terça-feira, 1 de julho de 2025

Somos Interação


 SOMOS NOSSAS INTERAÇÕES

Costumamos pensar que uma pessoa é um indivíduo, mas as pessoas são interações entre indivíduos. Esses são identidades civis ancoradas nos corpos. A individualidade é uma expressão de nossa igualdade jurídica e uma ilusão objetiva, em que nos reconhecemos. Essa é nossa premissa.

Somos interações?

Sim, parcialmente. Mas, quais?

Interações teatrais, rituais, audiovisuais e lúdicas - responde o interacionismo simbólico (de George Herbert Mead e Eric Goffman).

Interações com os arquétipos do Pai, da Mãe, do Outro sexo e do Si Mesmo - responde a psicologia analítica (de Carlos Byington).

Interações de regularidade, de programação, de ajuste e de risco - responde a sócio-linguística (de Eric Landowsky).   

Vejamos, então, cada uma dessas possíveis respostas.

 

1. Interacionismo Simbólico

Max Weber foi o primeiro a definir ‘Interação Social’ como sendo uma Ação Social mútua e recíproca entre dois (ou mais) atores ou sujeitos. A interação é dita social não apenas por produzir significado, mas também por ser uma prática social e se inscrever num contexto que influencia as ações. De um ponto de vista epistemológico mais amplo, o termo foi e é utilizado de diferentes formas em diferentes áreas: há interação gravitacional, interação nuclear, interação eletromagnética. Devido seu caráter de reciprocidade mútua-consciente (ou reativa-involuntária), ‘interação’ era o oposto de ‘unidirecional’ ou de ‘causalidade’.

Em ciências sociais, utiliza-se o conceito de Interação Social de diferentes formas: Parsons usou a interação social como cimento do funcionalismo sistêmico, Habermas a interpretou como ação comunicativa, Goffman a utilizou como estratégia cognitiva; mas para todos ela representa uma troca imediata, de curto prazo (Primo, 1999).

Atualmente, em oposição a essa noção genérica de Interação Social, o termo ‘Relação Social’ aponta para trocas sociais recorrentes de longo prazo. As ‘relações sociais’ são políticas, religiosas, culturais, familiares e pessoais. Em sociologia, as ‘relações’ são entre atores coletivos e em contextos históricos que partem da estrutura social como um todo para entender o local. Enquanto o termo ‘interação’ representa outros olhares no sentido oposto, em uma perspectiva sincrônica, que parte do imediato vendo a sociedade como um conjunto de interações recorrentes consolidadas.  

George Herbert Mead é o principal expoente da interacionismo simbólico, crítico às ideias de Skinner, mas, ao mesmo tempo, assimila e supera o comportamentalismo pedagógico. O livro Mente, self e a sociedade (2021) considera a escola como um espaço protegido para o desenvolvimento do Self, a partir das interações entre o Eu e o Outro. O objetivo da educação nessa versão é aprender a se colocar no lugar dos outros - tanto no desenvolvimento pessoal como na perspectiva de evolução humana. Quando estabelecemos uma relação interpessoal com alguém, temos roteiros prontos que devem ser seguidos durante o processo. Dependendo da reação do outro, alteramos o roteiro em função da interação (é o “role-taking”, um mecanismo de interação não proposital).

Além dos outros imediatos da interação, considera-se também o Outro generalizado, correspondente ao grupo social como um todo, envolvendo os valores e comportamentos naturalizados na sociedade.

Mead vê três instâncias de identidade: o I (eu), o me (mim) e o self (o si mesmo). O ‘Eu’ é o agente (sujeito do enunciado); o ‘Mim’ é o produto dos condicionamentos sociais (o sujeito da enunciação); e o Self é o resultado da relação entre o agente e o sujeito passivo. O aprendizado acontece (dentro e fora do entorno escolar) quando o indivíduo consegue tomar a si mesmo como objeto de reflexão das três instâncias simultaneamente: o Eu, o Self e o Outro generalizado. A ideia embutida no interacionismo simbólico é que podemos romper com o condicionamento (de mim) através da reprogramação das rotinas cognitivas (do Eu) e da integração progressiva do Outro no Self. Ou seja, é possível romper com o condicionamento social imposto indiretamente através das interações imediatas.

