Princípios da Feitiçaria Midiática
Marcelo Bolshaw Gomes[1]
(…) A magia em suas formas mais primitivas é
normalmente designada como “arte”. Acho que isso é bastante literal. Eu
acredito que a magia é arte e que a arte, quer por escrito, música, escultura
ou qualquer outro meio é literalmente mágica. A arte é, como mágica, a ciência
de manipular símbolos, palavras ou imagens para realizar mudanças na
consciência. Conjurar um encantamento é somente encantar, manipular palavras para
mudar a consciência das pessoas. Então eu acho que um artista ou escritor é a
coisa mais próxima que você vai ter de um xamã no mundo contemporâneo. (...) O
fato de que agora esse poder mágico degenerou o nível de entretenimento barato
e manipulação é uma tragédia. Atualmente, aqueles que utilizam xamanismo e
magia a moldar a nossa cultura são os anunciantes. Ao invés de acordar as
pessoas xamanismo é a droga usada para tranquilizar as pessoas, para torná-las
mais manejáveis. A sua caixa mágica da televisão, com as palavras mágicas,
seus slogans, pode fazer com que todos no país pensam nas mesmas palavras e
tenham os mesmos pensamentos banais exatamente ao mesmo tempo. The Alan Moore Mindscape (2003,
23:43 – 32:37).
Sem arrodeio: enuncia-se aqui a seguir quatro
princípios da feitiçaria midiática, amplamente utilizados e escondidos pela
publicidade contemporânea. Depois, explicamos melhor os fundamentos e as
consequências desses princípios.
São eles:
1)
Princípio da
Singularidade Artesanal. Em oposição à noção de
reprodutividade técnica de Walter Benjamim, a dessacralização da arte pela
produção em série promovida pela industrialização de todos os objetos da
sociedade[2];
enuncia-se aqui o princípio da singularidade técnica, em que o objeto único e
original, manualmente produzido sem cópias é uma forma de arte. Em uma
sociedade industrial, todo objeto artesanal é culturalmente um talismã da
diferença, um oásis cognitivo no deserto da uniformização serial da
objetividade. O objeto mágico é aquele que não tem cópia.
2)
Princípio da Propagação
da Singularidade. O objeto mágico é artesanal
e único, mas sua imagem pode ser reproduzida ao infinito pela indústria
cultural, aumentando significativamente seu poder. Todos o desejam, mas ele é
apenas um. O encantamento do amuleto se propaga. Da união da cobiça das massas
com a singularidade do objeto desejado forma-se uma assimetria unilateral
daquele conceito com um público não presencial, uma “intimidade não-recíproca a
distância” (THOMPSON, 1998). A midiatização da singularidade universaliza a
imagem do objeto no espaço e no tempo. O objeto mágico tem uma imagem icônica
multiplicada ao infinito.
3)
Princípio da Associação
Narrativa O objeto artesanal artificialmente propagado
precisa ainda ser alimentado por imagens, sentimentos, alimentos e energia. O
objeto mágico se nutre de narrativas simbólicas e factuais. E seu poder deriva
diretamente de sua presença nessas narrativas. Aliás, o objeto torna-se mágico
através de uma narrativa, associando-o a uma ideia indicando a superação simbólica
de vários opostos geralmente irreconciliáveis: sujeito/objeto,
natureza/sociedade, vida/morte. O objeto mágico é também um índice, uma
associação narrativa entre contradições simbólicas e acontecimentos.
4)
Princípio da Identificação
Absoluta: A ubiquidade: não há mais diferença entre o
objeto mágico e sua imagem serializada e propagada ao infinito. É o próprio
objeto que está presente (e não sua reprodução ou cópia) em todos os lugares e
tempos. É a fusão entre ator e personagem, entre jogador e avatar, entre médium
e orixá. O objeto mágico é um deus encarnado em nosso universo. E a identidade
de contexto e o universo narrativo através do qual o observador se observa: o
paradigma. A imagem invertida do universo dentro de cada um.
Reza a lenda
que a palavra francesa ‘fétiche’, tradução recente da palavra portuguesa
‘feitiço’, foi utilizada por engano na tradução de uma etnografia para o alemão
sobre os povos da África ocidental. E antes que esse “mal entendido” fosse
percebido a noção de fetiche já havia sido utilizada pelos maiores
materialistas modernos (Karl Marx e Sigmund Freud).
