretativa da ação, através do qual
aprendemos atitudes, comportamentos e nos comunicamos; e a Diegesis, o contexto
narrativo em que a Mimese se realiza, o espaço-tempo em que o evento e suas
repetições acontecem.
Dando sequência às reflexões de Aristóteles sobre a arte de contar
histórias, Vladimir Propp escreveu a Morfologia do Conto Maravilhoso (1978). Estudando um recorte bem específico (cem contos de fadas
russos orais), o estudioso descobriu uma possível estrutura genérica da
narrativa. Propp utilizava seus conceitos para descrever as narrativas
específicas e não para prescrever uma tipologia ou modelo geral. Sua
contribuição mais importante foi decompor a narrativa em 31 funções dramáticas
possíveis[1].
Mas, essas funções narrativas em seu conjunto não formavam ainda uma estrutura
e sim uma arqueologia. Por isso, é considerado um 'formalista',
pré-estruturalista. Sua contribuição principal é decompor as histórias orais em
funções e em ações dos agentes, facilitando sua comparação.
Outra contribuição relevante foi a de Joseph Campbell (1990, 1995[2]).
Ele levou as ideias de Jung aos campos da arqueologia, antropologia e história
das religiões, elaborando um modelo
segundo o qual todos os grandes mitos fundadores das culturas humanas
seriam, em última análise, uma única narrativa universal: o 'monomito', também
chamado de “Jornada do Herói”, em que o protagonista abandona a vida ordinária,
mergulha no desconhecido e retorna à dimensão cotidiana. O modelo é composto de
3 fases e 17 momentos. E todas as histórias heróicas são na verdade a repetição
dessa única estrutura narrativa.
O
roteirista Christopher Vogler (1997) usou as teorias de Campbell para criar um
memorando para os estúdios Disney. Vogler faz uma adaptação reduzida da jornada
de Campbell, mantendo as três fases narrativas e reduzindo as 17 etapas para
apenas 12. Hoje esse modelo narrativo é referência para produção de vários
filmes, romances, histórias em quadrinhos e narrativas heróicas. E também para
análise dessas narrativas. Porém, além da redução, o protocolo Vogler usa a
estrutura da jornada como um modelo de organização das narrativas,
completamente dissociado da observação psicológica e do desenvolvimento pessoal
de si próprio.
Campbell, além descrever as narrativas de Buda, Moisés
e Cristo em termos do monomito; também acreditava na jornada como um rito de
passagem da infância para a responsabilidade comunitária, como um processo pelo
qual todos passamos, mesmo que involuntariamente. Principalmente agora, que a
sociedade enfatiza o risco para engendrar aventuras, todos são heróis em
jornada "de iniciação" em sua trajetória do anonimato à consagração[3].
Aliando o formalismo narrativo de Propp ao caráter
estruturante dos mitos em cada contexto cultural (enfatizado por Campell), as
análises de Claude Lévi-Strauss comparam a mitologia a uma sinfonia musical, em
que a melodia corresponde ao eixo sintagmático (a sucessão de notas no tempo
contínuo) e a harmonia ao eixo paradigmático (notas simultâneas dentro de um
acorde). E esta analogia permite ao antropólogo pensar em uma gramática
universal do mito: a passagem da natureza à cultura (do crú ao cozido, do nú ao
vestido, etc), o estabelecimento de regras de aliança e a separação entre
humanos e não humanos. Existem
três aspectos importantes na contribuição de Lévi-Strauss: a) A cultura é
resultado do interditos sexuais familiares, de necessidades linguistícas
específicas e da divisão do trabalho; b) a ação humana prevalece sobre a
estrutura social (ao contrário do estruturalismo clássico); e c) o sistema de
parentesco explica e supera o mito do complexo de Édipo freudiano.