Erving Goffman é um analista das interações, do que acontece quando duas ou mais pessoas se encontram face a face. “Inter-ação” é uma relação mútua e recíproca entre o Eu e o Outro (dentro de mim). Respeitar o outro assim como a si mesmo implica amor próprio e consideração, em porte e deferência. Há também uma audiência, um público, os olhares que apenas observam a ação dentro do jogo das interações. E, havendo público, há também o palco e os bastidores; o espaço de exposição e os locais de recolhimento.

O palco é composto de quatro elementos: a) expressões explícitas (comunicação verbal), b) expressões indiretas (gestos, faces, posturas corporais), c) objetos (figurino, acessórios) e d) cenário (representando os contextos). Há dois níveis de representação da interação. O primeiro é o imediato: um professor e seus alunos – por exemplo. No segundo nível, representa-se o conjunto dos professores diante da juventude. O segundo nível de representação é a própria realidade social simbolizada no interior da interação.  Outra distinção chave é entre o palco (a visibilidade púbica) e os bastidores (muitas vezes comparado ao inconsciente). A dicotomia é vista de forma semelhante ao par figura/fundo da teoria da imagem da Gestalt. O fundo é tudo o que está fora de foco. A figura é o foco da percepção.

Segundo especialistas (Branaman apud Nizet e Rigaux, 2016, p. 12), embora Goffman tome as interações sociais como objeto de análise em todos os seus livros, elas são abordadas de diferentes pontos de vista, por meio de metáforas.

Tabela 1 - Síntese da produção de Erving Goffman.

Interação

Livro

Ano

METÁFORA TEATRAL

A representação do Eu na vida cotidiana

Manicômios, prisões e conventos

Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada

(1956)

(1961)

(1963)

METÁFORA RITUAL

Ritual de interação – Ensaios sobre o comportamento face a face

Relações em público: micro estudos sobre a ordem pública

(1967)

(1971)

METÁFORA AUDIOVISUAL

Os quadros da experiência

Forms of talk

(1974)

 (1981)

METÁFORA LÚDICA

Encounters 

Strategic interations 

(1961)

(1969)

Fonte: Elaborado pelo autor, a partir de Nizet e Rigaux (2016).

 

Ao chamar as interações sociais de representações teatrais, Goffman está fazendo uso de uma metáfora? Prefiro pensá-las como “categorias descritivas”. Considerá-las como metáforas ou analogias poéticas significa esvaziá-las de seu poder cognitivo.  Abordagem teatral, os rituais sociais, o conceito de enquadramento (frame temporal) e a origem lúdica das interações representam uma evolução qualitativa no pensamento de Goffman e não apenas “momentos” ou “pontos de vista” (GOMES, 2025).

Além das contribuições interacionistas, a psicologia analítica também estudou a interação do Eu com o Outro, como relações de transferência e contra-transferência.

 

2. Psicologia Analítica

Jung (1982) vê a totalidade psíquica como “Quaternário”, um conjunto de quatro arquétipos estruturantes primários, formado por dois eixos de contrários: o eixo Ego-Self (representando a consciência imediata diante do inconsciente de Si) e o eixo Anima-Animus (referente a relação entre o Eu e o Outro).

Tabela 2 - Quaternário em Jung e Byington

Self (totalidade inconsciente)

ARQUÉTIPO DO PAI

Sombra/luz

ARQUÉTIPO DA MÃE

Anima ou Animus

ARQUÉTIPO DO OUTRO SEXO

Ego (Persona)

ARQUÉTIPO DO EU

Fonte: elaborado pelo autor

Byintgon, em sua Pedagogia Simbólica (1996), faz uma adaptação desse conceito de quatro ‘formas primárias’. Para ele, a infância familiar forma quatro arquétipos básicos: o Pai (que estabelece os limites do mundo); a Mãe (que nutre de alimento, informação e afeto); o Outro sexo; e o Si Mesmo (materializado no corpo). Quando a criança vai para escola, esses são seus parâmetros de comparação. Surgem “as relações de transferência e de contra-transferência não-analíticas”, ou seja, as projeções inconscientes através das quais o aprendizado simbólico se realiza.