Por um lado,
como ninguém sabe ao certo os nomes do autor e do texto, os antropólogos procuram,
em vão, outras explicações para a etimologia dessas palavras (PIRES, 2009) e
suas curiosas interpretações. Por outro, a própria origem das palavras (do latim facticius:
“artificial, fictício”) sugere um engodo, em que uma realidade só se sustenta
enquanto houver crença em sua veracidade. Há mistério e encantamento nos
próprios termos e em sua história.
Segundo o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, de
Antônio Geraldo da Cunha, [...]
[...] “depois de ter contribuído, portanto, para a
criação da palavra francesa fetiche, o português recorre ao francês para
tomar-lhe emprestado o termo fetiche, que tem traços semânticos que a aproximam
de feitiço, mas desta se diferencia por necessidade de especialização semântica”.
(1986, pág. 623)
O feitiço é, geralmente, um termo
acusatório (algo reprovável feito por outros); enquanto o fetiche é uma espécie
de obsessão pessoal por alguma coisa, uma situação, pessoa, ou parte da pessoa,
uma atração ou fixação incontrolável que dá origem a um prazer intenso (nem sempre
sexual). Por extensão também há equivalências e diferenças semelhantes entre os
termos ‘fetichismo’ e ‘feitiçaria’. Feitiçaria era, para Inquisição, a religião
do Diabo. O fetichismo, por sua vez, era, para os primeiros cientistas sociais,
o sistema de crenças mágico, anterior às religiões institucionalizadas. Outras
definições pensam a feitiçaria como um conjunto de práticas mágicas utilitárias
(a mandinga); e o fetichismo como a crença em objetos-deuses.
Já o
feitiçaria ...
Acho importante ter em
conta três aspectos do problema do feitiço, todos eles revelando a sua
ambiguidade. Primeiro, a ambiguidade entre construção e verdade: o feitiço
poder ser falsificação e engano, mas existe a suspeita de que esse artifício,
essa ficção, de fato seja verdadeira, que funcione, ou ainda, que tenha um
“segredo”, um “fundamento” que o acusador não conhece. Segundo, ambiguidade
entre acusador e acusado: o feitiço sempre é antes uma acusação do que uma
prática auto definida; mas se reconhecendo como tal, o feiticeiro pode adquirir
paradoxalmente poder sobre o acusador, o poder oculto da feitiçaria. Terceiro,
e último, a ambiguidade entre sujeito e objeto do feitiço: a feitiçaria é uma
arte da sedução e da sujeição, através da qual as pessoas se tornam objetos,
ou, pelo contrário, os objetos podem ser vistos como pessoas. A feitiçaria é
uma trama, que embrulha acusado e acusador, pessoas e objetos, verdade e
ficção. (SANZI, 2009, pág. 128)
A feitiçaria, para os colonizadores
portugueses, não era africana, arcaica ou tradicional; mas uma prática
ordinária, universal, contemporânea e comum. Enquanto, o fetichismo é uma
palavra europeia para designar uma prática religiosa africana.
Hoje as
palavras fetiche e fetichismo têm pelo menos quatro significados: a) o sentido
psicanalítico (parte do
corpo ou objeto que desperta excitação
sexual); b) o sentido marxista (o mecanismo ideológico que transforma
tudo em mercadoria); c) o sentido xamânico (um objeto enfeitiçado, amuleto ou ídolo;
e d) o sentido figurado, o fetiche pode representar uma pessoa admirada por
outra, que é seguida e cujas ordens são obedecidas cegamente.
Na verdade, cada sentido da palavra
fetiche corresponde a um dos princípios midiáticos apresentados no começo. O
fetiche sexual da psicanálise se explica pela áurea da singularidade. O fetiche
marxista é baseado na reprodução em série de condições de produção que excluem
a maioria. O fetiche xamânico corresponde ao ‘assentamento’ do candomblé. E o
sentido figurado (“fulano tem um fetiche por sicrano” – por exemplo) é análogo
ao princípio da identidade.
No âmbito da psicanálise, o termo fetichismo é utilizado para definir o
desvio do interesse sexual para algumas partes do corpo do parceiro, para
alguma função fisiológica, para cenários ou locais inusitados, para fantasias
de simulação ou para roupas e adornos.
