O Espírito do
Pajé[1]
“O kambô circula no
coração. Nosso pajé disse que quando tomamos kambô, ele faz o coração se
movimentar da maneira correta, fazendo com que as coisas fluam, trazendo coisas
boas para a pessoa. É como se houvesse uma nuvem sobre a pessoa, impedindo as
coisas boas de chegar, então, quando ela toma o kambô, vem uma ‘luz verde’ que
abre seus caminhos, facilitando as coisas"[2].
Conta uma lenda Kaxinawá que os índios da aldeia estavam muito
doentes e de tudo havia feito o Pajé Kampu para curá-los. Todas as ervas
medicinais que conhecia foram usadas, mas nenhuma livrara seu povo da agonia.
Kampu então se entrou na floresta e, sobre o efeito da Ayahuasca, recebeu a
visita do grande Deus. Este trazia nas mãos uma rã, da qual tirou uma secreção
esbranquiçada, cuja aplicação nos enfermos ensinou como deveria ser feita.
Voltando à tribo e seguindo as orientações que havia recebido, o Pajé Kampu
pode curar seus irmãos índios. Depois, com sua morte, o espírito do Kampu
passou a habitar no sapo e os índios passaram a utilizar a sua secreção para se
manter ativos e saudáveis[3].
A rã verde - Phyllomedusa bicolor, apelidada de sapo Kambô[4],
é a maior espécie do gênero da família Hylidae, encontrada no sul da Amazônia e
em todo o território do Acre, podendo ser encontrado também em quase todos os
países amazônicos. Por extensão, também se chama de Kambô a resina retirada
desse sapo e à sua aplicação medicinal: “Vamos tomar Kambô”.
Esta resina contém substâncias peptídeas analgésicas (a dermorfina[5]
e a deltorfina[6]) e
de fortalecimento do sistema imunológico que provocam a destruição de microrganismos
patogênicos. As substâncias da secreção do sapo também possuem propriedades
antibióticas, de fortalecimento do sistema imunológico através da produção de
anticorpos pelo organismo contra o veneno, e ainda revelaram grande poder no
tratamento do mal de Parkinson, AIDS, câncer, depressão e outras doenças. A Deltorfina
e Dermorfina hoje estão sendo produzidos de forma sintética pelos laboratórios
farmacêuticos[7].
Há também, devido ao seu efeito purgante, um evidente processo de desintoxicação
do fígado (geralmente vomita-se bílis amarga), do intestino (através de evacuações)
e do todo sistema digestivo. Os katukina usam-no também como antídoto em caso
de picada de cobra, medicamento para males diversos, fortificante e purgatório.
Mas, para os índios, a principal causa de tomar Kambô é combater a
‘panema’.
A panema é a tristeza, a falta de sorte, a irritação: “o baixo
astral” – como alguém certa vez bem traduziu. A pessoa está com “panema” quando
nada dá certo e nada está bom.
A finalidade básica do Kambô é "tirar a panema" para
atrair a caça e as mulheres. E esse, por mais difícil que seja aceitar para o
pensamento ocidental, é o principal efeito do Kambô: ele estabelece um ‘choque
de gestão’ espiritual na vida das pessoas, “um realinhamento dos chackras”, um
marco de reorganização orgânica e psicológica a partir do qual a pessoa muda de
atitude e altera seus padrões futuros de saúde.
Das 53 etnias indígenas brasileiras de lá que usavam a vacina,
hoje existem apenas 13. Três delas grandes, com reservas na região do Alto
Juruá: os Kaxinawás, os Ashaninkas e os Katukinas. Existem variações nos
rituais e nomes dados ao sapo verde.
Os Katukinas, no entanto, tem maior afinidade com o Kambô, tomando
seu veneno mais vezes que as outras etnias e têm sua identidade marcada
diretamente por essa prática[8].
A terapeuta floral e acupunturista Sonia Maria Valença Menezes[9] é a grande responsável
pela divulgação dos procedimentos Katukina com o Kambô, mantendo um escritório
em São Paulo em conjunto com a tribo – para ministrar aplicações – e promovendo
viagens terapêuticas para a reserva no Alto Juruá.
Há alguns anos surgiu também um uso caboclo do Kambô. Seringueiros
acreanos aprenderam estes conhecimentos com os índios e começaram a aplicar
kambô em brancos, nas cidades de Cruzeiro do Sul e Rio Branco. O principal
deles foi Francisco Gomes (ou Shiban) de Cruzeiro do Sul, que conviveu anos com
os índios da região e aprendeu a arte do Kambô. Genildo Gomes, filho de
Francisco Gomes, continuou seu trabalho de difusão do Kambô e criou, em 2002, a
Associação Juruaense de Recursos Extrativistas e Medicina Alternativa, AJUREMA,
principal centro de irradiação do Kambô.
