domingo, 15 de setembro de 2024

Síntese dos Estudos Narrativos

 



Repostas e novas perguntas para futuros começos

 

Embora a vida siga, toda narrativa tem seu final.

Os estudos narrativos também. Muitos acreditam que tudo sempre acaba bem, é conhecido do ditado que reza que se ainda não está bem é porque não acabou. Mas, os estudos narrativos também comportam finais trágicos em seus desfechos e a História pode acabar mal. A narrativa histórica complexa não termina em uma utopia humanista nem em uma distopia tecnológica, mas em ambas.

As narrativas de ficção científica entendam a máquina social como um inimigo ficcional a ser vencido. Mas, essa máquina mimética é também um dispositivo sistêmico real em nossa vidas. A sociedade distópica, em que a tecnologia aumenta as desigualdades e a falta de autonomia, é uma simulação projetada pela própria máquina trimidiática para nos alertar sobre um futuro possível. A utopia, por outro lado, sugere o uso da máquina mimética para um aprendizado individualizado, um mundo de oportunidades iguais e uma relação ecológica com o meio ambiente.

Senão vejamos ...

Os conceitos de Aristóteles são utilizados ainda hoje. A noção de ‘catarse’, por exemplo, é a purgação e esclarecimento, sofrimento sentido por nós projetarmos em situações dolorosas simuladas, que nos causam alívio e bem estar. Ou ainda ‘Intriga’, o agenciamento de fatos, sujeitos e cenários segundo o desfecho desejado. Há também a dialética entre Mimese e Diegesis, cujo significado varia bastante segundo o autor e sua filosofia. De forma geral, enquanto a Mimese é associada a ‘Narrar’; a Diegesis é relacionada ao ‘Mostrar’. Então, para senso comum, os elementos diegéticos são aqueles extra narrativos, como a trilha sonora de um filme. Em uma perspectiva mais teórica, no entanto, a Mimese é a imitação criativa ou representação interpretativa da ação, através do qual aprendemos atitudes, comportamentos e nos comunicamos; e a Diegesis, o contexto narrativo em que a Mimese se realiza, o espaço-tempo em que o evento e suas repetições acontecem.

Dando sequência às reflexões de Aristóteles sobre a arte de contar histórias, Vladimir Propp escreveu a Morfologia do Conto Maravilhoso (1978). Estudando um recorte bem específico (cem contos de fadas russos orais), o estudioso descobriu uma possível estrutura genérica da narrativa. Propp utilizava seus conceitos para descrever as narrativas específicas e não para prescrever uma tipologia ou modelo geral. Sua contribuição mais importante foi decompor a narrativa em 31 funções dramáticas possíveis[1]. Mas, essas funções narrativas em seu conjunto não formavam ainda uma estrutura e sim uma arqueologia. Por isso, é considerado um 'formalista', pré-estruturalista. Sua contribuição principal é decompor as histórias orais em funções e em ações dos agentes, facilitando sua comparação.

Outra contribuição relevante foi a de Joseph Campbell (1990, 1995[2]). Ele levou as ideias de Jung aos campos da arqueologia, antropologia e história das religiões, elaborando um modelo  segundo o qual todos os grandes mitos fundadores das culturas humanas seriam, em última análise, uma única narrativa universal: o 'monomito', também chamado de “Jornada do Herói”, em que o protagonista abandona a vida ordinária, mergulha no desconhecido e retorna à dimensão cotidiana. O modelo é composto de 3 fases e 17 momentos. E todas as histórias heróicas são na verdade a repetição dessa única estrutura narrativa.

O roteirista Christopher Vogler (1997) usou as teorias de Campbell para criar um memorando para os estúdios Disney. Vogler faz uma adaptação reduzida da jornada de Campbell, mantendo as três fases narrativas e reduzindo as 17 etapas para apenas 12. Hoje esse modelo narrativo é referência para produção de vários filmes, romances, histórias em quadrinhos e narrativas heróicas. E também para análise dessas narrativas. Porém, além da redução, o protocolo Vogler usa a estrutura da jornada como um modelo de organização das narrativas, completamente dissociado da observação psicológica e do desenvolvimento pessoal de si próprio.

Campbell, além descrever as narrativas de Buda, Moisés e Cristo em termos do monomito; também acreditava na jornada como um rito de passagem da infância para a responsabilidade comunitária, como um processo pelo qual todos passamos, mesmo que involuntariamente. Principalmente agora, que a sociedade enfatiza o risco para engendrar aventuras, todos são heróis em jornada "de iniciação" em sua trajetória do anonimato à consagração[3].

Aliando o formalismo narrativo de Propp ao caráter estruturante dos mitos em cada contexto cultural (enfatizado por Campell), as análises de Claude Lévi-Strauss comparam a mitologia a uma sinfonia musical, em que a melodia corresponde ao eixo sintagmático (a sucessão de notas no tempo contínuo) e a harmonia ao eixo paradigmático (notas simultâneas dentro de um acorde). E esta analogia permite ao antropólogo pensar em uma gramática universal do mito: a passagem da natureza à cultura (do crú ao cozido, do nú ao vestido, etc), o estabelecimento de regras de aliança e a separação entre humanos e não humanos. Existem três aspectos importantes na contribuição de Lévi-Strauss: a) A cultura é resultado do interditos sexuais familiares, de necessidades linguistícas específicas e da divisão do trabalho; b) a ação humana prevalece sobre a estrutura social (ao contrário do estruturalismo clássico); e c) o sistema de parentesco explica e supera o mito do complexo de Édipo freudiano. Aperfeiçoando a noção de estrutura social, como um modelo de múltiplas determinações das relações sociais, Lévi-Strauss critica seus antecessores por verem nos discursos e nas ações individuais meras execuções da estrutura social e não seu núcleo cognitivo. Jackobson pensou em uma linguística estrutural em que a fala fosse mais relevante que a língua. Lévi-Strauss adaptou essa ênfase a ação humana e a estrutura social. De forma que, para ele, a possibilidade de uma ação individual se exercer se encontra estruturalmente determinada sem que disto decorra uma obediência cega e inconsciente às regras sociais como na maioria dos estruturalistas; nem que, ao contrário, se caia em uma atitude deliberada e intencional,  idealista.

O outro ponto é referente ao sistema de parentesco (e às ideias de inconsciente e de recalque dos desejos de Freud). Enquanto Freud crê no complexo de Édipo e na sublimação dos instintos, Lévi-Strauss prefere descrever o tabu do incesto matrilinear como o centro de um sistema de recorrências involuntárias que tem como estrutura a perpetuação das relações de parentesco. Assim, Lévi-Strauss explica e supera a ideia de que a cultura é fundada na culpa de um crime sublimado. Neste modelo, a Natureza é o universal, o espontâneo e o inconsciente; enquanto a Cultura corresponde ao conjunto das regras relativas e particulares. Há diversas culturas e uma única natureza. O incesto matrilinear é a única regra universal para todas as culturas, epicentro das relações dos homens com seu ambiente. Apesar de ser um formalismo a-histórico, duplamente sem sujeito (sem agente nem auto referência de observação), o estruturalismo foi uma dupla reviravolta contra o etnocentrismo científico e o relativismo cultural, formando um inventário metódico do drama universal do homem em suas culturas.

Lévi-Strauss, Lacan, Bourdieu, Foucault, Barthes, Greimas – toda geração de pensadores franceses do pós-guerra, amigos entre si - fazem uma transição gradual do estruturalismo (e da morte do sujeito universal) para a pós-modernidade, caracterizada pela auto referência discursiva do enunciador, pela observação intersubjetiva, pela emergência do receptor ativo. Cada um faz essa passagem de uma forma diversa, em áreas diferentes do conhecimento, com variados percursos e perspectivas. Todos, no entanto, descobriram o próprio protagonismo frente às estruturas, sendo mais propositivos que analíticos, virando definitivamente essa página da história da teoria narrativa.

Embora o monomito de quatro atos de Lévi-Strauss (a transgressão do tabu, o castigo social, a conquista do fogo e a vingança) seja mais abrangente e mais profunda que o monomito da jornada do herói, seu modelo não é tão divulgado ou compreendido. Com alguma reflexão, no entanto, fica claro que o modelo narrativo levi-straussiano reinterpretando o complexo de Édipo explica boa parte das histórias individuais em nossa sociedade. A minha história, a sua história e a história pessoal do Lévi-Strauss nesses tristes trópicos são a mesma narrativa é uma prova de superação do estruturalismo.

