O DIA EM QUE MIL GATOS SONHAREM
O mundo dos sonhos sempre se
apresentou ao homem como uma realidade paralela ao universo observado através
dos sentidos. E, bem cedo, alguém deduziu que o universo deveria ser um sonho
de Deus. E o Sonho adquiriu vida própria, para alegria do grande Sonhador,
passando a ser modelado por sonhadores menores, os homens de espírito ou as
criaturas criadoras. Destaque-se, no processo histórico de construção do grande
sonho coletivo da humanidade, a contribuição de quatro sonhadores nesse
inventário dos sonhos vivos: Platão, Santo Agostinho, Descartes e Castaneda.
Antes, no entanto, é preciso
distinguir sonho pessoal de sonho coletivo.
1.
O sonho pessoal
Na Babilônia, na China,
nos Vedas indianos, nas tradições indígenas das Américas, da África e da
Oceania, e em todas as religiões que se tem notícia, os sonhos desempenham um
papel fundamental. Os sonhos são a base de todos os sistemas de crença humanos.
Campbell dizia que os “mitos são sonhos partilhados, sonhos são mitos
privados”. Porém, na verdade, os povos possuem mitos e os sonhos possuem
pessoas. Os sonhos são pessoais.
Na maioria das vezes, os
sonhos pessoais são interpretados como mensagens cifradas dos deuses, dos
ancestrais ou de seres malignos. E o Talmud diz que “um sonho não interpretado
é como uma carta que não é aberta”. Os gregos (Hipócrates e Aristóteles) davam
uma importância especial ao diagnóstico de doenças através do sonho. Artemidoro
de Daldis, no século II d.C., distinguia o sonho comum, referenciado no passado
biográfico; do sonho premonitório das ‘almas virtuosas’, referenciadas no
futuro.
Na modernidade, para
objetividade científica, o sonho, a mais subjetiva das atividades humanas,
permaneceu sem sentido ou significado até que Sigmund Freud proclamou que “o
sonho é a realização (simbólica) de um desejo (censurado)”.
Ou, mais precisamente: o
sonho para Freud é um conglomerado de formações psíquicas moldado pela história
biográfica pregressa do indivíduo, com múltiplos significados, que tem por
função proteger contra a dor e satisfazer os desejos reprimidos pela censura.
Em A Interpretação dos Sonhos (1990), Freud lançou as bases da ciência
hermenêutica moderna ao distinguir, na decifração de fenômenos oníricos, o
conteúdo manifesto do latente ou oculto. Para ele, todo sonho seria ‘a realização
simbólica de um desejo inibido’, mas nem sempre a expressão deste desejo é
clara e inequívoca, ao contrário, haveria mecanismos psicológicos responsáveis
pelo mascaramento simbólico dos impulsos recalcados. Freud chamaria esses
mecanismos: condensação, deslocamento, processo de elaboração secundária,
simbolismo e dramatização.
Por condensação se
entende o processo segundo o qual um conteúdo manifesto apresenta mais de um
conteúdo latente de forma simplificada. Já deslocamento, se define como o
processo pelo qual a carga afetiva se destaca de seu objeto normal para
fixar-se num objeto acessório. A elaboração secundária se revela como o
processo pelo qual, à medida que se aproxima a vigília, a produção onírica é
reorganizada por uma lógica racional. Assim, nos lembramos dos sonhos sempre de
trás para a frente, apagando seus detalhes e paradoxos. A dramatização consiste
no processo através do qual os conteúdos conceituais são substituídos por
imagens visuais. A simbolização se distingue da dramatização porque a
dramatização é pessoal; enquanto o símbolo é universal.
Para Freud, o processo de
simbolização se explicaria ainda através da censura e dos quatro movimentos de
defesa do ego diante da crueza dos seus instintos e desejos objetais:
identificação, projeção, introjeção e sublimação. É necessário assinalar que a
noção de sublimação na interpretação dos sonhos será o ponto central das
divergências entre Freud e Jung, uma vez que o discípulo discordava que o
simbólico fosse apenas um resultado do caráter determinista e compulsivo do
inconsciente biograficamente recalcado. Jung viu nos sonhos de seus clientes
elementos mitológicos organizados de num modo prospectivo (e, muitas vezes,
premonitório) chegando à conclusão de que o inconsciente não é apenas uma mera
instância de repetição do passado individual, mas comporta ainda a sua
transcendência psíquica e fenômenos mais complexos, de caráter coletivo e
transpessoal.