Embora difícil de achar (confunde-se com as folhas), os sapos
Kambôs podem ser encontrados nas proximidades dos igarapés, quando cantam
anunciando chuva. Os índios geralmente os ‘colhem’ ao amanhecer, também
cantando. Em algumas tradições, apenas o pajé ‘colhe’ o sapo; em outras todos
os que ouvem seu chamado à noite. Os sapos são extremamente venenosos e não
reagem à captura. Nem se mexem, como se não tivessem predadores. Aparentemente,
são intragáveis - as cobras, espécimes quase sempre cegos, que se orientam pelo
calor das presas, os cospem, desesperadas, quando os abocanham. A técnica de
extração do veneno é tão antiga quanto simples. Amarra-se o bicho pelos pés, em
forma de "X" e cospe-se nele três a quatro vezes, para irritá-lo.
Liberada a secreção, basta raspá-la com um pedaço de pau. A
secreção (parece espuma) cristaliza-se rapidamente, podendo ser utilizada a
qualquer hora.
Não há segredo na aplicação do kambô: com um pedaço de cipó em
brasa, queima-se p braço várias vezes, abrindo pequenos furos na epiderme
(chamados de pontos). A aplicação da resina diluída em água é realizada sobre a
pele e transportada rapidamente para todo o corpo pelos vasos linfáticos. A
quantidade de pontos (geralmente em número ímpar) pelos quais o veneno será
introduzido em seguida (com uma espátula de madeira) depende da estatura
física, do número de vezes que já tenha utilizado o kambô, do motivo da
aplicação e da avaliação do aplicador, baseada nos seus conhecimentos.
Há diferentes filosofias entre os aplicadores, principalmente
entre os katukinas e os caboclos que o utilizam nas cidades. Para os caboclos,
há contraindicação no caso de mulheres grávidas, lactantes e no ciclo
menstrual, já que pode causar hemorragias, devido à dilatação dos vasos
sanguíneos, assim como em crianças menores de dez anos e os idosos com
problemas cardíacos e de pressão alta. Para os Katukinas, não há essas restrições
e as crianças começam a tomar kambô a partir dos dois anos, quando acaba o
período de amamentação. Os Katukinas tomam até 100 pontos em uma única aplicação
e se aplicam em diferentes épocas do ano, durante toda a vida.
No uso caboclo, o tratamento básico é de três doses, em intervalos
de tempo que variam segundo o nível de desenvolvimento da pessoa com o kambô. O
primeiro tratamento é de três meses, são três doses crescentes (por exemplo: 5,
7 e 9 pontos) de 28 em 28 dias, de preferência das luas nova e minguante. Em
seguida, após pelos menos seis meses da última aplicação do primeiro tratamento,
pode-se fazer um segundo, agora de 15 em 15 dias, com doses crescentes menores
(por exemplo: 3, 5 e 7). Também se fazem tratamentos de 7 dias (todas as luas
menos a cheia) e de 3 dias seguidos, combinadas com mudanças alimentares (dieta
sem sólidos e sem sal) e o uso da ayahuasca. O importante é que o intervalo
máximo entre duas aplicações é uma lua, 28 dias. “Se passa mais tempo que isso
entre uma dose e outra, o Kambô vai ter que trabalhar tudo que havia trabalhado
antes novamente”[10].
De acordo com Davi de Paula Nunes, filho de seringueiro e um dos
principais terapeutas amazônicos, não há qualquer obrigatoriedade em tomar em
três vezes consecutivas e alerta: “O Kambô é uma vacina e como tal não deve ser
usada em baixa dosagem de forma seguida para que o corpo não se acostume às
substâncias e perca seu efeito”. Os homens geralmente aplicam nos braços ou no
peito. Se for mulher, a aplicação dos pontos é na perna. No caso, dos
Katukinas, na parte de frente da perna.
Os caboclos costumam, por motivos estéticos, aplicar na batata da
perna. Para os índios, a marca dos pontos na pele é motivo de orgulho e não
deve ser escondida ou colocada na parte detrás do corpo. Outra diferença
interessante: tanto os Katukinas como os caboclos pedem que se faça uma dieta
de sólidos e de sal de pelo menos 12 horas. Mas, enquanto os índios ingerem uma
grande quantidade (3 a 5 litros) de caiçuma de milho durante a noite, antes de
tomar kambô; os caboclos prescrevem apenas 2 litros de água pura poucos minutos
antes da aplicação.