Aperfeiçoando a noção de estrutura social, como um modelo de múltiplas
determinações das relações sociais, Lévi-Strauss critica seus antecessores por
verem nos discursos e nas ações individuais meras execuções da estrutura social
e não seu núcleo cognitivo. Jackobson pensou em uma linguística estrutural em
que a fala fosse mais relevante que a língua. Lévi-Strauss adaptou essa ênfase
a ação humana e a estrutura social. De forma que, para ele, a possibilidade de
uma ação individual se exercer se encontra estruturalmente determinada sem que
disto decorra uma obediência cega e inconsciente às regras sociais como na
maioria dos estruturalistas; nem que, ao contrário, se caia em uma atitude deliberada
e intencional, idealista.
O
outro ponto é referente ao sistema de parentesco (e às ideias de inconsciente e
de recalque dos desejos de Freud). Enquanto Freud crê no complexo de Édipo e na
sublimação dos instintos, Lévi-Strauss prefere descrever o tabu do incesto
matrilinear como o centro de um sistema de recorrências involuntárias que tem
como estrutura a perpetuação das relações de parentesco. Assim, Lévi-Strauss
explica e supera a ideia de que a cultura é fundada na culpa de um crime sublimado.
Neste modelo, a Natureza é o universal, o espontâneo e o inconsciente; enquanto
a Cultura corresponde ao conjunto das regras relativas e particulares. Há
diversas culturas e uma única natureza. O incesto matrilinear é a única regra
universal para todas as culturas, epicentro das relações dos homens com seu
ambiente. Apesar de ser um
formalismo a-histórico, duplamente sem sujeito (sem agente nem auto referência
de observação), o estruturalismo foi uma dupla reviravolta contra o
etnocentrismo científico e o relativismo cultural, formando um inventário
metódico do drama universal do homem em suas culturas.
Lévi-Strauss, Lacan,
Bourdieu, Foucault, Barthes, Greimas – toda geração de pensadores franceses do
pós-guerra, amigos entre si - fazem uma transição gradual do estruturalismo (e
da morte do sujeito universal) para a pós-modernidade, caracterizada pela auto
referência discursiva do enunciador, pela observação intersubjetiva, pela
emergência do receptor ativo. Cada um faz essa passagem de uma forma diversa,
em áreas diferentes do conhecimento, com variados percursos e perspectivas.
Todos, no entanto, descobriram o próprio protagonismo frente às estruturas,
sendo mais propositivos que analíticos, virando definitivamente essa página da
história da teoria narrativa.
Embora o monomito de quatro atos de
Lévi-Strauss (a transgressão do tabu, o castigo social, a conquista do fogo e a
vingança) seja mais abrangente e mais profunda que o monomito da jornada do
herói, seu modelo não é tão divulgado ou compreendido. Com alguma reflexão, no
entanto, fica claro que o modelo narrativo levi-straussiano reinterpretando o
complexo de Édipo explica boa parte das histórias individuais em nossa
sociedade. A minha história, a sua história e a história pessoal do
Lévi-Strauss nesses tristes trópicos são a mesma narrativa é uma prova de
superação do estruturalismo.
Mas,
voltemos a Campbell e aos que entenderam a dimensão psicológica da jornada.
Hillman
e Campbell ficaram tão encantados com a noção de jornada que não perceberam as
mudanças que a narrativa de Jesus Cristo introduziu nesse encantamento das
vidas heroicas. A jornada, na versão cristã, deixou de ser épica, tornou-se uma
tragédia e o sacrifício substituiu parcialmente a consagração. Digo
'parcialmente' porque, como demonstramos adiante, as características da jornada
do herói solar (Gilgamesh, Hercules, que lutam contra deusas da natureza) se
sobrepõem ao herói trágico que se sacrificar pelos outros.
E,
após a história de Jesus Cristo, A Divina Comédia de Dante, Hamlet de Shakespeare
e Don Quixote de Cervantes também vão provocar mutações significativas nos
elementos simbólicos dessa jornada psicológica do protagonismo narrativo
transmitida inconscientemente de geração em geração pela máquina mimética
(GOMES, 2022)[4].