Mas, voltemos a Campbell e aos que entenderam a dimensão psicológica da jornada.

Hillman e Campbell ficaram tão encantados com a noção de jornada que não perceberam as mudanças que a narrativa de Jesus Cristo introduziu nesse encantamento das vidas heroicas. A jornada, na versão cristã, deixou de ser épica, tornou-se uma tragédia e o sacrifício substituiu parcialmente a consagração. Digo 'parcialmente' porque, como demonstramos adiante, as características da jornada do herói solar (Gilgamesh, Hercules, que lutam contra deusas da natureza) se sobrepõem ao herói trágico que se sacrificar pelos outros.

E, após a história de Jesus Cristo, A Divina Comédia de Dante, Hamlet de Shakespeare e Don Quixote de Cervantes também vão provocar mutações significativas nos elementos simbólicos dessa jornada psicológica do protagonismo narrativo transmitida inconscientemente de geração em geração pela máquina mimética (GOMES, 2022)[4].

O monomito heroico, além de dinâmico, é também imprevisível. De uma hora para outra, o protagonismo feminino insurgiu frente ao antagonismo da sociedade patriarcal. A jornada agora é da heroína (a jornada da anima, que também implica no lado feminino dos homens), inclusive Na indústria do entreterimento.

Porém, apesar de ter vários elementos simbólicos em comum (a morte e ressureição), a jornada de Jesus é uma tragédia do ponto de vista narrativo e não uma narrativa épica e heroica. Além disso, o arquétipo do Messias é descendente (é a encarnação de Deus) e o do herói, ascendente (é o homem que se torna um semi deus).

Mas, o heroísmo, para Campbell (1990, p.141), é “o objetivo moral é o de salvar um povo, ou uma pessoa, ou defender uma ideia. O herói se sacrifica por algo”. Todos os heróis precisam passar por um ciclo de “morte” e renascimento por meio do sacrifício, físico ou espiritual, a fim de alcançar um objetivo. Os heróis em suas origens “morrem” como seres comuns em determinada passagem de sua história para retornar imortais. Melhor seria investigar os aspectos em que a história de Jesus NÃO se encaixa na jornada heroica, observando suas diferenças e inversões em relação às narrativas míticas. O herói mítico sai do mundo cotidiano, vai ao sobrenatural e retorna ao início no final. Ele supera obstáculos externos e dificuldades pessoais; sua narrativa sugere coragem e entusiasmo, tem um efeito de sentido que nos inspira à ação e a conquista de nossos desejos. E a história de Jesus é uma estória triste, que nos ensina a renúncia dos sentidos e do mundo material.

Então, enquanto o herói clássico sai do mundo ordinário, visita os reinos mágicos, morre e retorna ao cotidiano vitorioso; Jesus vem do reino espiritual, encarna no mundo material, morre e volta aos céus. Claro que também há a ressurreição e o paráclito, a promessa de retorno no fim dos tempos, mas esses 'retornos' ao mundo são diferentes da eterno retorno às origens da jornada tradicional.

“Dai a Cezar o que é Cezar; e a Deus o que é de Deus”. Esse misticismo radical em relação ao poder institucional (presente em todo Sermão da Montanha, por exemplo) foi utilizado pelo mesmo poder institucional como uma narrativa de colonização e incultação de culpa: o efeito de sentido da narrativa cristã na formação cognitiva do sujeito ocidental, a história de Jesus Cristo vista como um ‘modo de sujeição’ da jornada do herói, o dispositivo histórico do poder pastoral para ‘nos tornar iguais’ perante a Deus e ao Estado (GOMES, 2011a).

Talvez por achar Jesus muito submisso em relação ao mundo material e não concordar com a domesticação da vontade de poder pela consciência mística, o filósofo alemão tenha escrito o livro Assim falou Zaratrusta (2009), tentando propor um protagonista menos sofredor para jornada do herói ocidental. Nietzsche projetava em Zaratrusta um messias movido pela alegria e pelo amor (e não pela culpa e pela renúncia ao desejo). Entretanto, a história de Jesus tem um importante efeito de sentido simbólico na formação cognitiva do sujeito, um impacto de transformação da jornada, que a de Zaratustra (ou qualquer outra história), não tem. Ser sujeito é sujeitar-se. Sujeitar a própria vontade de poder. O cristianismo é, para o bem e para mal, um dispositivo de sujeição, de nos tornarmos menos animais e mais humanos. A Jornada passa reproduzir o heroísmo trágico que se sacrificar para servir. O argumento contra a igualdade de Nietzsche (1998) surge de sua crítica ao judaísmo e ao cristianismo (a igualdade perante a Deus) e depois se estende à modernidade democrática (a igualdade perante a lei). A igualdade, para ele, é uma doutrina de escravos. Seguir regras é ser “um escravo sem senhor” e a horizontalidade é tratada como um artificio de dominação dos mais fracos sobre os mais fortes – que se sacrificam sua liberdade em nome da igualdade. Liberdade entendida como vontade de potência humana resultante da morte de Deus.

Também Freud, ao postular o complexo de Édipo e considerar o cristianismo como um aperfeiçoamento perverso da neurose resultante do parricídio arcaico, estava se referindo a esta domesticação dos instintos e desejos na formação cognitiva do sujeito ocidental. O complexo de Édipo, da forma como foi posta em Totem e tabu (FREUD, 1990), afirma que a culpa de termos assinados nosso progenitor em termos primitivos foi que nos humanizou e que reproduzimos esse evento arcaico dentro do relacionamento familiar desde então. A psicanálise, no entanto, apenas reifica a culpa cristã em uma domesticação ainda mais perversa, o discurso confessional (FOUCAULT, 1982) e o regime de moratória ilimitada (DELEUZE, 1998). Para esses, seguidores da perspectiva de Nietzsche o cristianismo é um modo de sujeição, independente de gostarmos dele ou não.

Hoje tornou-se lugar comum a crítica ao cristianismo como algo desnecessário ao desenvolvimento do sujeito, mas há vários exemplos que validam a ideia de sua inevitabiidade. Uma narrativa relevante nesse sentido é a conversão ao cristianismo do psicanalista marxista W. Reich, em seu último livro, O assassinato de Cristo (1983). Ele entende a sujeição cristã do auto-sacrifício como um aprofundamento da subjetividade necessário ao desenvolvimento, um mundo sem bode expiatório ou macho-alfa. Acontece que essa narrativa é tão trágica e aterradora, que os próprios cristãos (para não sentir a catarse e a culpa de matar seu salvador) precisam de um Judas para malhar durante a semana santa.

A vida de Jesus Cristo como narrativa é a história do maior injustiça de que se tem notícia. É uma narrativa em que o protagonista encarna o papel de bode expiatório cósmico e universal. Ele morreu para redimir os pecados do mundo, ou melhor: os nossos pecados. E essa narrativa teve e tem uma importância na colonização do mundo, na domesticação dos corpos e das almas. O papel que o cristianismo desempenha sobre os indivíduos apenas consolida e amplia tendências culturais mais antigas, vindas de comportamento sexual e alimentar ascético dos latinos (o cuidado de si) e dos helênicos (o uso temperante dos prazeres). Ao enunciar um 'poder pastoral', Foucault quis levar a crítica de Nietzsche à ideologia cristã às últimas consequências como um modelo de domesticação social das almas. Mas esse não era o objetivo principal; seu verdadeiro projeto era entender "como nos tornamos sujeitos". Assim, como nosso objetivo aqui é compreender, através das narrativas e não da história da sexualidade, as mudanças simbólicas da estrutura da jornada.

Quando, nos primeiros versículos do décimo terceiro capítulo do Evangelho de João, Jesus lava os pés de seus discípulos, instaura-se uma nova forma de liderança e autoridade, uma nova conduta de poder se constitui tanto do ponto de vista ideológico como no organizacional. Por isso, Foucault e os pensadores nietzschianos em geral dão tanta importância à crítica do cristianismo, porque ele representa uma nova conduta de poder, que, diferentemente da conduta do 'príncipe' maquiavélico não se baseia na força ou da ação sobre os corpos, mas sim na admoestação das almas e da subjetividade pelo espírito de rebanho (GOMES, 2010).