Há várias adaptações do conceito do Quaternário, a maioria convergente porque tratam de descrever o próprio processo cognitivo. Entre as adaptações mais interessantes, destaco a Hermenêutica e a Semântica Estrutural.

Segundo o Zohar há quatro níveis de decifração hermenêutica no estudo das Sagradas Escrituras: PESCHAT ou sentido literal; REMEZ ou sentido alegórico; DERASCHÁ ou sentido tradicional; e SOD ou sentido místico. 

O Hermeneuta (GOMES, 1996) atualiza e redefine este método de interpretação através de quatro leituras para o ambiente das ciências humanas atuais: a leitura literal equivale à realidade objetiva; a leitura alegórica corresponde à ordem simbólica; a leitura tradicional se torna análise dos contextos intersubjetivos; e a leitura peformática permite acessar e reinventar o universo arque-típico. As quatro leituras sucessivas são a chave para interpretar os diferentes níveis de sentido de qualquer discurso

Com Paul Ricoeur (1994; 1995; 1997), a hermenêutica se sofisticou ainda mais e absorveu a metodologia da semiótica narrativa de Greimas (1976), o modelo dos quatro níveis de sentido (Forma de Expressão, Forma do Substância, Expressão do Conteúdo e Substância de Conteúdo) e o Quadrado de Actantes.  

A forma de expressão é a linguagem superficial, imediata, percebida através dos sentidos, composta com palavras, imagens, sons, signos materiais.

A substância de expressão é o significado, o conteúdo de cada signo: o que foi dito e porque.  

A forma de conteúdo, por sua vez, implica em se observar o contexto de enunciação e os diversos contextos de recepção (os diferentes pactos de leitura da narrativa), fazendo assim uma análise da situação.

 A substância de conteúdo se refere aos elementos simbólicos e psicológicos da narrativa, aos ‘universais do imaginário’, que combinados de diferentes modos formam a “mensagem” da narrativa.

Tabela 3 – Níveis de Análise Narrativa

PLANO DE EXPRESSÃO

PLANO DE CONTEÚDO

Forma de Expressão

Substância de Expressão

Forma de Conteúdo

Substância de Conteúdo

Texto e imagem

Conteúdo das histórias

Ideologia do emissor e estética dos receptores

Universais do imaginário, elementos psicológicos e simbólicos.

Fonte: elaborado pelo autor

Greimas definiu ainda, no nível profundo da substância de conteúdo, quatro “Actantes” principais (Sujeito, Anti-sujeito, Objeto de valor e Narrador) presentes em todas narrativas. A combinação desses quatro actantes em pares opostos forma a metodologia de análise do quadrado semiótico-narrativo, revelando a estrutura simbólica das histórias.

Resumindo: o interacionismo simbólico substituiu a objetividade pelo intersubjetivo; a psicopedagogia junguiana estabeleceu os arquétipos primários; a semântica estrutural aplicou a ideia ao estudo das narrativas; e, finalmente, a Semiótica das Interações, associou a perspectiva estrutural à ótica fenomenológica de forma metalinguística.

Landowski foi aluno e colaborador de Greimas. Sua teoria dos regimes de interação é uma ampliação sociológica da teoria dos regimes de significação. Interações Arriscadas (Landowski, 2014) apresenta uma versão aperfeiçoada dessa teoria formada por quatro regimes distintos de interações sociais, em relação à noção de “risco”. O metamodelo de Landowski, além de “sair do texto” (e da teoria de significação) para construir ‘uma analítica de vida’, também transforma o quadrado semiótico em uma espiral no formato do símbolo do infinito, alterando o diagrama de Greimas.

 

3. Sócio-semiótica

Figura 1 – Os regimes de interação em conjunto

 

Fonte: Extraído de Moreira Mendes (2019, p. 135).

 

A teoria sócio semiótica é formada por 4 regimes de interações: a programação (a interação constante e contínua, um algoritmo regular); a manipulação ou a intencionalidade (a interação inconstante e contínua); o ajuste (constante e descontínua); e o fator imprevisível, acidental, o aleatório (o inconstante e descontínuo). Assim, no lado de cima (e de fora), o aleatório é uma ruptura na regularidade; e, no lado de baixo (e de dentro), o ajustamento compensa a Si pelo Outro enquanto a manipulação adequa o Outro a Si. O lado direito representa a continuidade do processo e o lado esquerdo corresponde aos eventos descontínuos, ajustes e choques.

