segunda-feira, 19 de agosto de 2024

colonização e dupla consciência

 

DUPLA CONSCIÊNCIA

Fundamento de uma Estratégia Decolonial


Marcelo Bolshaw Gomes


É uma condição universal de todos países colonizados do mundo é que existam sempre dois grupos locais em conflito secundário. O conflito principal é contra o colonizador, mas os grupos discordam sobre o que fazer: enquanto um grupo quer negociar, o outro quer resistir até a morte. O bom senso sugere que as duas soluções são erradas. A negociação sem resistência leva a conformidade e a recusa radical à destruição. Um grupo tem consciência da situação, mas não tem consciência de si. O outro tem consciência da própria cultura, mas não tem consciência do contexto histórico. A única saída é a Dupla Consciência e a inversão do conflito secundário, com reformistas e radicais aprendendo a trabalhar de modo alternado em relação ao invasor externo. 

A noção de 'dupla consciência' surgiu em um contexto de luta contra o racismo no livro The souls of black folk, de 1903 (Du Bois, 1970) e até hoje é importante para definir a situação ambígua das pessoas negras nas Américas. Mas, a contribuição é universal e também pode ser aplicada a outras condições de dissociação vida biológica e vida cultural. Interessa-nos, principalmente, as abordagens que colocam a questão da dupla consciência do ponto de vista da colonização latino-americana, como um conflito psicológico entre o eu-colonizador e o eu-colonizado (Gonçalves, 2014; 2016).

Du Bois foi o primeiro doutor em ciências sociais negro, ativista dos direitos civis, militante socialista, sociólogo pan-africanista, autor e editor de vários livros e fundador de uma das mais importantes organizações negras da história americana, a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP). 

Para ele, a dupla consciência de ser negro e de ser americano é resultante de uma dialética entre a conquista da igualdade e a integração da população negra como cidadã (ponto de vista representado por Martin Luther Kin) e a ênfase em uma identidade cultural própria, defendida por Malcolm X. Luther King enfatizava os direitos civis e a cidadania americana para todos os afrodescendentes, materializada no direito ao acesso a banheiros, escolas, transportes e espaços públicos – em igualdade com os brancos. Já Malcolm X defendia uma comunidade negra americana e a reafricanização simbólica como identidade cultural.

E a noção de dupla consciência abrange as duas demandas: o direito à igualdade individual e o direito à identidade coletiva própria. O “mundo dos brancos” convive com o “universo negro” como sendo dimensões culturais de uma mesma realidade social.

Atualmente, a noção de dupla consciência é aplicada em estudos sobre o Facebook (Oliveira, 2014), observando a relação entre o 'mundo off-line' e o 'virtual'. Há dupla consciência em Platão (os mundos sensível e inteligível, o lado de fora e de dentro da caverna), em Aristóteles (a física e a metafísica) e até em Marx (consciência de classe em si na infraestrutura e consciência de classe para si na superestrutura). Há sempre uma consciência-percepção do mundo objetivo e uma consciência simbólica de suas interpretações.

Porém, o trabalho que ajudou a popularizar a noção de dupla consciência duboisiana e a consolidá-la no contexto da desigualdade social da colonização foi O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência (2001) de Paul Gilroy. O livro é uma viagem marítima pelo mundo das populações negras do Atlântico e a formação de uma cultura global mestiça de várias etnias africanas e americanas nativas. A dupla consciência, nesse caso, se refere a formação e a convivência entre culturas tradicionais dominadas e a modernidade ocidental dominadora.

Gonçalves (2014, 2016) estuda a dupla consciência latino-americana resultante do “tensionamento estrutural entre colonialidade do poder e mestiçagem crítica”. Colonialidade do poder (Quijano, 2005) é “a matriz do pensamento e das práticas sociais próprias ao mundo do colonizador: o racialismo, controle do trabalho, dominação de gênero, colonização da natureza e pensamento eurocêntrico”. E a matriz do colonizado é, para Gonçalves, “a mestiçagem crítica”.