As duas condutas, a do Príncipe e a do Pastor, rivalizaram e se completaram por muitos séculos. Durante toda primeira metade da Idade Média, enquanto os padres condenavam os pecados e perdoavam os pecadores, salvando-lhes as almas; os soberanos puniam os corpos dos criminosos. Essa sobreposição entre o poder da Cruz e o poder da Espada equivale a novas transformações da jornada heroica: Hamlet de Shakespeare, A Divina Comédia de Dante e Don Quixote de Cervantes.

Hamlet é uma peça teatral trágico-dramática que, apesar de aparentemente laica, tem um forte componente espiritual. O mundo é governado pelo mal; o herói astuto, filho do pai espiritual traído e morto, desmascara o usurpador através da representação teatral. O texto discute a relação entre o poder, a loucura e a realidade. Porém, ao final da jornada, todos morrem – ou seja: a jornada heroica baseada no complexo de Édipo nos levará à autodestruição (GOMES, 2016).

Já o longo poema A Divina Comédia de Dante é uma síntese de toda mitologia anterior realizada na perspectiva cristã, não apenas a mitologia clássica dos gregos e romanos, mas das mitologias arcaicas, em que a visita ao Inferno e às regiões subterrâneas não era nenhuma novidade. As deusas Inanna, da Suméria; Isthar da Babilônia; Deméter dos gregos; foram algumas das que desceram aos infernos para se tornarem senhoras dos três domínios (Céu, Terra e Inferno). Também, nos tempos patriarcais, vários heróis alcançaram a imortalidade descendo aos infernos. Há ainda os livros dos mortos (egípcio, tibetano, entre outros) que relatam o percurso da alma após a morte e que também podem ser interpretados como narrativas iniciáticas. A ideia aqui é a da jornada da alma em busca da iluminação e de sua união com a alma gêmea e com o divino (GOMES, 2011b).

Enquanto Hamlet conspira espiritualmente contra o poder do mundo material e Dante trilha sua jornada pós-morte em outras dimensões, o romance de provérbios Don Quixote de La Macha, o segundo livro mais lido do mundo, mostra um herói dividido entre dois mundos, o real e o imaginário. O herói torna-se um sonhador e um idealista. O protagonismo agora é corajoso e patético, digno de admiração e de pena. O adjetivo 'quixotesco' indica a disposição por lutar por causas impossíveis, de lutar contra 'moinhos de vento' e outros inimigos imaginários. E esse será o último modelo masculino de jornada heroica. Aliás, a Jornada do herói trágico não foi muito favorável as mulheres. Hamlet é uma narrativa misógina que deprecia o feminino (Ofélia se mata e a rainha Gertrudes é apenas uma peça decorativa). E Beatrice Portinari e Dulcinéia de Toboso, em Dante e Don Quixote respectivamente, são mulheres idealizadas, imaginárias, engendradas pela ideologia medieval do amor cortês. São histórias que inserem a narrativa do amor romântico dentro da jornada do herói, determinando um lugar secundário para o feminino.

A Jornada do Herói como processo iniciático é uma viagem eminentemente masculina, em um contexto cultural patriarcal. “Iniciação” é um rito de passagem em que um jovem torna-se membro adulto de uma determinada comunidade. Nas lendas que expressam esses processos, os heróis são sempre homens, enfrentando situações masculinas: lutando pela justiça e pela verdade.

As mulheres, nessas histórias, correspondem ao Sagrado Feminino ou “anima narrativa”, isto é, a representação projetada dos valores femininos do narrador (mediação entre autor e leitor) no interior da narrativa. Com isso, elas são ou meras coadjuvantes, sequestradas pelo dragão e resgatadas para o casamento alquímico final, e/ou então se associam com o mal e seus vilões, dificultando a vida do herói. Há também histórias em que a mulher é a protagonista em um universo com valores masculinos -como no filme Jogos Vorazes, por exemplo. Contar uma história iniciática (uma jornada heroica) em que a mulher e os valores femininos sejam realmente os protagonistas, é uma necessidade cultural e uma tendência narrativa contemporânea.

Em Mimese e simulação (GOMES, 2015) é um problematização sobre o herói trágico e a construção histórica e narrativa de um sujeito protagonista/narrador, em luta contra as estruturas narrativas do tempo, personificada na reinvenção contemporânea do mito das três moiras do destino, as tecelãs da intriga, arqui-inimigas do anti-herói pós moderno.

Porém, nos últimos anos, o protagonismo tornou-se feminino e a sociedade patriarcal tornou-se a antagonista de grande parte das narrativas.

Nos últimos anos, o protagonismo tornou-se o feminino e a sociedade patriarcal tornou-se a antagonista de grande parte das narrativas. O feminino não aceita mais seu antigo papel (de par romântico e refém do vilão) e torna-se também protagonista/narradora de sua identidade e de suas narrativas. Hoje percebe-se que não é suficiente que as mulheres se tornem protagonistas das próprias vidas, elas têm também que contar as próprias histórias.

Maureen Murdock (MARTINEZ, 2008, 139) era uma psicóloga que trabalhava com empoderamento de mulheres em situação de vulnerabilidade e através do processo de crescimento de seus pacientes elaborou a Jornada da Heroína. E o novo roteiro está gerando um tsunami de narrativas de protagonismo feminino, bem como trabalhos acadêmicos.

É a vida que imita a arte que imita a vida ou será que a arte que imita a vida que imita a arte? Quem veio primeiro: a narrativa ou o contexto? Esta é a dialética entre mimesis e diegesis. O contexto mostra; a narrativa conta. Mas, ambos são indissociáveis. Assim tanto as narrativas femininas formam um novo contexto das relações entre os sexos como o novo contexto forma ainda mais novos protagonismos.

E não se trata simplesmente trocar o gênero dos protagonistas. Há uma mudança dos valores masculinos (a conquista do poder, a justiça e a verdade acima dos interesses) por valores femininos (o cuidado, a solidariedade, a afetividade). Ao inves da superação através dos desafios de risco, agora o importante é entrar em contato com a própria essência.

Então, por que o conceito de narrativa tornou-se tão importante em nossos dias? Como tornou-se capaz de explicar e compreender outros sem contradizê-los? Além do aspecto material da linguagem, além do aspecto mental dos conteúdos, a narrativa é uma estrutura mais ampla formada por imagens, situações-design, objetos abstratos embutidos que dá sentido aos signos e aos discursos. A narrativa, mais do que uma mera representação dos acontecimentos, é um mapa interpretante do que está acontecendo - enraizado psicológicamente em cada um.

Estamos todos elaborando roteiros-narrativas para explorar o universo, para sistematizar experiências de vida e imaginar um futuro comum.  descobriram o próprio protagonismo frente às estruturas, sendo mais propositivos que analíticos, virando definitivamente essa página da história da teoria narrativa. Houve uma transição gradual do estruturalismo (e da morte do sujeito universal) para a pósmodernidade, caracterizada pela auto referência discursiva do enunciador, pela observação intersubjetiva, pela emergência do receptor ativo. Nesse novo momento, hermenêutico, Walter Benjamin, Umberto Eco, Paul Ricoeur, John Thompson e Luiz Gonzaga Motta lutam contra o relativismo pósmoderno, propondo métodos para que a autoreferência do observador e a semiose ilimitada não inviabilizasse a análise narrativa

Com advento da escrita uma ditadura do emissor ressalta a relação entre o enunciador e a referência (dividindo as narrativas entre reais e imaginárias) e instaura a metalinguagem no coração da arte moderna. A imagem e o sentimento foram secundarizado no significante.

Destaco alguns pontos importantes:

A intriga principal de uma narrativa é tecida por quem a escuta (como um sonho que lembramos de trás para frente e que Freud chama de processo elaboração secundária);

Com a semiose do receptor sendo primária, há uma inversão na ordem metodológica de analisar narrativas;

O autor-modelo (o actante destinador ou o contexto do emissor) e os leitoresmodelo (actantes destinatários ou os contextos de rececpção) são os limites da interpretação; e

A seleção/edição das narrativas e dos enredos que nos interessam são orientados pelos nossos afetos e ideias (e não pela intenção do autor ou pela própria linguagem).