Para Jung, as imagens
oníricas se oferecem como narrativa em que o protagonista é o próprio narrador:
o sonhador. Do ponto de vista pessoal, há uma função psíquica compensatória
entre as relações dos eixos Ego-Self e Consciência Individual-Inconsciente
Coletivo. O sonho se apresenta sempre como uma mediação e uma compensação entre
esses quatro extremos. Mas, há também uma função transcendente: aquele que
presta atenção aos próprios sonhos entre em processo de desenvolvimento (a
individuação) em que sua consciência se religa aos valores éticos e estéticos
fundamentais da matriz arquetípica. Assim, o sonho, mais que expressão
involuntária de um problema passado, é uma resposta elaborada pelo
inconsciente, uma reorganização prospectiva, uma solução voltada para o futuro.
(HALL,1985)
Ainda no âmbito da
psicanálise, outras abordagens foram desenvolvidas recentemente como a de Tales
Ab’Saber (2006). O ‘trabalho de sonho’ se torna um método de desenvolvimento ‘a
dois’: tanto na transferência analítica inspirada em Bion (o analista sonha o
sonho do analisado, e este, por sua vez, o toma como objeto de sonhação), como
na mediação sujeito-objeto (na equiparação entre sonhar e brincar, entre o
onírico e o lúdico) observada por Winnicott).
2.
O sonho para ciência
Mas foi no campo das
Neurociências que o estudo dos sonhos pessoais mais prosperou. Em 1952, Leitman
e Aserinsky (2003) estabeleceram, através de eletroencefalogramas, o ciclo
fisiológico do sono, composto por pelo menos três estágios com diferentes
propriedades neurofisiológicas: o estágio hipnagógico (início do sono em que os
pensamentos consistem em imagens fragmentadas e pequenas cenas), o estágio do
sono de ondas lentas (em que as ondas cerebrais do neo-cortex apresenta
freqüências baixas e grande amplitude) e o estágio do sono REM (rapid eye
moviment).
Durante a fase do sono
REM ou sono profundo, o cérebro apresenta um funcionamento semelhante ao estado
da vigília em momentos da maior atividade (confronto com perigo, luta pela
sobrevivência, contato sexual iminente) – o que levou os cientistas a
concluírem que os sonhos aconteciam exclusivamente neste estágio.
Durante duas décadas, o
sono REM foi sinônimo fisiológico do sonho e a idéia de Freud, de que os sonhos
são produzidos por processos mentais era compatível com o conhecimento
científico do funcionamento cerebral.
Até 1977, quando Hobson e
Mc Carley (1988) descobriram o modelo de ativação-síntese e de reciprocidade
interação. Para eles, o cérebro liga impulsos sem sentido e sentimentos a
impressões sensoriais e lembranças, produzindo uma narrativa coerente a partir
do aleatório. Movimentos oscilatórios simples pela qual a consciência é ligada
e desligada em intervalos de 90 minutos através da interação recíproca de
substâncias químicas, que nada tem haver com processos mentais. Hobson e Mc
Carley provaram que o sono REM não é o equivalente fisiológico do sonho. Por
outro lado, os cientistas reduziram a atividade onírica a um mero epifenômeno
subjetivo do sono, sem nenhuma importância, uma frivolidade sem sentido de
nossa mente.
Nos anos 90, Solms
(1997), através de seus estudos com dopamina, reabilitou o sono REM como sonho
e compatibilizou Freud novamente com a neurociência. Em seguida, Winson (1985),
estudando o papel do ritmo Teta de ondas cerebrais, endossou a idéia de que os
sonhos têm sentido subjetivo, podendo ainda refletir um mecanismo de processamento
de memórias herdado de espécies inferiores.
E, atualmente, há uma
grande polêmica entre os neurocientistas: parte considera o sonho resultante de
processos meramente fisiológicos, enquanto outros acreditam que ele também é
causado por processos mentais, seguindo a lógica freudiana.