A partir da estrutura cindida entre as duas matrizes de pensamento – colonizador e colonizado – a formação latino-americana estabelece uma dupla consciência histórica. Desde o início da colonização – momento de convulsão extrema que deu origem à modernidade – já está presente a oposição entre, de um lado, a colonialidade do poder – matriz de pensamento do colonizador – e, de outro, a mestiçagem crítica, matriz de pensamento que caracteriza os processos de resistência dos povos colonizados. 

Essa duplicidade, o tensionamento e o conflito entre essas duas matrizes, é a estrutura dinâmica que caracteriza a formação das populações do continente em sua reprodução social e em sua intersubjetividade. Está presente nas relações, nos afetos e no pensamento da população do continente.

Existem, em tese, dois extremos. 

Há lugares que fomos completamente colonizados, em que não temos nenhuma caraterística cultural que nos defina e diferencie dos outros. Mas, há um preço: o complexo de vira-lata, ver o mundo e a si próprio através dos olhos do outro-colonizador, varrendo para o inconsciente seu 'eu colonizado' e sua submissão servil ao exterior. Esse ponto de vista, equivale ao “etnocentrismo epistemológico”, em que a ciência ocidental se sobrepõem aos saberes de outras culturas, que a modernidade global se sobrepõe às tradições locais. 

Como também há lugares em que, ao contrário, o 'eu colonizador' é que é escondido (e demonizado) e o 'eu colonizado' é exaltado, através do nacionalismo e do regionalismo. Na maioria desses casos, a defesa radical da identidade territorial e das tradições colide com valores universais de idosos, mulheres e crianças. A identidade cultural fechada gerou o fenômeno do populismo e da manipulação das culturas populares. E agora gera o fenômeno do fundamentalismo, das 'bolhas ideológicas' das redes sociais. Esse é o “relativismo identitário”.

Na prática, há uma luta entre a identidade imposta e a auto definida, com resultados em diferentes graus, arranjos (de inclusão e exclusão de elementos simbólicos) entre o imposto e o exposto, entre o social e o pessoal, entre o arbitrário e o subversivo. Mas, há também um terceiro termo produzido pela dupla consciência: “a mestiçagem crítica”, a resistência criativa à aculturação colonizadora.

Em O povo brasileiro, Darcy Ribeiro (1996) afirma que identidade brasileira é singular em relação a de outros povos colonizados; tanto em relação aos povos testemunhais (andinos e mexicanos), que guardam os traços distintivos de antigas civilizações Inca e Asteca; como também em relação aos povos em que as características culturais dos colonizadores passaram a ser dominantes, como os canadenses. Nos povos em que a identidade étnica nativa é forte (como na Bolívia e no México, por exemplo), há uma rejeição popular da cultura colonizadora. 

Já nas culturas em que a identidade nativa é fraca, todos se consideram descendentes dos colonizadores, como na Argentina ou no Canadá. No primeiro caso, há uma rejeição da cultura colonizadora e uma adesão à identidade local; no segundo, há não apenas uma aceitação, mas, sobretudo, uma identificação cultural da população nativa com a cultura colonizadora cristã, racista, misógina e violenta.

A cultura brasileira, nessa concepção, nem rejeita (fechando-se em uma cultura de resistência popular) nem se identifica (reproduzindo os valores externos) com o colonizador. Há uma identidade cultural ‘não definida’, permitindo que o povo brasileiro se reinvente com dois resultados: o bricoleur das elites e a ninguendade das massas. Por um lado, as elites 'devoram antropofagicamente' o colonizador. Mas, por outro, há também uma massa amorfa de bastardos sem rosto, em um estado permanente de apatia indiferenciada: uma multidão de anônimos sem rostos formada por pardos, morenos, mulatos, cafuzos e mais cinquenta e tantos tons de cinza.

No Brasil, nos anos 20, surgiram dois projetos de identidade moderna: a antropofágica e a nacional-popular. A modernidade do ponto de vista cultural, o movimento modernismo, primeira forma de expressão da classe média urbana republicana, pode ser subdividido em dois comportamentos distintos em relação à produção de bens simbólicos: o antropofágico e o nacional-popular.