Então, por que o conceito de narrativa tornou-se tão importante em nossos dias? Como tornou-se capaz de explicar e compreender outros sem contradizê-los?

Além do aspecto material da linguagem, além do aspecto mental dos conteúdos, a narrativa é uma estrutura mais ampla formada por imagens, situações-design, objetos abstratos embutidos que dá sentido aos signos e aos discursos. A narrativa, mais do que uma mera representação dos acontecimentos, é um mapa interpretante do que está acontecendo - enraizado psicológicamente em cada um. Eis nossa tese original: o futuro, o desfecho desejado, é o núcleo que intriga nos lembranças e preferências. A narrativa é a organização dos elementos passados e presentes de acordo com um projeto. A Identidade é forjada e celebrada pela memória e a memória, no sentido inverso, é atualizada e recortada pela identidade.

Por que estudamos narrativas? Para nos conhecermos; para aprender sobre o mundo; para distinguir entre o que é benéfico do que não é; para explorar o universo, para sistematizar experiências de vida e imaginar um futuro comum.

E para que serve o conceito de narrativa? Dois exemplos da aplicação do conceito de Narrativa para explicar discursos políticos contemporâneos:

TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO – Um exemplo de narrativa bem presente hoje em dia são as teorias da conspiração. A mídia promete a transparência total, o fim do governo invisível, mas hipervisibilidade midiática produz um GRANDE VAZIO, na realidade e no imaginário, em que proliferam iluminatis, reptelianos, alienígenas e outros governos invisíveis. As teorias da conspiração são narrativas que intrigam os fatos a partir da ideia de um governo invisível.

RELATIVISMO IDENTITÁRIO – A vontade política de estabelecer identidades livres do pensamento colonizador e misógeno está formando bolhas ideológicas fechadas, em que a memória é atualizada pela celebração de uma identidade fechada. Os movimentos identitários são narrativas de resistência cultural romântica ao poder.

A GUERRA DE NARRATIVAS – A relação entre a grande mídia e as redes sociais tende a criar diferentes interpretações dos fatos. As bolhas, fandons e outros grupos de opinião são produtos do relativismo identitário e da semiose ilimitada. Retribalização do mal. Uma segmentação interativa da cultura de massas.



[1]
      Estrutura narrativa em animações Disney e Morfologia do Conto de Propp <https://youtu.be/oaB-3KxMIwM> versão audiovisual do TCC/monografia 'Uma Introdução aos Fundamentos da Narratologia' – de Keven Fongaro Fonseca em Cinema e Audiovisual pela UFF, 2019.

[2]    O livro O poder do Mito é a transcrição de um documentário homônimo da BBC, uma longa entrevista de Bill Moyers com Josph Campell, editada em cinco episódios para DVD e disponível em: <https://youtu.be/kFzT03JL9X0>

[3]    O que faz um herói? - Matthew Winkler. https://youtu.be/Stdko2NIUNI

[4]    Publicado pela PAULUS: Revista de Comunicação da FAPCOM, n.12 ; 2023.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

educomunicação

UMA NOVA FILOSOFIA PEDAGÓGICA

Marcelo Bolshaw Gomes 


1. Introdução

A ‘Educação Midiática’ é um movimento mundial contemporâneo, que se desenvolve em vários países com características específicas. Em comum, a necessidade de uma adequação institucional entre mídia e escola, ou ainda entre a mídia e o aprendizado social (dentro e fora do entorno escolar).  A educação midiática, também conhecida como alfabetização midiática, refere-se à capacidade de analisar, avaliar e compreender criticamente os meios de comunicação e suas mensagens. Em um mundo cada vez mais saturado de informações provenientes de várias fontes, a educação midiática tornou-se uma habilidade essencial para os indivíduos navegarem com sucesso na sociedade contemporânea. 

A educação midiática envolve o desenvolvimento de habilidades para acessar, analisar, avaliar e criar mensagens em uma variedade de formas de mídia, incluindo notícias, publicidade, entretenimento, redes sociais e outras plataformas. O objetivo principal da educação midiática é capacitar os indivíduos a serem consumidores críticos e produtores responsáveis de conteúdo midiático. Isso inclui a compreensão de como as mensagens são construídas, quem as produz, como são distribuídas e quais impactos podem ter na sociedade. A educação midiática desenvolve habilidades como análise crítica, pensamento crítico, interpretação de mensagens, reconhecimento de viés, discernimento entre fatos e opiniões, e habilidades de produção de mídia. 

Os currículos de educação midiática podem abordar uma variedade de tópicos, incluindo ética na comunicação, diversidade e representação na mídia, alfabetização digital, segurança online e compreensão de como as plataformas de mídia funcionam. Com a predominância da comunicação digital, a educação midiática frequentemente se concentra em questões relacionadas à internet, redes sociais, notícias online, desinformação e fake news.

A educação midiática também enfatiza a importância da representação inclusiva de grupos diversos na mídia, promovendo a compreensão da diversidade cultural, étnica, de gênero e outros aspectos da sociedade. A ideia de ‘igualdade’ é equitativa e proporcional, não subtraindo as diferenças ou impondo maiorias em nome do coletivo. 

Muitos sistemas educacionais incorporaram a educação midiática em seus currículos, abordando essas habilidades em disciplinas como literatura, ciências sociais e até mesmo em aulas específicas de educação midiática. Através da educação midiática, os indivíduos são capacitados a tomar decisões informadas, a questionar fontes de informação e a participar ativamente na sociedade digital. A educação midiática é fundamental para equipar as pessoas com as habilidades necessárias para participar de forma crítica e consciente na era da informação, onde o acesso à mídia é ubíquo e as mensagens são abundantes e variadas. Sem tais habilidades cognitivas e tecnológicas para vida midiática, a pessoa será culturalmente excluída e relegada socialmente a condição de subalterno, não apenas do ponto de vista econômico, pela exploração do trabalho manual, mas, sobretudo, pela reprodução das desigualdades sociais em todos os níveis. 

A difusão das tecnologias da informação não resultou e não resultará em desemprego. Mas, as relações sociais entre o capital e o trabalho sofreram uma transformação profunda. A mão-de-obra está desagregada em seu desempenho, fragmentada em sua organização, diversificada em sua existência e dividida em sua ação coletiva. Capital e trabalho tendem cada vez mais a existir em diferentes espaços e tempos: o espaço de fluxos e o espaço dos lugares, tempo instantâneo de redes computadorizadas versus tempo cronológico da vida cotidiana. O Capital é global; o trabalho, local (Castells,1999, p. 499).

A educação midiática é importante tanto para que o capitalismo global forme as elites de diferentes países como também para os que lutam ampliação democrática da atual sociedade de redes. Entre as correntes progressistas da Educação Midiática atual, o movimento latino-americano da Educomunicação ocupa lugar de destaque. 


2. Educomunicação

O argentino Mario Kaplún (1998) desenvolveu, na década de 70, experiências de rádio e TV críticos e participativos com comunidades agrícolas. A iniciativa atesta a característica política do movimento latino (Bona; Conteçote; Costa, 2007). 

Barbas (2012), inspirada em Paulo Freire, enfatiza o caráter dialógico da Educomunicação, atribuindo a esta a capacidade, por meio do intercâmbio simbólico, de construção coletiva, colaborativa, participativa, criativa e transformadora. A Educomunicação é ainda um paradigma teórico de orientação de práticas sócio-educativo-comunicacionais, com o objetivo de criar e fortalecer ecossistemas comunicativos abertos e democráticos nos espaços educativos; é a interface Comunicação/Educação, constituindo-se como um campo transdisciplinar dialógico .

Conjunto de conhecimentos e ações que visam desenvolver Ecossistemas comunicativos abertos, democráticos e criativos em espaços culturais, midiáticos e educativos formais (escolares), não formais (desenvolvidos por ONGs) e informais (meios de comunicação voltados para a educação), mediados pelas linguagens e recursos da comunicação, das artes e tecnologias da informação, garantindo-se as condições para a aprendizagem e o exercício prático da liberdade de expressão (ABL, 2024).