O
monomito heroico, além de dinâmico, é também imprevisível. De uma hora para
outra, o protagonismo feminino insurgiu frente ao antagonismo da sociedade
patriarcal. A jornada agora é da heroína (a jornada da anima, que também
implica no lado feminino dos homens), inclusive Na indústria do entreterimento.
Porém,
apesar de ter vários elementos simbólicos em comum (a morte e ressureição), a
jornada de Jesus é uma tragédia do ponto de vista narrativo e não uma narrativa
épica e heroica. Além disso, o arquétipo do Messias é descendente (é a
encarnação de Deus) e o do herói, ascendente (é o homem que se torna um semi
deus).
Mas,
o heroísmo, para Campbell (1990, p.141), é “o objetivo moral é o de salvar um
povo, ou uma pessoa, ou defender uma ideia. O herói se sacrifica por algo”.
Todos os heróis precisam passar por um ciclo de “morte” e renascimento por meio
do sacrifício, físico ou espiritual, a fim de alcançar um objetivo. Os heróis
em suas origens “morrem” como seres comuns em determinada passagem de sua
história para retornar imortais. Melhor seria investigar os aspectos em que a
história de Jesus NÃO se encaixa na jornada heroica, observando suas diferenças
e inversões em relação às narrativas míticas. O herói mítico sai do mundo
cotidiano, vai ao sobrenatural e retorna ao início no final. Ele supera
obstáculos externos e dificuldades pessoais; sua narrativa sugere coragem e
entusiasmo, tem um efeito de sentido que nos inspira à ação e a conquista de
nossos desejos. E a história de Jesus é uma estória triste, que nos ensina a
renúncia dos sentidos e do mundo material.
Então,
enquanto o herói clássico sai do mundo ordinário, visita os reinos mágicos,
morre e retorna ao cotidiano vitorioso; Jesus vem do reino espiritual, encarna
no mundo material, morre e volta aos céus. Claro que também há a ressurreição e
o paráclito, a promessa de retorno no fim dos tempos, mas esses 'retornos' ao
mundo são diferentes da eterno retorno às origens da jornada tradicional.
“Dai
a Cezar o que é Cezar; e a Deus o que é de Deus”. Esse misticismo radical em
relação ao poder institucional (presente em todo Sermão da Montanha, por
exemplo) foi utilizado pelo mesmo poder institucional como uma narrativa de
colonização e incultação de culpa: o efeito de sentido da narrativa cristã na
formação cognitiva do sujeito ocidental, a história de Jesus Cristo vista como
um ‘modo de sujeição’ da jornada do herói, o dispositivo histórico do poder
pastoral para ‘nos tornar iguais’ perante a Deus e ao Estado (GOMES, 2011a).
Talvez
por achar Jesus muito submisso em relação ao mundo material e não concordar com
a domesticação da vontade de poder pela consciência mística, o filósofo alemão
tenha escrito o livro Assim falou Zaratrusta (2009), tentando propor um
protagonista menos sofredor para jornada do herói ocidental. Nietzsche
projetava em Zaratrusta um messias movido pela alegria e pelo amor (e não pela
culpa e pela renúncia ao desejo). Entretanto, a história de Jesus tem um
importante efeito de sentido simbólico na formação cognitiva do sujeito, um
impacto de transformação da jornada, que a de Zaratustra (ou qualquer outra
história), não tem. Ser sujeito é sujeitar-se. Sujeitar a própria vontade de
poder. O cristianismo é, para o bem e para mal, um dispositivo de sujeição, de
nos tornarmos menos animais e mais humanos. A Jornada passa reproduzir o
heroísmo trágico que se sacrificar para servir. O argumento contra a igualdade
de Nietzsche (1998) surge de sua crítica ao judaísmo e ao cristianismo (a
igualdade perante a Deus) e depois se estende à modernidade democrática (a
igualdade perante a lei). A igualdade, para ele, é uma doutrina de escravos.