A reação da vacina dura cinco minutos. Nesse tempo, o coração
dispara, o sangue corre acelerado nas veias, a pressão cai ou sobe muito, a
pessoa fica tonta ou nauseada. Algumas pessoas veem tudo branco, como se o
mundo estivesse coberto por uma névoa difusa, ou caem no chão, sem forças. Há
também relatos de sensação de correntes elétricas epidérmicas formigando pelo
corpo. Muitos usuários incham, ficando com a aparência semelhante a um sapo.
Então, de repente, o organismo reage ao mal-estar e põe tudo para fora. Vômito
forte e diarreia são as respostas mais comuns. Só então, aos poucos, os
sentidos voltam ao normal. A pessoa se sente leve, limpa, disposta, de bem com
a vida. Depois de 30 minutos da aplicação, a pessoa já está apta para suas
atividades normais.
Minha experiência pessoal indica que a água desempenha um papel fundamental
em todo processo, não apenas em sua ingestão pelo paciente, mas, sobretudo, na
diluição do veneno pelo aplicador. Ao que parece um número maior de pontos com
pequenas quantidades bem diluídas (perspectiva homeopática) faz mais efeito (e
tem menos riscos de envenenamento) que aplicações com poucos pontos com quantidades
maiores de secreção. A água é ainda prescrita na forma de um banho posterior a
diminuição dos efeitos, não somente como uma forma de limpar o corpo dos excessos
provados pelo mal-estar (suor, vómitos, feses), mas também, no sentido simbólico,
como um complemento do processo da cura do Kambô.
As pesquisadoras Edilene Coffaci de Lima (UFPR) e Beatriz Caiuby
Labate (UNICAMP) estudam a difusão do Kambô nos centros urbanos, analisando,
sobretudo, o discurso que esses diversos aplicadores (índios, ex-seringueiros,
terapeutas holísticos e médicos) têm elaborado sobre o uso da secreção. Para
elas, as “falas são pendulares, ora inclinam-se para uma explicação
espiritualista, ora para uma interpretação cientificista ou médica das
doenças”. Passa-se da panaceia universal (da cura de todos os males) ao placebo
(a cura por indução psicológica). E muitas vezes essas oscilações escondem
algumas simplificações. A palavra ‘panema’, por exemplo, é reinterpretada como
‘depressão’ pelos terapeutas urbanos. Ou ainda como uma energia negativa capaz de
gerar um amplo espectro de doenças. Por outro lado, as pesquisadoras entendem que
a produção e comercialização das substâncias retiram da aplicação do Kambo a parte
mais impactante de seu efeito. Que o remédio da ciência é indissociável do remédio
da alma (LIMA; LABATE, 2007).
Pesquisas científicas internacionais, nas áreas química e
farmacêutica, são realizadas sobre as propriedades do Kambô desde a década de
80. Pesquisadores italianos, franceses e israelitas Já entraram com pedidos de
patente sobre a dermorfina.
Mais recente, a Universidade de Kentucky (EUA) está pesquisando (e
patenteando) a deltorfina em colaboração com a empresa farmacêutica
Zymogenetics. Diversos laboratórios internacionais já estão interessados no
veneno do kambô para desenvolver um medicamento que pode levar à cura do câncer[11].
Em 2003, alguns katukina de Cruzeiro do Sul procuraram o Conselho
de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) para denunciar o mau uso do kambô.
Pediram providências contra o pirateamento do kambô por urbanos; estavam
preocupados, também, com seus direitos intelectuais no caso de remédios
derivados da substância. Vale lembrar que uma patente pode demorar muitos anos
até chegar a eventualmente virar um remédio.
Em 29 de abril de 2004, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA), proibiu qualquer propaganda das virtudes terapêuticas e medicinais do
kambô[12].
A ministra Marina Silva decidiu tratar esse caso como um caso-modelo. Para
isso, designou um grupo de trabalho do Ministério do Meio Ambiente para uma
ação conjunta. O grupo, que vem se reunindo desde 2004, congrega representantes
de etnias indígenas, antropólogos, indigenistas, herpetólogos (biólogos que
estudam sapo), biólogos moleculares e médicos.
Mas o Kambô é, como vimos, um objeto complexo e escorregadio,
irredutível aos diferentes discursos científicos (clínico alternativo,
fármaco-químico, antropológico, etc) e dificilmente será regulamentado ou
reduzido sem antes uma redefinição das perspectivas com as quais ele é descrito
até o momento. Quando se fala de Kambô e de sua definição, alguns se preocupam
com o manejo florestal do sapo, outros com a patente das substâncias químicas,
outros ainda com as possibilidades terapêuticas da prática de sua aplicação,
mas, para os índios, a explicação é mais simples: o Kambô é o espírito do Pajé
Kampu cumprindo sua missão de defender a saúde dos defensores das florestas.[13]
LIMA &; LABATE,
Edilene Coffaci de, Beatriz Caiuby. “Remédio da Ciência” e “Remédio da Alma”: os usos da secreção do kambô (Phyllomedusa
bicolor) nas cidades. Campos - Revista de Antropologia Social v. 8, n. 1
(2007). http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/campos/article/view/9553/6626>
;
[1] Publicado em inglês em: <http://www.ayahuasca.com/psyche/kambo-the-spirit-of-the-shaman/> e em português pelo site dos Povos Indígenas no Brasil: https://neip.info/novo/wp-content/uploads/2018/01/Ribeiro_Kambo_Internet_UFPR_2017.pdf
[2] Sonia
Maria Valença Menezes é terapeuta e acupunturista.