Soares (2005, 2008, 2014, 2018, 2000, 2020, 2022) é o principal pesquisador responsável pelo desenvolvimento da Educomunicação, tanto como teoria (adaptando os conceitos de ‘autonomia’ de Paulo Freire, de ‘dialogia’ de Mikhail Bakhtin e de ‘mediação’ de Jesus Martin-Barbero) quanto como prática pedagógica, principalmente através do curso de licenciatura da USP  e da rede municipal de ensino de São Paulo . Exemplos práticos de Educomunicação são o uso de rádio escola, web rádio virtual, jornal comunitário, videogames didáticos, softwares de aprendizagem on-line, podcast, blogs, fotografia, produção de notícias para veiculação em mídias comunitários.

O movimento corresponde há quatro demandas atuais (Almeida, 2024, p. 11):

a) em âmbito internacional, os media studies, chamados aqui no Brasil de mídia-educação ou educação para a mídia, que subsidiam os estudos educomunicativos na”;

b) a pedagogia da comunicação, que congrega textos e autores (como Freinet, Vygostky, entre outros) que problematizam a influência entre os dois campos;

c) arte-educação, reunindo textos do campo das artes e da educação, servindo de base para a área de expressão comunicativa por meio da arte; e

d) gestão da comunicação, deriva da interseção entre disciplinas da administração (como marketing) e da comunicação social (relações públicas e publicidade).

O uso de tecnologia para fins educacionais de formas equivocadas - como a EAD (a educação tradicional a distância com turmas gigantes) e a gamificação que se utiliza da ludicidade para formar pessoas competitivas – não tem nada de ‘libertadoras’, são adaptações da tecnologia da comunicação para o aperfeiçoamento do status quo. Não se trata de como usar o celular na sala de aula, mas, sim, de como usar o celular para mudar os hábitos, de como usar a tecnologia para se libertar do enquadramento social e não de ser melhor condicionado socialmente através de máquinas. Apenas incorporando as pedagogias voltadas para o desenvolvimento cognitivo (Montessori, em relação à motricidade; Vygotsky, em relação às interações; Freinet, em relação à comunicação) pode-se pensar em tecnologia na educação. 

A Educomunicação é bastante diferente das chamadas Tecnologia de Informações e Comunicação (TIC). As TIC veem a comunicação (as “mídias sociais”) de forma instrumental, colocando ênfase nos conteúdos e efeitos produzidos em uma estratégia para tornar o aprendizado mais atraente para o aluno. A TIC substitui o quadro negro pelo telão interativo como ferramenta. Já a Educomunicação coloca a sua ênfase no processo construtivista, em que o aluno incorpora a tecnologia a si e é sujeito do conhecimento que produz. 

Do ponto de vista teórico, a dois pontos que considero importantes de ressaltar: o conceito de ‘ecossistema educacional’ e a prática de ‘intervenções pedagógicas’ coletivas em escolas, comunidades e instituições. 


3. Ecossistema educacional

O conceito de sistema mudou muito no decorrer do tempo. De um “espaço em que os elementos interagem entre si” do funcionalismo (Parsons) para um “conjunto de relações auto organizadas para autonomia em relação ao exterior” (Maturana e Luhmann), houve um longo percurso. No começo, os sistemas tendiam à homeostase, ao equilíbrio interno. Com a cibernética, os sistemas se organizavam contra a entropia, para resistir ao caos. Hoje, a autopoesis - a autonomia sistêmica através da auto-eco-organização (da complexidade internas de seus feedbacks e da diversificação de entradas e saídas) - é o objetivo dos sistemas. É o que faz de sistema, sistema. 

Nesse novo paradigma, todos os fatores estão conectados, os sistemas não se excluem. Aliás, a diferença entre um sistema e outro, é apenas de perspectiva e ênfase, uma vez que se trata de uma única realidade. A ideia de um ecossistema educacional, por exemplo, não se limita as instituições escolares, mas também observa o aprendizado social em outros ambientes, como a família e a comunidade. Até mesmo instituições de outros sistemas (econômicas, repressivas, mídia) participam indiretamente através de restrições (perdas, punições, constrangimentos) e de incentivos (financeiros, culturais, simbólicos) do ecossistema educacional. O ecossistema é complexo e integral. Ele faz parte de outros ecossistemas e outros ecossistemas podem ter interseções com ele. 

O ecossistema de uma escola municipal faz parte dos ecossistemas comunitário, regional, nacional e global. Também faz parte do ecossistema de ensino como um todo, que envolve as secretarias municipal e estadual, a rede privada do local, as universidades, o ministério da educação e vários institutos. 

Além de fazer parte de outros ecossistemas maiores, existem ainda acoplamentos estruturais, conexões horizontais entre sistemas. A própria ideia de ‘Educomunicação’ é ecossistemática, porque representa uma prática de interface transversal (e interseção) entre dois sistemas com objetivos distintos. 

Muitas conexões sistêmicas não são evidentes. A cultura, por exemplo, é um dos fatores invisíveis mais importantes para entender o ecossistema educacional. Pode-se observar sua influência tanto em relação aos professores (se têm uma cultura de excelência ou de sobrevivência em relação à formação continuada) e das famílias dos alunos (em termos de formação e acesso à informação).

Qualquer espaço de interação que gere aprendizado podem ser considerado ‘ecossistema educacional’. Uma cozinha, um time de futebol, uma família. Porém, a classificação clássica é que existem ecossistemas escolares, comunitários e corporativos. Para Educomunicação, o ecossistema educacional deve ser um ambiente de aprendizagem que valorize a individualidade e promova a autonomia e engajamento crítico dos alunos. A ideia central é que, através de intervenções pedagógicas e midiáticas, possa-se melhorar os ecossistemas educativos. 


4. A intervenção educomunicativa

A Educomunicação é uma abordagem que integra processos de comunicação e educação para promover o aprendizado de forma colaborativa e participativa. As intervenções educomunicativas são ações socioculturais que visam atuar em situações de conflito e desigualdade. O objetivo, mais do que ensinar, é conscientizar as pessoas do contexto e torna-las protagonistas de suas próprias vidas. Eis porque se considera herdeira de Paulo Freire. Ele também utilizava o letramento alfabético como uma ferramenta necessária à conscientização do contexto social. Hoje, alguns exemplos das ferramentas da intervenção educomunicativa são: Rádio escola, Web rádio virtual, Jornal comunitário, Videogames, Softwares de aprendizagem on-line, Podcasts, Blogs e Fotografia. Todas essas técnicas de letramento midiático, no entanto, não visam apenas a constituição de uma competência midiática , mas são sobretudo constitutivas de uma formação cidadã dos alunos. 

Existem, conforme Soares (2014c, sete áreas simultâneas de intervenção Educomunicativa: 1) Educação para a Comunicação (EC); 2) Pedagogia da Comunicação (PC); 3) Gestão da Comunicação (GC); 4) Mediação Tecnológica na Educação (MTE); 5) Produção Midiática Educativa (PME); 6) Expressão Comunicativa através da Arte (ECA); e 7) epistemologia da Educomunicação (EE). Recentemente se apresentou a proposta de duas novas áreas de intervenção: educação para a Transcendência e Direitos Humanos (Almeida, p. 22).

O primeiro passo é o Diagnóstico. Problemas como violência escolar e dificuldades de convivência são diagnósticos inadequados. O ideal é começar a partir de um levantamento de dados (como, por exemplo, a quantidade e locais de brigas ocorridas). O diagnóstico tem um efeito terapêutico realizado a partir de falas dos envolvidos e também utilizando rodas de conversa para levantar como o problema está ocorrendo. Porém, o mais importante é o mapeamento dos fluxos de comunicação do ecossistema. Onde não há comunicação? Quais conflitos precisam se tornar diálogos? Quais problemas são estruturais e quais são apenas passageiros?

A segunda etapa é o Planejamento. Para tanto, é preciso escrever um projeto de intervenção detalhando três aspectos.

Apresentação consiste em elucidar o problema, que deverá ser esmiuçado a partir do diagnóstico. Assim, essa etapa do projeto é apenas uma pequena explicação do que está acontecendo e dos motivos pelos quais é preciso realizar a intervenção.

Intervenção pedagógica é formada pelas ações que se pretende fazer para modificar a situação apresentada. São utilizadas aqui as sete áreas de intervenção.