Seguir regras é ser “um escravo sem senhor” e a horizontalidade é tratada como
um artificio de dominação dos mais fracos sobre os mais fortes – que se
sacrificam sua liberdade em nome da igualdade. Liberdade entendida como vontade
de potência humana resultante da morte de Deus.
Também
Freud, ao postular o complexo de Édipo e considerar o cristianismo como um
aperfeiçoamento perverso da neurose resultante do parricídio arcaico, estava se
referindo a esta domesticação dos instintos e desejos na formação cognitiva do
sujeito ocidental. O complexo de Édipo, da forma como foi posta em Totem e tabu
(FREUD, 1990), afirma que a culpa de termos assinados nosso progenitor em
termos primitivos foi que nos humanizou e que reproduzimos esse evento arcaico
dentro do relacionamento familiar desde então. A psicanálise, no entanto,
apenas reifica a culpa cristã em uma domesticação ainda mais perversa, o
discurso confessional (FOUCAULT, 1982) e o regime de moratória ilimitada
(DELEUZE, 1998). Para esses, seguidores da perspectiva de Nietzsche o
cristianismo é um modo de sujeição, independente de gostarmos dele ou não.
Hoje
tornou-se lugar comum a crítica ao cristianismo como algo desnecessário ao
desenvolvimento do sujeito, mas há vários exemplos que validam a ideia de sua
inevitabiidade. Uma narrativa relevante nesse sentido é a conversão ao
cristianismo do psicanalista marxista W. Reich, em seu último livro, O
assassinato de Cristo (1983). Ele entende a sujeição cristã do auto-sacrifício
como um aprofundamento da subjetividade necessário ao desenvolvimento, um mundo
sem bode expiatório ou macho-alfa. Acontece que essa narrativa é tão trágica e
aterradora, que os próprios cristãos (para não sentir a catarse e a culpa de
matar seu salvador) precisam de um Judas para malhar durante a semana santa.
A
vida de Jesus Cristo como narrativa é a história do maior injustiça de que se
tem notícia. É uma narrativa em que o protagonista encarna o papel de bode
expiatório cósmico e universal. Ele morreu para redimir os pecados do mundo, ou
melhor: os nossos pecados. E essa narrativa teve e tem uma importância na
colonização do mundo, na domesticação dos corpos e das almas. O papel que o
cristianismo desempenha sobre os indivíduos apenas consolida e amplia
tendências culturais mais antigas, vindas de comportamento sexual e alimentar
ascético dos latinos (o cuidado de si) e dos helênicos (o uso temperante dos
prazeres). Ao enunciar um 'poder pastoral', Foucault quis levar a crítica de
Nietzsche à ideologia cristã às últimas consequências como um modelo de
domesticação social das almas. Mas esse não era o objetivo principal; seu
verdadeiro projeto era entender "como nos tornamos sujeitos". Assim,
como nosso objetivo aqui é compreender, através das narrativas e não da
história da sexualidade, as mudanças simbólicas da estrutura da jornada.
Quando,
nos primeiros versículos do décimo terceiro capítulo do Evangelho de João,
Jesus lava os pés de seus discípulos, instaura-se uma nova forma de liderança e
autoridade, uma nova conduta de poder se constitui tanto do ponto de vista
ideológico como no organizacional. Por isso, Foucault e os pensadores
nietzschianos em geral dão tanta importância à crítica do cristianismo, porque
ele representa uma nova conduta de poder, que, diferentemente da conduta do
'príncipe' maquiavélico não se baseia na força ou da ação sobre os corpos, mas
sim na admoestação das almas e da subjetividade pelo espírito de rebanho
(GOMES, 2010).