O antropofágico, formalizado por Oswald de Andrade, é a vertente da vanguarda estética brasileira de produzir uma cultura de exportação a várias outras manifestações culturais (Hélio Oiticica, a bossa nova, a poesia concreta, o cinema novo, o tropicalismo) mais preocupadas em se sincronizar ao cenário internacional do que produzir uma identidade nacional-popular. Em oposição a esta vertente oswaldiana da modernidade brasileira, coloca-se o projeto iniciado por Mario de Andrade e pelos artistas inspirados pelas temáticas regionais e sociais (Graciliano Ramos, Jorge Amado, entre tantos). Os dois projetos (o antropofágico mais voltado para as elites e o nacional-popular mais voltado para os trabalhadores) acabaram absorvidos pela industrialização cultural. O preço da criatividade rebelde das elites foi pago com a descaracterização cultural das massas, com o apagamento da identidade local e a uniformização do consumo. A essa qualidade de assimilação e reinvenção cultural, Darcy Ribeiro dá o nome de ‘ninguendade’ – a identidade da não-identidade, a cultura do zé ninguém, aquele que não se reconhece na imagem do outro, nem também ousa elaborar uma imagem própria. A cultura brasileira é um projeto aberto ao que está por vir e não uma referência simbólica do passado sobre à atualidade. ‘Um povo sem memória, mas com grande esperança’. Assim, miscigenação não nos torna iguais nem nos faz um mix de qualidade culturais e defeitos étnicos. Ela é uma apenas identidade vazia ou quase: “o país do futuro” e um eterno “gigante adormecido em berço esplêndido”.

O ideal antropofágico foi uma metáfora poética desta mestiçagem crítica, que pretendia combinar elementos simbólicos locais com a cultura global. Hoje, para definir a mestiçagem crítica sem resvalar nem para o etnocentrismo europeu nem para o relativismo cultural da identidade fechada, coloca-se a noção de ‘Dupla Consciência’: ter consciência do mundo e ter consciência de si.

Mas, voltemos ao começo: quando os colonizados brigam entre si, os colonizadores logram a dominação efetiva “dividindo para governar”. Mas, quando os dominados se unem? Quando uma parte assimila e a outra protesta?

Na teoria do cerco guerrilheiro, o procedimento conhecido por ‘alternância repetida de operações táticas contrárias’ é geralmente atribuída a Mao Tse-Tung, mas com notável influência das artes marciais chinesas, do jogo de tabuleiro “Go” e do livro A arte da guerra (2007), de Sun Tzu.

Essa estratégia é composta por três princípios: 1) tenha e mantenha a iniciativa; 2) ataque se defendendo e se defenda atacando; e 3) ataque apenas os pontos fracos do inimigo e defenda apenas seus pontos fortes (ou nunca ataque os pontos fortes do inimigo e nunca defenda seus pontos fracos). Alguns comentaristas unem esses dois princípios em um: ataque sempre os pontos fracos adversários, defenda apenas os seus pontos fortes. A ideia é (através da repetição alternada desses movimentos) forçar o inimigo a defender seus pontos fracos (que atacamos para nos defender) e induzir os adversários a atacarem nossos pontos fortes (que defendemos sempre como movimento de ataque). Essa manobra força o inimigo a sair de sua área de conforto e entrar em nosso campo, permitindo encurralá-lo. 

A estratégia foi criada para a guerrilha territorial, mas pode também ser aplicada a um debate ideológico. Imagine uma pessoa de esquerda (ponto forte: programas sociais; ponto fraco: estado ineficiente e corrupto) debatendo com uma de direita (ponto forte: liberdade individual; ponto fraco: desigualdade). O esquerdista ataca defendendo os programas sociais e se defende atacando o mercado. O direitista ataca o estado e defende o livre comércio. Caso o esquerdista defenda o Estado e clame pela regulamentação da liberdade econômica, vai estar caindo no campo de argumentação da direita. Porém, se ele insistir na defesa dos trabalhadores e atacar as injustiças sociais poderá acontecer o inverso. Caso o direitista ataque os programas sociais e defenda diretamente o capitalismo estará caindo no campo discursivo de esquerda. 