Metodologia É preciso traçar Objetivos (semestrais e anuais) para serem realizados, bem como quantifica-los em Metas e elaborar Estratégias de como realiza-los. Também é necessário um Cronograma - para indicar em quanto tempo o projeto será realizado e quando será colocada em prática cada uma das etapas 

A terceira fase do projeto corresponde a Execução das Ações e a observação de seus resultados imediatos; e a quarta e última etapa é a Avaliação. Além de analisar os parâmetros da Metodologia (Objetivos, Metas, Estratégias e Prazos) em relação às sete áreas de intervenção, uma avaliação educomunicativa deve auferir ganhos e perdas simbólicos na auto-organização do ecossistema, deve ser uma auto avaliação coletiva, com ampla participação na análise e interpretação dos resultados. 

A intervenção educomunicativa NÃO é uma interdição, uma invasão, uma imposição ou uma interrupção nos processos institucionais. Ela atua esclarecendo os problemas e oferecendo alternativas, acrescentando mais que corrigindo. 

E há ainda os três grandes campos institucionais de aplicação da Educomunicação (Almeida, p. 20):  a escola, a mídia e o terceiro setor.

EDUCOMUNICAÇÃO CORPORATIVA – A utilização das estratégias da Educomunicação nas empresas e instituições governamentais. A Educomunicação socioambiental foi resultante de um trabalho corporativo no ministério do meio ambiente. 

EDUCOMUNICAÇÃO COMUNITÁRIA – A utilização das estratégias da Educomunicação não apenas em comunidades territoriais, mas também em sindicatos, associações, movimentos sociais. 

EDUCOMUNICAÇÃO ESCOLAR – A utilização das estratégias da Educomunicação no ensino médio, no ensino básico, no ensino superior, como também em cursos livres de teatro, dança, línguas, etc. 

Essas sete áreas de atuação são aplicadas, de modo diferente e desigual, a cada campo institucional. Assim, no ambiente corporativo, a GC e a PME podem ser mais importantes; no espaço comunitário, as áreas de atuação de EC da ECA são mais comuns; enquanto PC e EE são assuntos mais voltados para o campo educacional. 

Porém, de uma forma geral, a GC trata de como o comunicação é administrada pela organização, quanto se gasta com comunicação, quais os recursos disponíveis, quais são subutilizados. Além de um diagnóstico específico, cada área tem também um planejamento e uma avaliação próprias. A TME trata de como a organização utiliza a tecnologia: existem redes? O treinamento é audiovisual? Quais são os clientes (outputs) e fornecedores (inputs) do ecossistema? A PME e ECA muitas vezes surgem como soluções para os problemas encontrados: criar um mural na frente da sala do diretor, um grupo de zap para os professores, um jornal da escola para os pais, conteúdo audiovisual para as aulas, um podcast para disciplina tal. A expressão comunicativa através da arte e a produção midiática devem responder as demandas ou as ausências de comunicação. EE, EC e PC são áreas mais informativas. A Epistemologia representa ações de divulgação dos conceitos e da teoria da Educomunicação, para que os integrantes da organização saibam do que se trata. Já a Educação para Comunicação é trata de ensinar a assistir criticamente à mídia; e, no sentido contrário, a Pedagogia enfatiza o lado comunicacional do aprendizado e a necessidade de treinamento. 


5. Considerações finais

Existem várias iniciativas globais e locais que promovem a educação midiática. Essas iniciativas visam desenvolver habilidades críticas em relação ao consumo e produção de mídia, capacitando as pessoas a navegar no mundo da informação de maneira mais consciente. Algumas iniciativas incluem: Media Smarts (Canadá) ; Media Literacy Now (Estados Unidos); BBC Own It (um aplicativo do Reino Unido);  MediaWise (organização Internacional sem fins lucrativos); Digital Citizenship Education (Europa).  Center for Media Literacy (Estados Unidos);  #ThinkBeforeSharing (Filipinas): Edukasi Media (Indonésia). Essas iniciativas são exemplos de esforços em todo o mundo para promover a educação midiática em diversas comunidades. Elas variam em escopo, público-alvo e abordagem, mas compartilham o objetivo comum de capacitar as pessoas a se tornarem consumidores críticos e participantes responsáveis na era digital.

A Educação Midiática é estratégica em relação a inclusão social. Inclusão dos portadores de deficiência de diferentes tipos, uma vez que a tecnologia abre a possibilidade de sua integração plena, como também no sentido de diversidade cultural de nosso país, para que não se reproduzam culturalmente desigualdades sociais.

Para tanto, a formação inicial e continuada de professores que atuam na educação brasileira precisa ser preparada. A midiatização da escola começa com a de seus professores e gestores. E essa é a missão da Educomunicação: a midiatização escolar. Ou melhor a inclusão da escola em uma sociedade midiatizada. Seu objetivo é formar profissionais que atuem como agentes dessa midiatização. 

Enquanto a Educação Midiática em geral trata de treinar alunos para conviver criticamente com a mídia, a Educomunicação abrange ainda três áreas distintas conexas: a TEM (mediações externas e internas, redes e bancos de dados), a ECA (Arte-Educação) e a GC (treinamento audiovisual e marketing). Não se trata apenas de educação para mídia, mas também de desenvolver habilidades técnicas, artísticas e administrativas. 

No Brasil, como dissemos, as principais iniciativas visando promover a Educação Midiática, capacitando indivíduos a compreender, analisar criticamente e utilizar de forma consciente os meios de comunicação, são de cunho educomunicacional: Licenciatura em Educomunicação, na ECA-USP; Bacharelado em Educomunicação, da Universidade Federal de Campina Grande; Coleção Educomunicação, da editora Paulinas; Série Comunicação e Educação, da editora Editus; Revista Comunicação & Educação; Grupo de Pesquisa em Educomunicação, da Associação Ibero-Americana de Comunicação (Assibercom / Ibercom); Lei nº 13.941, de 29 de dezembro de 20046, instituidora, no município de São Paulo, do programa Educom: Educomunicação pelas ondas do rádio; Programa Mais Educação, que abre espaço, entre as suas dez áreas de atividades opcionais, para as escolas desejosas de participar do programa Ensino Médio Inovador, introduzindo o “macrocampo Educomunicação”; e A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que proclama a necessidade de se pensar as relações entre comunicação e educação. 

Em âmbito nacional, nos últimos 20 anos, foram publicadas 291 investigações específicas sobre Educomunicação. O banco de teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), fundada pelo Ministério da Educação (MEC), informa que, nos últimos 20 anos, foram publicados 37 trabalhos de pós-doutorado, 41 teses de doutorado e 213 dissertações de mestrado, num total de 291 investigações sobre Educomunicação. 

O conjunto de teses foi produzido em 90 programas de pós-graduação, em áreas como educação, comunicação, psicologia, informática, entre outras, em 87 universidades de todo o país . Entre o ano de 2000 e 2014, foram defendidas, 110 dissertações e teses doutorais sobre o conceito, em centros de pós-graduação em Comunicação, em Educação e nas diferentes áreas das Ciências Humanas e Sociais . Também ressalte-se a importância estratégica para o entrelaçamento da produção ibero-americana sobre Comunicação/Educação de revistas especializadas como “Comunicar” (Grupo Comunicar, 1993); “Comunicação & Educação” (Universidade de São Paulo, Brasil, 1994) e “Aularia” (Grupo Comunicar, 2012).

“A sociedade civil criou a Educomunicação e a academia a sistematizou”. A Educomunicação não é uma pedagogia ou uma metodologia de ensino. Ela é uma filosofia, uma prática social e um movimento. A Educomunicação é uma área que nasce motivada por determinado quadro histórico, aquele no qual vicejavam as ditaduras latino-americanas dos anos 1960. Ela é um continuação da filosofia pedagógica freiriana, trabalhando com alfabetização das linguagens para despertar a consciência do contexto. 


Referências

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AGUADED, I.; SANTOS, V. M.; CHIBÁS-ORTIZ, F.; VIZCAÍNO-VERDÚ, A. (Coords.) Currículo Alfamed de formação de professores em educação midiática. Instituto Palavra Aberta/Alfamed. 2021.

ALMEIDA, Lígia Beatriz Carvalho de. Projetos de intervenção em educomunicação [recurso eletrônico].  Campina Grande: EDUFCG, 2024.

APARICI, R. (Coord.) Educomunicación: más allá del 2.0. Barcelona: Gedisa, 2010.