Estudando a propagação,
criação e simulação de memórias e fazendo uma ampla revisão bibliográfica e uma
síntese atual da pesquisa neurocientífica sobre o sono, Ribeiro e Nicolelis
(2004) defendem que o onírico tem um papel importante na consolidação de vários
tipos de memória, desempenhando um papel fundamental no aprendizado. Observando
como o gene zif 268, associado ao aprendizado, é ativado seletivamente durante
o sono REM, os cientistas chegaram à conclusão que o sono REM tem criatividade.
Embora o fortalecimento e a reestruturação das memórias sejam funções
cognitivas do sonhar, há ainda uma simulação dos futuros possíveis. Os sonhos
são seqüências hiperassociativas das memórias fragmentadas, que simulam eventos
passados e expectativas futuras de forma a gerar soluções para os desafios
cognitivos enfrentados pelo sonhador. O sonho, assim, seria uma forma de
selecionar alternativas e orientar decisões (1992, 126).
Sonhar para organizar
lembranças e o aprendizado ou sonhar para esquecer? Para Crick (1995) o sono
REM é um processo de aprendizado ao contrário ou desaprendizado, um programa de
autolimpeza que descarta as informações desnecessárias. Para Ribeiro e
Nicolelis, no entanto, não há diferença: o sono REM tanto nos esquecer como
organiza nossas lembranças, sendo capaz de simular situações futuras com base
no processamento de informações passadas.
Volta-se, assim, ao mesmo
ponto em que Artemidoro, Freud & Jung chegaram: há sonhos referenciados no
passado (o sono de onde lentas) e há sonhos referenciados na simulação do
futuro (o sono REM). Porém, as pesquisas de Ribeiro e Nicolelis sobre o sonho
abriram um horizonte bastante amplo de estudos e atualmente há diferentes
pesquisas neurocientíficas em andamento: o desenvolvimento filogenético do
sonho REM em relação à evolução das espécies (RIBEIRO, 2004); o desenvolvimento
ontogenético do sonho REM em relação ao crescimento infantil humano e à
plasticidade do cérebro (FRANK, 2004); o estudo dos pesadelos e dos distúrbios
pós-traumáticos (PERES; MERCANTE; NASELLO, 2005); entre outros.
3.
O
Sonho Coletivo
Para os cientistas, o
sonhar é uma atividade cognitiva individual que ocorre durante uma parte do
sono; mas para o xamanismo e outros aportes esotéricos, o sonho é a atividade
mais abrangente e profunda, englobando a imaginação, o pensamento e os cinco
sentidos. O sonhar, nessa perspectiva ampliada, se confunde com a percepção
coletiva que fazemos do mundo. Como se tornou lugar comum dizer: “um sonho que
se sonha só, é só um sonho; mas um sonho que se sonha em comum torna-se
realidade”.
Segundo Ivan Bystrina
(1995), há três níveis inter-relacionados de codificação de mensagens: o código
primário ou hipo-lingüístico, em que os processos vitais são operações de
câmbio informacional que operam através de sinais simples e se organizam a
partir da experiência; o código secundário ou lingüístico, um sistema
institucional de cognição coletiva; e o código terciário ou hiper-lingüístico
ou a segunda realidade, construída para perpetuar mensagens para futuras
gerações. E a segunda realidade formada por nossos sonhos e desejos profundos
tem origem em quatro fontes possíveis: o sonho, as doenças mentais, o êxtase
místico e os jogos.
Nesta ótica, a segunda
realidade é o universo simbólico. Fossemos escrever uma história do sonhar
coletivo, o primeiro passo seria o sonho da Caverna de Platão:
Acorrentados de costas para a luz em um cárcere subterrâneo, os
prisioneiros só podem ver, do mundo exterior, as sombras projetadas no fundo da
Caverna. Caso um dos prisioneiros se libertasse e retornasse ao mundo exterior,
perceberia que o mundo no qual vivia era irreal e inconsciente; formada por
sombras e reflexos das coisas. O prisioneiro correria sério risco de vida se,
retornando ao interior da caverna, procurasse revelar aos seus antigos
companheiros a irrealidade do mundo em que se encontram. Provavelmente, eles o
matariam.