Tabela 4 – Fatores dos Regimes de Interação

 

Eu

Outro

Exterior

PROGRAMA

RISCO

Interior

MANIPULAÇÃO

AJUSTE

Fonte: elaborado pelo autor

Landowski considera que os dois regimes de programação e manipulação não existem de forma independente, que estão sempre intricados um no outro, mas os distingue metodologicamente como modos de interpretar, como a combinação de um modelo estrutural determinista como uma abordagem fenomenológica da intencionalidade; do condicionamento social do comportamento corporal com o desenvolvimento da autonomia subjetiva dos atores.

E essa duplicidade complementar das perspectivas comportamentais e cognitivas é semelhante a proposta sócio-interacionista e pode ser adaptada ao conceito de Zona Proximal de Vygotsky.

Os regimentos de interações por ajustamento e por risco funcionam como ‘pontes’ ou ‘andaimes’ de aprendizado, regimes em que a programação algorítmica e a motivação manipulada passam por adequações. O ajuste mede e compensa a dissonância entre cognitivo e comportamental; o risco desafia sua superação na prática.

O regime de ajustamento é composto de interações narrativas, janelas descontínuas, com várias durações e intensidades. As narrativas são simulações, treinos no processos de aprendizado e de superação de uma dissonância entre o saber e o ser.

As interações de risco (ou ‘lúdicas’) integram tanto o perigo objetivo de morte e das perdas (ou de fim da regularidade) quanto o medo de não ser amado (e/ou de não ser manipulado), a perda da confiança em si, da capacidade de auto programação individual e coletiva. Interações Lúdicas sempre implicam em decisões de desempenho (vitórias, derrotas, empates), por isso podem ser consideradas ‘interações de avaliação’ em oposição às Interações Narrativas (ou de ajuste), que são exercícios de simulação.

Além disso, o diagrama de Landowski permite visualizar que, no lado de cima (e de fora), o aleatório é uma ruptura na regularidade; e, no lado de baixo (e de dentro), o ajustamento compensa a Si pelo Outro enquanto a manipulação adequa o Outro a Si. O lado esquerdo representa a continuidade do processo e o lado direito, os eventos descontínuos, ajustes e choques. Os regimes de interação da sócio semiótica permitem trabalhar as abordagens de Mead e Vygotsky integradas, observando a interpretação imediata como estratégia de investigação, o duplo caráter cognitivo e comportamental e o conceito de zona proximal como uma janela de aprendizado, formada por ajustes narrativos e riscos lúdicos diversos. E essas são as nossas ferramentas de libertação do condicionamento.

Trabalhar sobre os próprios regimes de interação, no entanto, garante apenas mudanças breves. Reagir individualmente ao que fizeram conosco não é suficiente. Para conseguir modificar rotinas e contextos é preciso se unir a outros indivíduos com os mesmos ideais e formar grupos em que todos se apoiem e incentivem. Os grupos, por sua vez, precisam lutar para promover mudanças sociais nas instituições. Por isso, nos próximos textos, analisamos como o aprendizado através de interações pode ser inserido no sistema educacional formal e nos sistemas educomunicativos.

 

4. Considerações finais

Então, como escapar da Matrix?

Pode-se, a partir dessas analogias teóricas, repensar e ampliar o modelo dos regimes de interação para saber o que fazer com que fizeram conosco.

· Em relação ao regime de programação: Mudar de ambiente, de contexto, de lugar; viajar; mudar as rotinas inserindo novas atividades ou trocando a ordem das existentes; explorar – são exemplos de mudanças na regularidade algorítmica que condiciona o corpo.

· O regime de Manipulação ou intencionalidade é composto por rituais cognitivos de motivação, ‘autocontratos’, declarações de compromisso com um plano de mudanças, com suas recompensas e castigos detalhados: prêmios e castigos auto impostos em troca de objetivos e desafios.

· O regime de ajustamento é formado por uma séries de treinamentos, exercícios físicos, dietas, meditações; os ajustes são produzidos pela contradição entre a regularidade e a intencionalidade e compensam seus desequilíbrios. São sequencias de ações recorrentes com o objetivo diminuição progressiva das dissonâncias entre ser e saber, entre o comportamental e o cognitivo.