BARBAS, A. Educomunicación: desarrollo, enfoques y desafíos en un mundo interconectado. Foro de Educación, n. 14, p. 157-175, 2012.

BONA, N.; CONTEÇOTE, M. L.; COSTA, L. Kaplún e a comunicação popular. Anuário Unesco/Metodista de comunicação regional, Ano 11, n.11, p. 169-184, jan./dez. 2007.

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______ “Comunicação e Educação no contexto da crise das instituições paradigmáticas: a emergência da educomunicação”, in PRATA, Nair e PESSOA, Sônia Caldas (orgs). Fluxos comunicacionais e crise da democracia. São Paulo, Intercom,2020, pg. 44-63. ISBN: 978-65-990485-4-8. Acesso: http://www.portcom.intercom.org.br/ebooks/arquivos/fluxos30112020.pdf  

______ “Comunicação e a pedagogia libertadora de Paulo Freire”, in PRATA, NAIR & LIM, Fábia (Orgs) Comunicação e Resistência: práticas de liberdade para a cidadania. São Paulo: Intercom, 2022, pg. 99-121. ISBN 978-85-8208-133-4. Acesso: < http://www.portcom.intercom.org.br/ebooks/arquivos/comunicacao-e-resistencia-praticas-de-liberdade-para-a-cidadania1409.22.pdf  

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

colonização e dupla consciência

 

DUPLA CONSCIÊNCIA

Fundamento de uma Estratégia Decolonial


Marcelo Bolshaw Gomes


É uma condição universal de todos países colonizados do mundo é que existam sempre dois grupos locais em conflito secundário. O conflito principal é contra o colonizador, mas os grupos discordam sobre o que fazer: enquanto um grupo quer negociar, o outro quer resistir até a morte. O bom senso sugere que as duas soluções são erradas. A negociação sem resistência leva a conformidade e a recusa radical à destruição. Um grupo tem consciência da situação, mas não tem consciência de si. O outro tem consciência da própria cultura, mas não tem consciência do contexto histórico. A única saída é a Dupla Consciência e a inversão do conflito secundário, com reformistas e radicais aprendendo a trabalhar de modo alternado em relação ao invasor externo. 

A noção de 'dupla consciência' surgiu em um contexto de luta contra o racismo no livro The souls of black folk, de 1903 (Du Bois, 1970) e até hoje é importante para definir a situação ambígua das pessoas negras nas Américas. Mas, a contribuição é universal e também pode ser aplicada a outras condições de dissociação vida biológica e vida cultural. Interessa-nos, principalmente, as abordagens que colocam a questão da dupla consciência do ponto de vista da colonização latino-americana, como um conflito psicológico entre o eu-colonizador e o eu-colonizado (Gonçalves, 2014; 2016).

Du Bois foi o primeiro doutor em ciências sociais negro, ativista dos direitos civis, militante socialista, sociólogo pan-africanista, autor e editor de vários livros e fundador de uma das mais importantes organizações negras da história americana, a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP). 

Para ele, a dupla consciência de ser negro e de ser americano é resultante de uma dialética entre a conquista da igualdade e a integração da população negra como cidadã (ponto de vista representado por Martin Luther Kin) e a ênfase em uma identidade cultural própria, defendida por Malcolm X. Luther King enfatizava os direitos civis e a cidadania americana para todos os afrodescendentes, materializada no direito ao acesso a banheiros, escolas, transportes e espaços públicos – em igualdade com os brancos. Já Malcolm X defendia uma comunidade negra americana e a reafricanização simbólica como identidade cultural.

E a noção de dupla consciência abrange as duas demandas: o direito à igualdade individual e o direito à identidade coletiva própria. O “mundo dos brancos” convive com o “universo negro” como sendo dimensões culturais de uma mesma realidade social.

Atualmente, a noção de dupla consciência é aplicada em estudos sobre o Facebook (Oliveira, 2014), observando a relação entre o 'mundo off-line' e o 'virtual'. Há dupla consciência em Platão (os mundos sensível e inteligível, o lado de fora e de dentro da caverna), em Aristóteles (a física e a metafísica) e até em Marx (consciência de classe em si na infraestrutura e consciência de classe para si na superestrutura). Há sempre uma consciência-percepção do mundo objetivo e uma consciência simbólica de suas interpretações.

Porém, o trabalho que ajudou a popularizar a noção de dupla consciência duboisiana e a consolidá-la no contexto da desigualdade social da colonização foi O Atlântico Negro – modernidade e dupla consciência (2001) de Paul Gilroy. O livro é uma viagem marítima pelo mundo das populações negras do Atlântico e a formação de uma cultura global mestiça de várias etnias africanas e americanas nativas. A dupla consciência, nesse caso, se refere a formação e a convivência entre culturas tradicionais dominadas e a modernidade ocidental dominadora.

Gonçalves (2014, 2016) estuda a dupla consciência latino-americana resultante do “tensionamento estrutural entre colonialidade do poder e mestiçagem crítica”. Colonialidade do poder (Quijano, 2005) é “a matriz do pensamento e das práticas sociais próprias ao mundo do colonizador: o racialismo, controle do trabalho, dominação de gênero, colonização da natureza e pensamento eurocêntrico”. E a matriz do colonizado é, para Gonçalves, “a mestiçagem crítica”.

A partir da estrutura cindida entre as duas matrizes de pensamento – colonizador e colonizado – a formação latino-americana estabelece uma dupla consciência histórica. Desde o início da colonização – momento de convulsão extrema que deu origem à modernidade – já está presente a oposição entre, de um lado, a colonialidade do poder – matriz de pensamento do colonizador – e, de outro, a mestiçagem crítica, matriz de pensamento que caracteriza os processos de resistência dos povos colonizados. 

Essa duplicidade, o tensionamento e o conflito entre essas duas matrizes, é a estrutura dinâmica que caracteriza a formação das populações do continente em sua reprodução social e em sua intersubjetividade. Está presente nas relações, nos afetos e no pensamento da população do continente.

Existem, em tese, dois extremos. 

Há lugares que fomos completamente colonizados, em que não temos nenhuma caraterística cultural que nos defina e diferencie dos outros. Mas, há um preço: o complexo de vira-lata, ver o mundo e a si próprio através dos olhos do outro-colonizador, varrendo para o inconsciente seu 'eu colonizado' e sua submissão servil ao exterior. Esse ponto de vista, equivale ao “etnocentrismo epistemológico”, em que a ciência ocidental se sobrepõem aos saberes de outras culturas, que a modernidade global se sobrepõe às tradições locais. 

Como também há lugares em que, ao contrário, o 'eu colonizador' é que é escondido (e demonizado) e o 'eu colonizado' é exaltado, através do nacionalismo e do regionalismo. Na maioria desses casos, a defesa radical da identidade territorial e das tradições colide com valores universais de idosos, mulheres e crianças. A identidade cultural fechada gerou o fenômeno do populismo e da manipulação das culturas populares. E agora gera o fenômeno do fundamentalismo, das 'bolhas ideológicas' das redes sociais. Esse é o “relativismo identitário”.

Na prática, há uma luta entre a identidade imposta e a auto definida, com resultados em diferentes graus, arranjos (de inclusão e exclusão de elementos simbólicos) entre o imposto e o exposto, entre o social e o pessoal, entre o arbitrário e o subversivo. Mas, há também um terceiro termo produzido pela dupla consciência: “a mestiçagem crítica”, a resistência criativa à aculturação colonizadora.

Em O povo brasileiro, Darcy Ribeiro (1996) afirma que identidade brasileira é singular em relação a de outros povos colonizados; tanto em relação aos povos testemunhais (andinos e mexicanos), que guardam os traços distintivos de antigas civilizações Inca e Asteca; como também em relação aos povos em que as características culturais dos colonizadores passaram a ser dominantes, como os canadenses. Nos povos em que a identidade étnica nativa é forte (como na Bolívia e no México, por exemplo), há uma rejeição popular da cultura colonizadora. 

Já nas culturas em que a identidade nativa é fraca, todos se consideram descendentes dos colonizadores, como na Argentina ou no Canadá. No primeiro caso, há uma rejeição da cultura colonizadora e uma adesão à identidade local; no segundo, há não apenas uma aceitação, mas, sobretudo, uma identificação cultural da população nativa com a cultura colonizadora cristã, racista, misógina e violenta.