A história da caverna é
uma alusão direta ao destino de Sócrates, professor de Platão, forçado a beber
veneno pela democracia ateniense, acusado de romper a juventude. Platão chegou
então à conclusão de que “não é
possível ser justo em uma cidade injusta”. É preciso construir uma sociedade
justa, capaz de produzir homens justos. Essa é a proposta de A República
(PLATÃO, 2004), o primeiro livro que se conhece sobre Utopia, a idéia de
construção de uma sociedade perfeita, produtora de homens perfeitos. E o sonho da Caverna dividiu o mundo em duas realidades:
uma sensível e ilusória e outra; distante, verdadeira e inteligível.
Santo Agostinho, outro
mestre na arte do sonhar, fez do interior da caverna a memória das coisas dos
homens e do mundo exterior, a memória das coisas de Deus. Jesus substituiu
Sócrates como o redentor e o unificador dos dois mundos. Para o criador da doutrina
do pecado original, há uma Cidade de Deus paralela à Cidade dos Homens (como a
realidade sensível e o mundo inteligível de Platão). Agostinho colocou a utopia
platônica como um objetivo histórico da humanidade: ao ser expulso do Éden, o
homem dissociou o universo, Cristo reabriu a passagem entre os mundos e o
retorno à Nova Jerusalém será a reunificação das cidades.
E o sonho da Cidade Santa
no Final dos Tempos deu um sentido à história e um destino para humanidade.
Vivemos em um universo
dividido entre o que sentimos e o que pensamos, mas caminhamos para sua
unificação escatológica. Para
Agostinho, no entanto, o tempo só existe no presente e só é visível através da
linguagem; o passado só existe na memória, o futuro só existe na imaginação. O
‘fim dos tempos’ é o fim dessa sensação de continuidade no espaço provocada
pela morte; o apocalipse é a revelação da ordem arquetípica, a eternidade de
onde nunca saímos inteiramente.
Vários outros sonhos
menores se desdobram deste sonho magistral: o sonho do retorno do messias, o
sonho da democracia de Rousseau e o sonho da conspiração em um mundo governado
pelo mal. Há uma grande
diferença entre um sonhador de sonhos vivos e um pensador idealista. O sonhador
imagina novas idéias e crenças que se tornam sonhos vivos para futuras
gerações; e o idealista é apenas analista irrealista, que geralmente segue
idéias e crenças já formuladas.
Certo dia, pelo início do
século XVII, René Descartes sonhou que o Universo era um gigantesco relógio e
que Deus era um relojoeiro, recusando as explicações escolásticas de que eram
as virtudes humanas que determinavam os acontecimentos e que as forças divinas
atuavam diretamente sobre o destino humano.
E o sonho do
universo-máquina nos tornou seres mecânicos e o cartesianismo se tornou senso
comum.
Autores contemporâneos
criticam o pensamento cartesiano em seu aspecto racionalista (o método da
dúvida sistemática, a dissociação do tempo do espaço nos eixos cartesianos, a
idéia de plano geométrico dissociado do espaço real), porém não conseguem
superar o sonho de Descartes. Fritjoff Capra, por exemplo, gostaria de romper
com o paradigma mecanicista de que o mundo é uma máquina e definir o universo
como um sistema biológico complexo, mas ainda vive e pensa dentro de um
universo-máquina.
O diretor Roberto
Rosselini fez uma série de documentários para TV italiana sobre filósofos. O
episódios sobre Descartes mostra que o filósofo não
era um homem contemplativo, mas sim um soldado francês, um homem de ação
extremamente inteligente e curioso, que se retirou de seu país em virtude dos
atritos entre católicos e protestantes, indo residir na Holanda. Descartes era
um homem religioso que gostava de matemática e lógica, e não aceitava as
explicações da escolástica e do neoplatonismo para o mundo físico. Ele se
entregava de coração às questões do Discurso de Método que investigava e se
orientava através de seus sonhos. Em nenhum momento, ele quis negar a teologia
cristã, mas sim completá-la de forma mais realista, com a dissociação entre
corpo e alma.
Porém, depois de
Descartes, todos passaram a seguir, mesmo involuntariamente, suas orientações
para o espírito pensante, o sonho que torna a ciência possível.