É claro que a estratégia só funciona graças ao primeiro princípio (tenha e mantenha a iniciativa) e a capacidade de estar sempre um passo à frente do inimigo no planejamento das ações, fazendo planos dentro de planos contrários, armadilhas dentro de armadilhas, atraindo o adversário para seu campo até cerca-lo. 

Aplicado ao conflito colonial, essa estratégia implica em que os colonizados ‘joguem’ juntos contra o colonizador. Lenin tinha um planejamento estratégico baseado em uma dupla dialética entre a luta de classes e a luta contra o imperialismo. Porém, considerava a contradição interna principal. Já Mao Tse-Tung inovou considerando o imperialismo (o capitalismo internacional) como seu inimigo principal secundarizando o conflito interno. Além disso, utilizou vários elementos simbólicos da cultura chinesa tradicional: adotou a ideia de cerco do popular jogo tradicional ‘Go’; adicionou as táticas de ‘guerra de movimento’ x ‘guerra de posição’, elaboradas na Arte da Guerra; e aproximou a dialética marxista da alternância de movimentos defesa e ataque (representados pela mandala do ying e yang) do Tai-Chi e do Kung-fu. 

Reza a lenda que Vietnam, Nicarágua e o PC do B na guerrilha do Araguaia no Brasil utilizaram esse modelo de “cerco chinês”, baseado na “alternância repetida de operações contrárias” em seus movimentos, mas, a verdade é que não existe uma explicação completa dessa teoria, nem nos manuais de guerrilha rural do passado, nem no campo da guerrilha cultural da globalização contemporânea. 

Assim, a divisão dos colonizados entre pró e contra é a chave da vitória do processo de colonização e, ao mesmo tempo, a única forma de resistência cultural dos colonizados. E cada um tem sua cultura, mas a natureza é universal. A cultura global é formada por fragmentos que espelham dentro de si uma totalidade inexistente no exterior. Temos, assim: o 'eu-colonizador', representa a ciência etnocêntrica/cultura moderna; o 'eu-colonizado', correspondendo ao identitarismo relativista em suas diversas formas; e o diálogo/dialética formador da mestiçagem crítica e do pensamento complexo. 

Se negamos nosso eu-colonizado, nos tornamos uma caricatura dos verdadeiros colonizadores (daí a inautenticidade moderna); se negarmos nosso eu-colonizador, nos tornamos uma caricatura fanatizada dos verdadeiros colonizados, construindo identidades artificiais para esconder as relações de poder. O comportamento adequado em relação a dupla consciência desses eus (ou dessas condições) é a mestiçagem crítica. Esse terceiro termo, nasce do conflito entre os dois primeiros, da transformação do choque das identidades pela dupla consciência. 

A ciência, nesse terceira posição, não é nem objetiva como quer o etnocentrismo nem subjetiva como pensa identitarismo relativista, e sim baseada na observação intersubjetiva aberta, no consenso circunstancial das interpretações. Essa nova ciência não se preocupa em validar ou refutar saberes tradicionais ou identitários, mas sim em explicar como e porque esses saberes funcionam. A questão é ter uma cosmovisão mais abrangente e interdisciplinar possível ao invés de tentar forçar o universo a se enquadrar as nossas teorias, sejam coloniais ou não.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DU BOIS, W.E.B. The souls of the black folk. New York: Vintage Books, 1970.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência, São Paulo, Rio de Janeiro, 34/Universidade Candido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

GONÇALVES, Bruno Simões. A Dupla Consciência Latino-Americana: contribuições para uma psicologia descolonizada. Psicologia Política, 16(37), 397-413. 2016

OLIVEIRA, Renata Luzia Feital de. Histórias desenraizadas: identidade e dupla consciência no Facebook Tríade: comunicação, cultura e mídia. Sorocaba, SP, v.2, n. 3, p. 141-156, jun. 2014.

QUIJANO, A. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. In: Revistas de Estudos Avançados da USP, n. 55, 2005.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

TZU, Sun. A arte da guerra. Ed. Golden Books, 2007.