A cultura brasileira, nessa concepção, nem rejeita (fechando-se em uma cultura de resistência popular) nem se identifica (reproduzindo os valores externos) com o colonizador. Há uma identidade cultural ‘não definida’, permitindo que o povo brasileiro se reinvente com dois resultados: o bricoleur das elites e a ninguendade das massas. Por um lado, as elites 'devoram antropofagicamente' o colonizador. Mas, por outro, há também uma massa amorfa de bastardos sem rosto, em um estado permanente de apatia indiferenciada: uma multidão de anônimos sem rostos formada por pardos, morenos, mulatos, cafuzos e mais cinquenta e tantos tons de cinza.

No Brasil, nos anos 20, surgiram dois projetos de identidade moderna: a antropofágica e a nacional-popular. A modernidade do ponto de vista cultural, o movimento modernismo, primeira forma de expressão da classe média urbana republicana, pode ser subdividido em dois comportamentos distintos em relação à produção de bens simbólicos: o antropofágico e o nacional-popular.

O antropofágico, formalizado por Oswald de Andrade, é a vertente da vanguarda estética brasileira de produzir uma cultura de exportação a várias outras manifestações culturais (Hélio Oiticica, a bossa nova, a poesia concreta, o cinema novo, o tropicalismo) mais preocupadas em se sincronizar ao cenário internacional do que produzir uma identidade nacional-popular. Em oposição a esta vertente oswaldiana da modernidade brasileira, coloca-se o projeto iniciado por Mario de Andrade e pelos artistas inspirados pelas temáticas regionais e sociais (Graciliano Ramos, Jorge Amado, entre tantos). Os dois projetos (o antropofágico mais voltado para as elites e o nacional-popular mais voltado para os trabalhadores) acabaram absorvidos pela industrialização cultural. O preço da criatividade rebelde das elites foi pago com a descaracterização cultural das massas, com o apagamento da identidade local e a uniformização do consumo. A essa qualidade de assimilação e reinvenção cultural, Darcy Ribeiro dá o nome de ‘ninguendade’ – a identidade da não-identidade, a cultura do zé ninguém, aquele que não se reconhece na imagem do outro, nem também ousa elaborar uma imagem própria. A cultura brasileira é um projeto aberto ao que está por vir e não uma referência simbólica do passado sobre à atualidade. ‘Um povo sem memória, mas com grande esperança’. Assim, miscigenação não nos torna iguais nem nos faz um mix de qualidade culturais e defeitos étnicos. Ela é uma apenas identidade vazia ou quase: “o país do futuro” e um eterno “gigante adormecido em berço esplêndido”.

O ideal antropofágico foi uma metáfora poética desta mestiçagem crítica, que pretendia combinar elementos simbólicos locais com a cultura global. Hoje, para definir a mestiçagem crítica sem resvalar nem para o etnocentrismo europeu nem para o relativismo cultural da identidade fechada, coloca-se a noção de ‘Dupla Consciência’: ter consciência do mundo e ter consciência de si.

Mas, voltemos ao começo: quando os colonizados brigam entre si, os colonizadores logram a dominação efetiva “dividindo para governar”. Mas, quando os dominados se unem? Quando uma parte assimila e a outra protesta?

Na teoria do cerco guerrilheiro, o procedimento conhecido por ‘alternância repetida de operações táticas contrárias’ é geralmente atribuída a Mao Tse-Tung, mas com notável influência das artes marciais chinesas, do jogo de tabuleiro “Go” e do livro A arte da guerra (2007), de Sun Tzu.

Essa estratégia é composta por três princípios: 1) tenha e mantenha a iniciativa; 2) ataque se defendendo e se defenda atacando; e 3) ataque apenas os pontos fracos do inimigo e defenda apenas seus pontos fortes (ou nunca ataque os pontos fortes do inimigo e nunca defenda seus pontos fracos). Alguns comentaristas unem esses dois princípios em um: ataque sempre os pontos fracos adversários, defenda apenas os seus pontos fortes. A ideia é (através da repetição alternada desses movimentos) forçar o inimigo a defender seus pontos fracos (que atacamos para nos defender) e induzir os adversários a atacarem nossos pontos fortes (que defendemos sempre como movimento de ataque). Essa manobra força o inimigo a sair de sua área de conforto e entrar em nosso campo, permitindo encurralá-lo. 

A estratégia foi criada para a guerrilha territorial, mas pode também ser aplicada a um debate ideológico. Imagine uma pessoa de esquerda (ponto forte: programas sociais; ponto fraco: estado ineficiente e corrupto) debatendo com uma de direita (ponto forte: liberdade individual; ponto fraco: desigualdade). O esquerdista ataca defendendo os programas sociais e se defende atacando o mercado. O direitista ataca o estado e defende o livre comércio. Caso o esquerdista defenda o Estado e clame pela regulamentação da liberdade econômica, vai estar caindo no campo de argumentação da direita. Porém, se ele insistir na defesa dos trabalhadores e atacar as injustiças sociais poderá acontecer o inverso. Caso o direitista ataque os programas sociais e defenda diretamente o capitalismo estará caindo no campo discursivo de esquerda. 

É claro que a estratégia só funciona graças ao primeiro princípio (tenha e mantenha a iniciativa) e a capacidade de estar sempre um passo à frente do inimigo no planejamento das ações, fazendo planos dentro de planos contrários, armadilhas dentro de armadilhas, atraindo o adversário para seu campo até cerca-lo. 

Aplicado ao conflito colonial, essa estratégia implica em que os colonizados ‘joguem’ juntos contra o colonizador. Lenin tinha um planejamento estratégico baseado em uma dupla dialética entre a luta de classes e a luta contra o imperialismo. Porém, considerava a contradição interna principal. Já Mao Tse-Tung inovou considerando o imperialismo (o capitalismo internacional) como seu inimigo principal secundarizando o conflito interno. Além disso, utilizou vários elementos simbólicos da cultura chinesa tradicional: adotou a ideia de cerco do popular jogo tradicional ‘Go’; adicionou as táticas de ‘guerra de movimento’ x ‘guerra de posição’, elaboradas na Arte da Guerra; e aproximou a dialética marxista da alternância de movimentos defesa e ataque (representados pela mandala do ying e yang) do Tai-Chi e do Kung-fu. 

Reza a lenda que Vietnam, Nicarágua e o PC do B na guerrilha do Araguaia no Brasil utilizaram esse modelo de “cerco chinês”, baseado na “alternância repetida de operações contrárias” em seus movimentos, mas, a verdade é que não existe uma explicação completa dessa teoria, nem nos manuais de guerrilha rural do passado, nem no campo da guerrilha cultural da globalização contemporânea. 

Assim, a divisão dos colonizados entre pró e contra é a chave da vitória do processo de colonização e, ao mesmo tempo, a única forma de resistência cultural dos colonizados. E cada um tem sua cultura, mas a natureza é universal. A cultura global é formada por fragmentos que espelham dentro de si uma totalidade inexistente no exterior. Temos, assim: o 'eu-colonizador', representa a ciência etnocêntrica/cultura moderna; o 'eu-colonizado', correspondendo ao identitarismo relativista em suas diversas formas; e o diálogo/dialética formador da mestiçagem crítica e do pensamento complexo. 

Se negamos nosso eu-colonizado, nos tornamos uma caricatura dos verdadeiros colonizadores (daí a inautenticidade moderna); se negarmos nosso eu-colonizador, nos tornamos uma caricatura fanatizada dos verdadeiros colonizados, construindo identidades artificiais para esconder as relações de poder. O comportamento adequado em relação a dupla consciência desses eus (ou dessas condições) é a mestiçagem crítica. Esse terceiro termo, nasce do conflito entre os dois primeiros, da transformação do choque das identidades pela dupla consciência. 

A ciência, nesse terceira posição, não é nem objetiva como quer o etnocentrismo nem subjetiva como pensa identitarismo relativista, e sim baseada na observação intersubjetiva aberta, no consenso circunstancial das interpretações. Essa nova ciência não se preocupa em validar ou refutar saberes tradicionais ou identitários, mas sim em explicar como e porque esses saberes funcionam. A questão é ter uma cosmovisão mais abrangente e interdisciplinar possível ao invés de tentar forçar o universo a se enquadrar as nossas teorias, sejam coloniais ou não.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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