As
duas condutas, a do Príncipe e a do Pastor, rivalizaram e se completaram por
muitos séculos. Durante toda primeira metade da Idade Média, enquanto os padres
condenavam os pecados e perdoavam os pecadores, salvando-lhes as almas; os
soberanos puniam os corpos dos criminosos. Essa sobreposição entre o poder da
Cruz e o poder da Espada equivale a novas transformações da jornada heroica:
Hamlet de Shakespeare, A Divina Comédia de Dante e Don Quixote de Cervantes.
Hamlet
é uma peça teatral trágico-dramática que, apesar de aparentemente laica, tem um
forte componente espiritual. O mundo é governado pelo mal; o herói astuto,
filho do pai espiritual traído e morto, desmascara o usurpador através da
representação teatral. O texto discute a relação entre o poder, a loucura e a
realidade. Porém, ao final da jornada, todos morrem – ou seja: a jornada
heroica baseada no complexo de Édipo nos levará à autodestruição (GOMES, 2016).
Já
o longo poema A Divina Comédia de Dante é uma síntese de toda mitologia
anterior realizada na perspectiva cristã, não apenas a mitologia clássica dos
gregos e romanos, mas das mitologias arcaicas, em que a visita ao Inferno e às
regiões subterrâneas não era nenhuma novidade. As deusas Inanna, da Suméria;
Isthar da Babilônia; Deméter dos gregos; foram algumas das que desceram aos
infernos para se tornarem senhoras dos três domínios (Céu, Terra e Inferno).
Também, nos tempos patriarcais, vários heróis alcançaram a imortalidade
descendo aos infernos. Há ainda os livros dos mortos (egípcio, tibetano, entre outros)
que relatam o percurso da alma após a morte e que também podem ser
interpretados como narrativas iniciáticas. A ideia aqui é a da jornada da alma
em busca da iluminação e de sua união com a alma gêmea e com o divino (GOMES,
2011b).
Enquanto
Hamlet conspira espiritualmente contra o poder do mundo material e Dante trilha
sua jornada pós-morte em outras dimensões, o romance de provérbios Don Quixote
de La Macha, o segundo livro mais lido do mundo, mostra um herói dividido entre
dois mundos, o real e o imaginário. O herói torna-se um sonhador e um
idealista. O protagonismo agora é corajoso e patético, digno de admiração e de
pena. O adjetivo 'quixotesco' indica a disposição por lutar por causas
impossíveis, de lutar contra 'moinhos de vento' e outros inimigos imaginários.
E esse será o último modelo masculino de jornada heroica. Aliás, a Jornada do
herói trágico não foi muito favorável as mulheres. Hamlet é uma narrativa
misógina que deprecia o feminino (Ofélia se mata e a rainha Gertrudes é apenas
uma peça decorativa). E Beatrice Portinari e Dulcinéia de Toboso, em Dante e
Don Quixote respectivamente, são mulheres idealizadas, imaginárias, engendradas
pela ideologia medieval do amor cortês. São histórias que inserem a narrativa
do amor romântico dentro da jornada do herói, determinando um lugar secundário
para o feminino.
A
Jornada do Herói como processo iniciático é uma viagem eminentemente masculina,
em um contexto cultural patriarcal. “Iniciação” é um rito de passagem em que um
jovem torna-se membro adulto de uma determinada comunidade. Nas lendas que
expressam esses processos, os heróis são sempre homens, enfrentando situações
masculinas: lutando pela justiça e pela verdade.
As
mulheres, nessas histórias, correspondem ao Sagrado Feminino ou “anima narrativa”,
isto é, a representação projetada dos valores femininos do narrador (mediação
entre autor e leitor) no interior da narrativa. Com isso, elas são ou meras
coadjuvantes, sequestradas pelo dragão e resgatadas para o casamento alquímico
final, e/ou então se associam com o mal e seus vilões, dificultando a vida do
herói. Há também histórias em que a mulher é a protagonista em um universo com
valores masculinos -como no filme Jogos Vorazes, por exemplo. Contar uma
história iniciática (uma jornada heroica) em que a mulher e os valores
femininos sejam realmente os protagonistas, é uma necessidade cultural e uma
tendência narrativa contemporânea.