· E o regime do Acidente representa o princípio da incerteza, a abertura para o inesperado. O poeta Rumi dizia que “o medo é não aceitação do risco. Quando aceitamos o risco, nossa vida se transforma em aventura.” Enquanto o ajuste é uma simulação, um treino, uma narrativa; o risco é uma avaliação perigosa porque implica na perda ou na vitória. É o que torna a liberdade, a autonomia relativa, possível.

Que me desculpem os deterministas (os não-idealistas), mas tanto a revolução social e como as transformações pessoais começam com a mudança nas formas de consciência: para mudar as coisas precisamos mudar antes a forma como as interpretamos. A natureza, no entanto, ainda é irreversível em grande parte, seja pela genética, seja pela limitação ecológica de matérias-primas do meio ambiente. A economia, o corpo, a dureza material do mundo é o limite do sonho humano.

A profecia marxista de superação definitiva do conflito entre o determinismo e o idealismo não vingou. Aliás, a contradição continuou dentro do próprio marxista com autores mais deterministas (como Poulantzas e Althusser) e outros mais idealistas (como Gramsci e Sartre). Na psicopedagogia, o conflito ganhou força, por um lado, com o movimento behaviorista (e também com estruturalismo crítico de Foucault e Bourdieu); e, por outro, com o movimento cognitivista.

Vygotsky percebe as dissonâncias entre o cognitivo e o comportamental como oportunidades de aprendizado e interpreta a interação como ferramenta de libertação dos contextos. Mead enfatiza as relações recíprocas entre o Eu e o Outro. E Landowski integra esses autores em um único esquema, incorporando os conceitos de audiência, bastidores, narrativas e jogos.

 


Referências bibliográficas

BYINGTON, C. Pedagogia Simbólica. Rio de Janeiro: Record. 1996.

JUNG, C.G. Aion. Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo Petrópolis: Vozes, 1982.

GOMES, Marcelo Bolshaw. O Hermeneuta - Uma Introdução ao Estudo de Si. Natal: Editora da UFRN, 1996. https://www.academia.edu/34061443/O_HERMENEUTA_pdf 

_____ Interações mediadas por Tecnologia - Notas para uma Semiótica do Aprendizado. Eikon, revista multidisciplinar sobre Semiótica e Cultura. LABCOM, Universidade Beira Interior (UBI), Portugal, 2020. < https://ojs.labcom-ifp.ubi.pt/eikon/article/view/815 >

_____ Risco & monotonia: semiótica das interações. Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 24, n. 2, jul./dez. 2023.

____ Entre o interacionsimo simbólico e a sociologia compreensiva. Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 26, n. 1, jan./jun. 2025.

GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1976.

GREIMAS, Algirdas Julien; LANDOWSKI, Eric. Semiótica e ciências sociais. São Paulo: Cultrix, 1981.

LANDOWSKI, Eric. Interações Arriscadas. São Paulo: Estação das Letras e Cores, Centro de Pesquisa Sociossemióticas, 2014.

LANDOWSKI, Eric. Com Greimas: interações semióticas. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2017.

MEAD, George Herbert. Mente, self e sociedade. Charles, W. Morris. Morris, notas de Hans Joas e Daniel Huebner. Petrópolis: Vozes, 2021.

NIZET, Jean; RIGAUX, Natalie. A Sociologia de Erving Goffman. Tradução Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis: Vozes, 2016. (Coleção Sociologia: pontos de referência).

PRIMO, A. F. T.; CASSOL, M. B. F. EXPLORANDO O CONCEITO DE INTERATIVIDADE: DEFINIÇÕES E TAXONOMIAS. Informática na educação: teoria & prática, Porto Alegre, v. 2, n. 2, 1999. DOI: 10.22456/1982-1654.6286. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/index.php/InfEducTeoriaPratica/article/view/6286> Acesso em: 28 de março de 2024.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrrativa – tomos I, II e III (1983; 1984; 1985); tradução: Constança Marcondes Cezar; Marina Appenzeller; Roberto Leal Ferreira. Campinas, Papyrus: 1994; 1995; 1997.