Para Marx, o fetichismo é a lógica da
mercadoria, um regime em que os homens tornam-se objetos (mercadorias) e as
coisas (os produtos) se comportam como pessoas. O fetichismo é uma relação
social entre pessoas mediada por coisas, com a aparência de uma relação direta
entre as coisas e não entre as pessoas. Disso resulta que a mercadoria (ou o
mercado) parece determinar a vontade do produtor e não o contrário. O
‘fetichismo da mercadoria’ seria então a magia do capitalismo.
Após Marx, outros autores retomaram a
noção marxista de fetichismo, como Adorno em relação à música e cinema; e Guy
Debord (2000) mostrando que o fetiche de mercadoria e a coisificação do mundo,
foi levado a um nível de objetividade muito além do que Marx imaginou.
A história do fetichismo no sentido xamânico
foi pesquisada por William Pietz, numa série de artigos titulados The Problem of the Fetish (1985, 1987,
1988 APUD SANZI, 2009). Nesta perspectiva, o objeto mágico é uma associação
entre narrativas simbólicas e acontecimentos. Por exemplo: um fato natural (a
chuva) em sincronia com acontecimento social (a alegria das plantas e pessoas
do deserto) é uma narrativa que associa mudanças meteorológicas à comunidade de
supostos sentimentos entre humanos e vegetais – tornando essa correspondência
de interpretação universalmente verdadeira. O encantado é sempre uma associação
entre o natural e o social, entre o sujeito e o objeto, entre o vivente e o
extraordinário. E a associação narrativa é sempre feita de coincidências
crescentes e repetidos. A narrativa cria o encantamento, em uma história de
origem, mas o encanto pode se multiplicar em outras narrativas.
Para Michael Taussig (1993) e Bruno
Latour (2002), antropólogos contemporâneos leitores de Pietz, apesar da
feitiçaria e do fetichismo terem sido descritos como parte das tradições
pré-modernas em oposição à objetividade científica, na verdade, a objetividade
da cultura moderna ocidental também é, em última instância, mágica e
fetichista. A modernidade é um encantamento macabro de identidade: a ilusão do
observador externo.
Durante a modernidade (esta imagem
objetiva e coisificada que fazemos de nós mesmos), fomos prisioneiros da
própria ilusão, forçados a sobreviver em mundo violento e sem sentido, jogados
em um universo frio e sem alma, não passamos, aos olhos da ciência objetiva, de
mamíferos tecno degenerados da crosta orgânica de uma bola de pedra girando em
torno de uma bola de fogo.
Por outro lado, também não se pode
retroceder, considerar os astros como são deuses e recolocar o observador como
sujeito no centro do universo, como se fez antes da modernidade. É preciso
perceber que universo é vibracional, constituído de energia e de relações entre
diferentes estados de ser. Não há um único universo objetivo, mas vários
universos virtuais (microcósmico, astrofísico, subatômico, etc).
E, apesar da ciência contemporânea (a
mecânica quântica, por exemplo) não ter mais objetos, ainda vivemos no mundo fetichista
das coisas e não no universo reencantado das relações entre energias.
E o que os feiticeiros pensam?
Para Carlos Castaneda/don Juan Mathus,
a Feitiçaria pode ser definida
como a “arte de acumular e redistribuir energia com o propósito de escapar à
segunda morte”. A “antiga arte” seria um sistema mágico-cognitivo meta
religioso, cético de todas as crenças, pragmático em relação à experiência
empírica na mudança dos estados de percepção e terminantemente avesso a
transcendências metafísicas ou representações das divindades. A feitiçaria
nessa definição é o oposto complementar do fetichismo, responsável pela
organização do mundo ordinário e ilusório das coisas, sob o qual se percebe o
reino das energias. Os fetiches (e a ilusão de que o mundo é formado por
objetos) seriam formas de aprisionamento da atenção (e da energia) das pessoas
para alguns aspectos da realidade em detrimentos de outros.
Para don Miguel Ruiz (2005), há dois
sonhos coletivos em desenvolvimento: o sonho que chamamos de realidade – “o
tonal, a primeira atenção ou sonho do inferno” – e o sonho dos guerreiros, um
sonho alternativo de realidade - “o nagual, o sonho da segunda atenção”[3].