Em
Mimese e simulação (GOMES, 2015) é um problematização sobre o herói trágico e a
construção histórica e narrativa de um sujeito protagonista/narrador, em luta
contra as estruturas narrativas do tempo, personificada na reinvenção
contemporânea do mito das três moiras do destino, as tecelãs da intriga,
arqui-inimigas do anti-herói pós moderno.
Porém,
nos últimos anos, o protagonismo tornou-se feminino e a sociedade patriarcal
tornou-se a antagonista de grande parte das narrativas.
Nos
últimos anos, o protagonismo tornou-se o feminino e a sociedade patriarcal
tornou-se a antagonista de grande parte das narrativas. O feminino não aceita
mais seu antigo papel (de par romântico e refém do vilão) e torna-se também
protagonista/narradora de sua identidade e de suas narrativas. Hoje percebe-se
que não é suficiente que as mulheres se tornem protagonistas das próprias
vidas, elas têm também que contar as próprias histórias.
Maureen
Murdock (MARTINEZ, 2008, 139) era uma psicóloga que trabalhava com
empoderamento de mulheres em situação de vulnerabilidade e através do processo
de crescimento de seus pacientes elaborou a Jornada da Heroína. E o novo
roteiro está gerando um tsunami de narrativas de protagonismo feminino, bem
como trabalhos acadêmicos.
É a
vida que imita a arte que imita a vida ou será que a arte que imita a vida que
imita a arte? Quem veio primeiro: a narrativa ou o contexto? Esta é a dialética entre
mimesis e diegesis. O contexto mostra; a narrativa conta. Mas, ambos são
indissociáveis. Assim tanto as narrativas femininas formam um novo contexto das
relações entre os sexos como o novo contexto forma ainda mais novos
protagonismos.
E não
se trata simplesmente trocar o gênero dos protagonistas. Há uma mudança dos
valores masculinos (a conquista do poder, a justiça e a verdade acima dos
interesses) por valores femininos (o cuidado, a solidariedade, a afetividade).
Ao inves da superação através dos desafios de risco, agora o importante é
entrar em contato com a própria essência.
Então,
por que o conceito de narrativa tornou-se tão importante em nossos dias?
Como tornou-se capaz de explicar e compreender outros sem contradizê-los? Além
do aspecto material da linguagem, além do aspecto mental dos conteúdos, a
narrativa é uma estrutura mais ampla formada por imagens, situações-design,
objetos abstratos embutidos que dá sentido aos signos e aos discursos. A
narrativa, mais do que uma mera representação dos acontecimentos, é um
mapa interpretante do que está acontecendo - enraizado psicológicamente em cada
um.
Estamos todos elaborando roteiros-narrativas para explorar o
universo, para sistematizar experiências de vida e imaginar um futuro
comum. descobriram o próprio
protagonismo frente às estruturas, sendo mais propositivos que analíticos,
virando definitivamente essa página
da história da teoria narrativa. Houve uma transição gradual do estruturalismo (e da morte do sujeito universal) para a pósmodernidade,
caracterizada pela auto
referência discursiva do enunciador, pela observação intersubjetiva, pela
emergência do receptor ativo. Nesse
novo momento, hermenêutico, Walter Benjamin, Umberto Eco, Paul Ricoeur, John
Thompson e Luiz Gonzaga Motta lutam contra o relativismo pósmoderno, propondo
métodos para que a autoreferência do observador e a semiose ilimitada não
inviabilizasse a análise narrativa
Com advento da escrita uma ditadura do emissor ressalta a relação entre o enunciador e
a referência (dividindo as narrativas entre reais e imaginárias) e instaura a
metalinguagem no coração da arte moderna. A
imagem e o sentimento foram secundarizado no significante.