 

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Elementos Narrativos do Dorama

 CARTOGRAFIA DAS LÁGRIMAS



Marcelo Bolshaw Gomes

 

Resumo: Quais são os elementos simbólicos e narrativos que definem o dorama asiático, principalmente o melodrama coreano? O objetivo deste texto é explorar, através de uma pesquisa documental qualitativa, como aplicar as ferramentas e modelos dos estudos narrativos a esse  conjunto de séries audiovisuais. O resultado é uma breve cartografia do estilo e de seus subgéneros segundo seus elementos narrativos principais.

Palavras_chave: Estudos Narrativos1; Séries audiovisuais2; Melodrama coreano3;

 

Introdução

Definir o Dorama como forma narrativa esbarra em uma série de problemas conceituais e de classificação. ‘Dorama’ é um termo genérico de narrativa audiovisual seriada asiática. Há variações culturais: j-drama é japonês, c-drama é chinês e o K-drama, coreano. E esses tipos nacionais de dorama espelham as diferenças culturais entre esses países. Os K-dramas costuma ter final inconcluso e “agridoce”, semelhantes à vida que nunca se encerra; os J-dramas têm finais trágicos e “amargos”, duros e irreversíveis como a vida é - contrastando com os melodramas ocidentais (novelas mexicanas e brasileiras) de ‘happy end’. Ou seja: ao mesmo tempo que as produções audiovisuais asiáticas contemporâneas tem características em comum frente a outras narrativas seriadas, elas também têm diferenças culturais significativas entre si, impercetíveis para o público ocidental.

Além das diferenças culturais em relação ao conteúdo, há também diferentes contextos de produção: os c-dramas são novelas de mais de 40 capítulos feitos para o público interno da China; os j-dramas geralmente são mini-séries de 8 a 12 partes; os k-dramas normalmente são seriados de 16 episódio - ambos voltados para um público global apesar do foco local.

O melodrama ocidental têm personagens arquetípicos: o herói, o vilão e a vítima; enquanto o dorama deseja desconstruir essa relação. O protagonismo é coletivo e o vilão é o destino do qual todos somos vítimas. O antagonista é a fatalidade, ou “han”, uma emoção cultural coreana que reflete tristeza, ressentimento e sofrimento acumulado. O tratamento dado aos personagens é mais complexo e realista, eles não são ‘actantes’ fixos, encarnando ‘funções narrativas’, são quase-pessoas com qualidades e defeitos.

Outra característica muito comum e conhecida dos doramas é a inversão da depreciação de género, uma perspectiva anti-misógena sem ser explicitamente feminista. Nos filmes do passado, principalmente nos de Hollywood, as mulheres eram desqualificadas como ‘tontas’ e incapazes. No K-drama ou melodrama coreano acontece o contrário: os homens têm suas falhas de caráter expostas e as mulheres são representadas com personalidades fortes e bem sucedidas.

Também é importante ressaltar que, do ponto de vista contextual, o K-drama faz parte da “la Hallyu’ (a onda coreana), uma expansão comercial da cultura sul coreana baseada em quatro pilares: culinária, música pop, séries audiovisuais e cosméticos. Essas quatro indústrias interagem entre si, dentro e fora das telas, com várias simbioses e intercessões.   

Após uma pesquisa exploratória de meses, identificamos quatro elementos simbólicos-narrativos nas séries audiovisuais do K-drama: o conteúdo temático multi-género; o foco e a invisibilidade; o protagonismo coletivo; e a adversidade como antagonista. Há também pelo menos duas características secundárias importantes: o roteiro alternando contemplação e ação; e trilha de áudio como forma de imersão emocional na narrativa.

Vejamos agora cada uma dessas características.


1. Conteúdo temático multi género

No ocidente chamamos de ‘narrativa de vingança’ às histórias em que o personagem principal sofre uma injustiça e retorna para se vingar - como no romance do Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas. Nos doramas, no entanto, uma narrativa de vingança é uma história que discute a vingança (o “olho por olho, dente por dente”) como um tema, vendo como vários personagens lidam com ela, quando a vingança é legítima e quando não, etc - como nas séries The Glory (2022) e Revenge of Others (2022).