E durante a modernidade
(esta imagem objetiva e coisificada que fazemos de nós mesmos), fomos
prisioneiros da própria ilusão, forçados a sobreviver em mundo violento e sem
sentido, jogados em um universo frio e sem alma, não passamos, aos olhos da ciência
objetiva, de bolinhas de carne girando em uma bola de pedra em torno de uma
grande bola de fogo. Mas, Eu não sou uma bola de carne, a Terra não é uma bola
de pedra e o Sol não é uma bola de fogo. Por outro lado, também não podemos
retroceder ao passado, considerando os astros como são deuses e recolocando o
observador como sujeito no centro do universo, como se fazia antes da ciência
objetiva e da modernidade.
4.
O sonho nagual
Homem, Mulher; Luz,
Trevas; Vida, Morte - vivemos em um universo de polaridades opostas. Mas,
interpretamos essas polaridades de diferentes formas. Algumas tradições mais
antigas tratam as polaridades de opostos de uma forma ainda mais diferente e,
aparentemente, incompreensível para o pensamento científico: o Paradoxo. O deus
Abraxás de Creta antiga, Janus dos Romanos e o par Tonal/Nagual nas Américas
são exemplos de deuses de "duas faces" paradoxais, isto é, de uma
concepção em que a polaridade de opostos que dá origem a vida e ao universo que
não comporta nenhuma forma de totalização ou unificação globalizante. Aliás,
talvez algumas de nossas polaridades dialéticas e dialógicas (Vida/Morte,
Bem/Mal, Ser/não-Ser) sejam também paradoxos que nos recusamos a aceitar.
Nas mitologias
pré-colombianas, os deuses gêmeos também desempenham um papel central. Para os
toltecas mais do que deuses, o tonal e o nagual são princípios cognitivos e
realidades paralelas.
Três mil anos
atrás havia um ser humano, que vivia perto de uma cidade cercada de montanhas.
(...) Um dia, enquanto dormia numa caverna, sonhou que viu o próprio corpo
dormindo. Saiu da caverna numa noite de lua nova. O céu estava claro e ele
enxergou milhares de estrelas. (...) Olhou para suas mãos, sentiu seu corpo e
escutou sua própria voz dizendo: “Sou feito de luz; sou feito de estrelas.”
Olhou novamente para o alto e percebeu que não eram as estrelas que criavam a
luz, mas sim a luz que criava as estrelas. “Tudo é feito de luz”, acrescentou
ele, “e o espaço no meio não é vazio.” (...) Então,
ele compreendeu que, embora fosse feito de estrelas, ele não era essas
estrelas. “Sou o que existe entre elas”, pensou. Assim, chamou as estrelas de tonal e o espaço entre os dois nagual, e percebeu que a harmonia e o
espaço entre os dois eram criados pela Vida ou Intento. (RUIZ; 2005, 13 e 14.)
Há sempre uma
dupla realidade, uma simetria entre o lado de dentro e o de fora, o micro e o
macrocosmo. No campo filosófico há, para Platão, um mundo sensível-concreto e
outro inteligível-abstrato; uma cidade dos homens e uma cidade de Deus para
Santo Agostinho; para Descartes, coisas extensas e objetos virtuais. Com Kant,
há uma inversão de perspectiva: a realidade deixa de ser uma percepção e passa
a ser uma interpretação. O mundo externo se torna uma projeção estruturada do
sujeito, a simetria torna-se um reflexo invertido.
No campo
religioso também há simetria, mas é o metafísico que se reflete no físico:
“assim em cima, como embaixo” - expressão presente não apenas nas Tábuas de
Esmeralda de Hermes Trimegisto, mas presente em todas as grandes tradições,
como a chinesa (céu e a terra), a indiana (o universo-templo e o corpo-templo),
e a ocidental (o homem como a imagem e semelhança de Deus). No humanismo
iluminista, há cruzamento desses dois modos de representação simétricos, o
filosófico e o tradicional, em que o homem ocupa o lugar central (como na
tradição judaica cristã), mas o universo externo que enquadra e determina a
experiência subjetiva (como crê a modernidade). Para Carlos Castaneda, a
simetria entre a cognição ordinária e a extraordinária é um paradoxo
insuperável para o qual não existe totalização ou unificação globalizante. O
Mundo e a Consciência são termos irredutíveis.