Destaco alguns pontos importantes:
A intriga principal de uma narrativa é tecida
por quem a escuta (como um sonho que lembramos de trás para frente e que Freud
chama de processo elaboração secundária);
Com a semiose do receptor sendo primária, há uma inversão na ordem metodológica de analisar narrativas;
O autor-modelo (o actante destinador ou o contexto do emissor)
e os leitoresmodelo (actantes destinatários ou os contextos de rececpção)
são os limites da interpretação; e
A seleção/edição das narrativas e dos enredos
que nos interessam são orientados pelos nossos afetos e ideias (e não pela
intenção do autor ou pela própria linguagem).
Então, por
que o conceito de narrativa tornou-se tão importante em nossos dias? Como tornou-se capaz de explicar e compreender outros sem
contradizê-los?
Além do aspecto material da linguagem, além do
aspecto mental dos conteúdos, a
narrativa é uma estrutura mais ampla formada por imagens, situações-design,
objetos abstratos embutidos que dá sentido aos signos e aos discursos. A
narrativa, mais do que uma mera representação dos
acontecimentos, é um mapa interpretante do que está
acontecendo - enraizado psicológicamente em cada um. Eis nossa tese original: o futuro,
o desfecho desejado, é o núcleo que intriga nos lembranças e preferências. A narrativa é a organização dos elementos passados e presentes de
acordo com um projeto. A Identidade é forjada e celebrada pela memória e a
memória, no sentido inverso, é atualizada e recortada pela identidade.
Por que estudamos narrativas? Para nos
conhecermos; para aprender sobre o mundo; para distinguir entre o que é
benéfico do que não é; para explorar
o universo, para sistematizar experiências de vida e imaginar um futuro comum.
E para que serve o conceito de narrativa?
Dois exemplos da aplicação do conceito de
Narrativa para explicar discursos políticos contemporâneos:
TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO – Um
exemplo de narrativa bem presente hoje em dia são as teorias da conspiração. A mídia promete a transparência total, o fim do governo
invisível, mas hipervisibilidade midiática produz um GRANDE VAZIO, na realidade e no imaginário, em que proliferam iluminatis,
reptelianos, alienígenas e outros governos invisíveis. As teorias da
conspiração são narrativas que intrigam os fatos a partir da ideia de um
governo invisível.
RELATIVISMO IDENTITÁRIO – A
vontade política de estabelecer identidades livres do pensamento colonizador e
misógeno está formando bolhas ideológicas fechadas, em que a memória é atualizada pela celebração de uma identidade
fechada. Os movimentos identitários são narrativas de resistência cultural
romântica ao poder.
A GUERRA DE NARRATIVAS – A
relação entre a grande mídia e as redes sociais tende a criar diferentes
interpretações dos fatos. As bolhas, fandons e outros grupos de opinião são
produtos do relativismo identitário e da semiose ilimitada. Retribalização do
mal. Uma segmentação interativa da cultura de massas.
[1]
Estrutura
narrativa em animações Disney e Morfologia do Conto de Propp <https://youtu.be/oaB-3KxMIwM>
versão audiovisual do TCC/monografia 'Uma Introdução aos Fundamentos
da Narratologia'
– de Keven Fongaro Fonseca em Cinema e Audiovisual pela UFF, 2019.
[2] O livro O poder do Mito é a transcrição
de um documentário homônimo da BBC, uma longa entrevista de Bill Moyers com
Josph Campell, editada em cinco episódios para DVD e disponível em: <https://youtu.be/kFzT03JL9X0>
[3] O que faz um herói? - Matthew Winkler. https://youtu.be/Stdko2NIUNI
[4] Publicado pela PAULUS: Revista de
Comunicação da FAPCOM, n.12 ; 2023.