O dorama é sempre ‘sobre algo’, com um tema específico, com historias de amor trágicas, conflitos familiares, segredos de nascimento, enfermidades terminais e dilemas morais. Pode-se inclusive pensar uma classificação dos melodramas coreanos por tema.

Tabela 1 - Classificação de melodramas coreanos por tema

TIPO

ELEMENTO PRINCIPAL

Romántico

Género que prioriza a jornada do casal em um mundo repleto de adversidades,

Familiar

Com ênfase nas relações familiares entre pais e filhos, mães, irmãs e em personagens órfãos.

Makjang

 Género misto com a comédia popular, com heróis virtuosos versus vilões malvados; tramas exageradas, viradas dramáticas e situações de alto impacto emocional. Passam na TV de sinal aberto todos os dias, com atores menos conhecidos.  

Melodrama Sageuk

Género romântico misto com filmes históricos, podendo ter elementos de viagens no tempo e mudanças de corpos entre os personagens.

Melodrama Médico

Género que combina romances com mortes e perdas clínicas em ambientes hospitalares. Vários tem ‘easter eggs’ sobre doenças e cirurgias ultra-realistas.

Melodrama de Venganza

Género que enfatiza a luta entre os personagens e se combina com outros elementos

Fonte: elaborado pelo autor com ajuda de IA

Existe uma característica que atravessa todos temas e géneros: é a redenção. Muitas histórias têm dois enredos: um no passado (que vai sendo conhecido através de ‘feedbacks’ progressivos) e outro no presente (em que a história principal se desenvolve). Há (quase) sempre segredos esquecidos e um ‘karma’ no passado que explica e justifica a linha do tempo do enredo imediato.

 

2. Focos e invisibilidades

Muitos atribuem o sucesso do melodrama coreano a falta de cenas de sexo em sua narrativa romântica. É verdade que, principalmente após os anos 60 com a contra-cultura, as narrativas tornaram-se mais eróticas e sexuais. E também que as novas gerações, em resposta a essa saturação pornográfica provocada pela libertação de séculos de repressão, preferem as narrativas românticas que enfatizam a afetividade e os sentimentos. Mas, essa é apenas uma parte da verdade. A ênfase na afetividade tem um efeito de sentido terapêutico para mulheres e pedagógico para os homens através das inversões em relação aos modelos ideológicos de dominação de género. Mulheres fortes em posição de poder fazem par com homens inseguros e imaturos.

A comida é a grande estrela do audiovisual coreano. Está presente praticamente em todos os k-dramas, não apenas como parte do enredo, mas também como produto de marketing (pratos, receitas, cultura culinária) e até como merchandising (inserção comercial de marcas dentro da narrativa). A música pop coreana e a indústria de cosméticos também aparecem e financiam os k-dramas, mas o papel da comida com ênfase na cultura tradicional e em locais turísticos é de longe o elemento de visibilidade mais forte nas narrativas.  As bebidas alcoólicas tradicionais - Soju (uma água ardente de batata doce) e Makgeolli (vinho de arroz) - são sempre consumidas alegremente sem censura (inclusive por personagens femininos de forma desmedida) em contextualizações positivas (ter coragem, superar limitações, falar a verdade) ou cómicas.

Particularmente não acho que os coreanos bebam menos que os brasileiros e imagino que os problemas decorrentes do consumo excessivo de bebidas alcoólicas seja o mesmo. Da mesmo forma, não acredito que os homens coreanos sejam menos machistas que os latinos. No entanto, a representação dessas questões nas narrativas audiovisuais não pretende retratar a realidade, mas intencionalmente modelá-la. Em nosso caso optamos por esconder não apenas o consumo de substâncias tóxicas como também nossa rica culinária; enquanto a narrativa melodramática coreana invisibiliza a sexualidade e ... a política.

A política é outra grande ausência no melodrama coreano. Aliás, embora as séries audiovisuais do sul não sejam assistidas na Coreia do Norte, é impossível deixar de imaginar que elas não são uma forma de propaganda ideológica de um estilo de vida híbrido entre o asiático e o ocidental. No entanto, esse ponto é completamente camuflado com o glamour e a afetividade. O K-drama Pousando no amor (ou Crash Landing On You) é um bom exemplo disso.