Para Ruiz, o sistema de crenças é uma estrutura parasita de energia. Sonhamos
um sonho coletivo que nos aliena da vida e nos mantêm em uma realidade virtual,
uma ‘Matrix’ formada por nossas crenças e valores.
Enquanto Ruiz gnóstico sonha em salvar
a terra e a humanidade, Castaneda intenta antes salvar-se do destino da
humanidade de ser absorvido pela terra.
Ruiz entende a tarefa do xamã em uma
dimensão social: o sonho coletivo do medo só poderá ser transformado com grande
número de sonhadores que desejem a liberdade pessoal. Ruiz acredita poder
romper com o sonho social de medo tecendo um novo sonho. Segundo ele, é
libertar nosso sonho pessoal do sonho coletivo do medo de exclusão, do sonho de
domesticação social engendrado pela sociedade; e, em conjunto com outros
sonhadores conscientes, transformar esse sonho social de destruição planetária,
induzindo toda humanidade a um salto quântico evolutivo.
Para Castaneda, o tonal é uma ilha
(ou bolha da percepção) e o nagual a um oceano-universo que o engloba: o mar
escuro da consciência. A vida orgânica (o tonal) é uma gota em um universo
inorgânico. A tarefa do feiticeiro é sair individualmente do seu ovo tonal e
viver em um universo nagual.
Antes a palavra fetiche resgatava a
dignidade dos cultos africanos diante das acusações da Inquisição de feitiços. Hoje,
a feitiçaria tornou-se libertária e deseja desencantar a modernidade
fetichista. Confirma-se assim o dito que sempre os feitiços se voltam contra os
feiticeiros.
Referências Bibliográficas
BENJAMIM, Walter. A
obra de arte na época de sua reprodutividade técnica. Obras Escolhidas
(trad. S.P. Rouanet). São Paulo: Brasiliense, 1985.
DEBORD, G. Sociedade do espetáculo. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2000.
FETICHE. In: FERREIRA,
A.B. H. Dicionário Etimológico Nova
Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.
623.
LATOUR, Bruno. Reflexão sobre o culto moderno dos deuses
fe(i)tiches. Florianópolis: Editora Edusc, 2002.
MOORE, Alan. The Mindscape of Alan Moore. Directed
by DeZ Vylenz, Starring Alan Moore. Music by Drew Richards; RZA Distributed by
Shadowsnake Films Release dates October 24, 2003 (San Francisco World Film
Festival). Language English.
PEREZ, Clotilde. Mascotes Semiótica da vida Imaginária.
São Paulo: Cengage Learning. 2010: 144.
PIRES, Rogério Brittes
Wanderley. O Conceito Antropológico de
Fetiche: Objetos Africanos, Olhares Europeus. Dissertação (mestrado) –
Orientador: Márcio Goldman. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional, 2009- Rio de Janeiro,
PPGAS-MN/UFRJ, 2009.
SANSI, Roger. Feitiço e
fetiche no Atlântico moderno. Revista de Antropologia, São Paulo,
v. 51, n. 1, p. 123-153, jan. 2008. ISSN 1678-9857. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/27303>. Acesso em: 15 dec. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77012008000100005.
TAUSSIG,
Michael - Xamanismo, colonialismo e o
homem selvagem - Um Estudo Sobre o Terror e a Cera. Paz e Terra, 1993.
THOMPSON,
John B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis:
Vozes, 1998.
RUIZ, Miguel. Os
Quatro compromissos. Rio de Janeiro: Best Seller, 2005.
[1] Professor-pesquisador
do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN.
[2]
A Obra de Arte na era de sua
reprodutividade técnica
(1983, 5-28) Benjamin ressalta o impacto que a produção em série de objetos
pela indústria teve sobre a percepção. A obra de arte era única no tempo e no
espaço e isso lhe conferia uma áurea, uma presença sagrada. Hoje praticamente
tudo é reproduzido de modo idêntico. A
arte, então, deixou de ser sagrada, 'objeto de culto' para se tornar expressiva
dos sentimentos e crítica da injustiça social.
[3]
Os conceitos de Tonal e Nagual representam campos perceptivos
opostos e complementares, em que o primeiro é nossa percepção ordinária
(sensorial-mental) do mundo como algo formado por objetos concretos e coisas
sólidas; e o último é a percepção de que estamos em um universo de relações, em
que tudo é feito de energia em diferentes níveis de organização e de adaptação.