[3] LABATE,
Bia. O pajé que virou sapo e depois promessa de remédio patenteado, Comunidade
Virtual de Antropologia, n 27, São Paulo, 2005.
[4] Existem
vários nomes: kampu, wapapatsi, Kembo.
[5] A
dermorfina é um opiácio que atua como analgésico 300 vezes mais potente que a
morfina. Além do sapo phyllomedusa bicolor, essa substância só é encontrada na
urina de crianças autistas.
[6] Deltorfina
pode ser aplicada no tratamento da Ischemia - um tipo de falta de circulação
sanguínea e falta de oxigênio, que pode causar derrames.
[7] CAMURÇA,
Denizar Missawa. Estudo sobre a atividade edematogênica, pró-inflamatória,
antibacteriana e perfil eletroforético da secreção cutânea de Phyllomedusa
bicolor (Boddaert, 1772) (Anura, Hylidae, Phyllomedusinae). Trabalho de
Conclusão de Curso de Bacharelado em Ciências Biológicas. Universidade Guarulhos,
2006. Neste trabalho, foram realizadas análises do perfil eletroforético
(SDS-PAGE) das proteínas constituintes da secreção da Phyllomedusa bicolor
coletada em 2004 e 2006 e da atividade antibacteriana das amostras da secreção.
Foram feitas análises in vivo para avaliar o efeito local da inoculação como:
formação de edema e presença de infiltrado inflamatório; e alterações
sistêmicas como: contagem total e diferencial de leucócitos sanguíneos. A
atividade antibacteriana da secreção foi constatada, entretanto não superou a
atividade dos antibióticos utilizados no experimento.
[8]
Para estudar os Katukinas, v. verbete sobre os
katukina, por Lima, Instituto Socioambiental: <https://pib.socioambiental.org/pt/povo/katukina-pano
>
[9] Palestra apresentada 16/03/2005 no I Encontro Brasileiro de
Xamanismo.
[10] Ni-í da Associação Katukina do Campinas (AKAC), no I Encontro de Brasileiro Xamanismo.
[11] Para acompanhar a situação da patente do Kambô, bem como a das patentes da ayahuasca, da copaíba, da andiroba e de outras plantas amazônicas piratiadas para o exterior, veja o site da Amazonlink, ONG que ficou conhecida mundialmente pela campanha "o cupuaçu é nosso": < http://www.amazonlink.org/biopirataria/index.htm >
[12] Resolução da Anvisa: <http://www.abpvs.com.br/resolucoes/resolucao08.htm>
[13] Outros
aportes sobre a Phyllomedusa bicolor:< http://www.erowid.org/archive/sonoran_desert_toad/bicolor.htm
> para ver uma radiografia do kambô na internet, provando a apropriação cultural e a comercialização indevida:
https://neip.info/novo/wp-content/uploads/2018/01/Ribeiro_Kambo_Internet_UFPR_2017.pdf
https://neip.info/novo/wp-content/uploads/2018/01/Ribeiro_Kambo_Internet_UFPR_2017.pdf
Nota pessoal: tomei e apliquei kambo de 98 até 2010 praticamente sem cobrar dinheiro (pedia sempre uma troca) e sou imensamente grato por essa oportunidade de crescimento espiritual. Parei (faz nove anos) por achar que o uso da substância é incompatível com o sal e com açúcar, não apenas antes e depois das aplicações, mas também a longo prazo, na vida cotidiana. Quem cura é água, o kambô é apenas uma forma de desencadear processos de dinamização. seu uso deveria ser homeopático. As dosagens e o modo de uso indígena não é (ou deveria ser) o mesmo de seu uso urbano como medicamente. Como há um aumento dos batimentos cardíacos, colocando o sangue para circular em uma velocidade bem acima da média, quem tem problemas de pressão (ou seja, todo mundo que consome sal regularmente e se encontra acima dos 40 anos) tem riscos de vida. O número de óbitos em virtude desse uso indígena transportado para pessoas com hábitos sedentários poderia ser muito maior.