Para as
tradições, a simetria é dada como certa (o mundo material é um desdobramento
denso dos universos sutis); para modernidade, a simetria é parcial e invertida
(o subjetivo parcialmente reflete a realidade total); para Castaneda, não há
simetria ontológica (nem reflexividade entre dimensões paralelas): os objetos é
que são duplos construídos intersubjetivamente em um único plano imanente
bifacetado - como a onda e a partícula.
Para o
xamanismo, o sonhar é a base de toda experiência cognitiva: sonhamos o tempo todo todos juntos, seja dormindo ou
quando estamos acordados (mesmo agora estamos
sonhando: eu escrevendo e você lendo esse texto). A diferença é o
enquadramento mental-sensorial no estado de vigília (ou tonal) da percepção da
energia sem realidade sensorial dos estados alterados de consciência (ou
nagual). Os conceitos de Tonal e Nagual representam campos
perceptivos opostos e complementares, em que o primeiro é nossa percepção
ordinária (sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos concretos e
coisas sólidas; e o último é a percepção de que estamos em um universo de
relações, em que tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e
de adaptação.
Mas,
há também diferentes interpretações dessa dualidade. Enquanto Ruiz sonha em salvar a terra
e a humanidade, Castaneda intenta antes salvar-se do destino da humanidade de
ser absorvido pela terra.
Para don Miguel
Ruiz (2005), há dois sonhos coletivos: o sonho que chamamos de realidade – “o
tonal, a primeira atenção, o sonho do inferno” – e o sonho dos guerreiros - “o
nagual, o sonho da segunda atenção”. Para ele, o sistema de crenças é uma
estrutura parasita de energia. Vivemos em um sonho coletivo que nos aliena de
nossas vidas e nos mantêm cativos em uma realidade virtual. Somos prisioneiros
uma ‘Matrix’ formado por crenças e valores.
Há,
assim, um sonho coletivo - ''sonho do inferno'' ou ''sonho do planeta'' – e
nossos sonhos pessoais. Em nossa formação pela família, pela escola e pela
sociedade, nossos sonhos pessoais são “domesticados através do medo”, pois nos
tornamos escravos das expectativas alheias e de nossas próprias exigências.
Medo não simplesmente de ser punido ou morto, mas principalmente de ser
rejeitado, de não ser amado. Segundo Ruiz, é preciso retomar nossa capacidade
de sonhar, libertando nosso sonho pessoal do sonho coletivo do medo de
exclusão; e também é necessário, em conjunto com outros sonhadores, compreender
e transformar esse sonho social de destruição planetária, para que as futuras
gerações possam viver em harmonia com a Terra e consigo mesmas.
Já para Carlos
Castaneda, o tonal é uma ilha (ou bolha da percepção) e o nagual a um
oceano-universo que o engloba: o mar escuro da consciência. A vida orgânica (o
tonal) é uma gota em um verso inorgânico. A tarefa do xamã é sair
individualmente do seu ovo tonal e viver em um universo nagual, deixando para
trás a condição humana. Castaneda considera a existência de dois mundos
paralelos (o mundo das coisas e o das relações entre
energias); e o nagual é visto como o aspecto vibracional do universo, constituído de energia e de relações entre diferentes estados
de ser.
5.
Perguntas
O filme Matrix combina os
sonhos da caverna, da utopia e o do universo mecânico, fantasiando sonhar uma
saída para nosso mundo, mas fica apenas no plano da imaginação. O verdadeiro
sonhar implica em criar um caminho antes inimaginável; em abrir novas
perspectivas, e não simplesmente tecendo fantasias com mitos cristalizados
pelas tradições.
Aliás, há várias
histórias e contos sobre essa temática, do qual se destaca O sonho de mil gatos, de Neil Gaiman (Sandman #18), em que um gato
sonha que sua espécie já dominou o planeta, porém, uma vez que os felinos
deixaram de sonhar, sua espécie passou a ser dominada pelo sonho coletivo dos
seres humanos. No dia em que mil gatos sonharem, no entanto, o sonho felino
triunfará novamente e os homens voltarão a sua condição original.
Será
que a generalização social dos sonhos lúcidos nos levará a um salto evolutivo
quântico da consciência humana de grandes proporções? Será que, ‘quando mil
homens sonharem com lucidez’, o sonho coletivo humano sobre o planeta se
tornará consciente de si e de seu papel no universo?