Mas enquanto dos doramas vendem o consumismo estilizado para os coreanos, os fãs da cultura coreana no Brasil e nos Estados Unidos são extremamente politizados, participando dos protestos do movimento Black Lives Matter e manifestações contra Donald Trump. No Brasil, fãs do BTS arrecadaram recursos para a proteção do Pantanal. Há diferenças entre as recepções e entre os públicos alvo dos doramas na semiosfera coreana e na semiosfera ocidental.

Os k-dramas, em sua origem, são produtos que nascem da intersecção de culturas. Se antes eles precisavam incorporar elementos ocidentais para atrair a atenção do próprio público local, agora também incidem sobre uma semiosfera de sentido que não se restringe à orientalidade. Essas trocas vão aparecer de maneira contínua e não somente com a ocidentalidade. Essas interações entre culturas e entre as formas de representação, condicionam o signo mulher a partir de uma única parte representável do objeto (OLIVEIRA, STEFENON; ABREU, 2021, 10) .

 

3. O protagonismo coletivo

Oliveira, Stefenon e Abreu (2021, 4) acreditam que a representação da mulher preserva matrizes de uma determinada tradição asiática conservadora e reforça a divisão entre os géneros. No entanto, apesar dos elementos machistas tradicionais (mesclado com o marketing capitalista) para o público interno coreano, há também vários elementos progressistas para as jovens ocidentais de classe média alta dos países consumidores das culturas asiáticas.

Uma forma simples de definir o protagonismo feminino na jornada do herói é a mudança do antagonista: nas histórias patriarcais o inimigo é a natureza (e suas metáforas); na jornada feminina, o inimigo é a sociedade distópica e machista, a máquina e a razão sem sentimentos. De modo, que homens e mulheres podem ser protagonistas das duas jornadas, cuja a diferença estrutural seria inimigo-contexto.

Greimas (1976) tem um modelo mais complexo, mas ainda incapaz de caraterizar a mudança de valores nas narrativas atuais. Para ele, as narrativas são compostas de quatro ‘actantes’ principais: o objeto de valor, o sujeito (que deseja o objeto), o anti-sujeito (que impede a realização do desejo do sujeito) e o narrador. Nesse modelo, a natureza do objeto de valor determina de que tipo a narrativa é.  

Através da compreensão do objeto de valor de uma narrativa é que podemos entender não apenas quem são os sujeitos da disputa e quais suas dificuldades, mas também quem é que está nos contando essa história, ancorada em que valores e em com objetivos. A maioria dos triângulos amorosos das narrativa dos ocidentais são edipianos, formados por dois homens (o herói e o vilão) e uma mulher (disputada por ele), são uma replicação narrativa da tragédia de Tristão e Isolda. No melodrama coreano, porém, os vilões vão se humanizando no decorrer da narrativa e as falhas de caráter do herói vão aparecendo durante a trama. E o pior (ou o melhor): os dois se tornam amigos, tornando a escolha mais difícil.

A mulher, ao invés de vítima ou objeto de disputa, é colocada em uma posição de autonomia e decisão. Mas, não de protagonista única e solitária. No melodrama coreana, a narrativa não é uma jornada heroica épica como em Joseph Campbell (1990) nem uma história trágica clássica como em Aristóteles. É uma jornada coletiva: do casal, do grupo de amigos, da comunidade.

Todos são protagonistas! Todos têm seus conflitos para resolver. Mas, todos também são vítimas da entropia fatal que a todos derrota. Por isso, mesmo quando acaba bem, o K-drama é uma celebração das perdas. “A adversidade como antagonista” significa que os personagens, na verdade, lutam contra a irreversibilidade do tempo, contra a implacabilidade das coisas, contra a dureza da vida que segue.

Ao contrário da tragédia clássica, em que a catarse de expiação é ativada por uma antecipação constante do final inevitável, no melodrama coreana há viradas, surpresas, suspense. Os golpes do destino são inesperados. A catarse dorâmica é de redenção do passado e o final, uma espécie de balanço das derrotas sofridas e dos personagens sobreviventes.

Além dessa quatro características narrativas (o conteúdo temático multi-género; o foco e a invisibilidade; o protagonismo coletivo; e a adversidade como antagonista), existem ainda duas características semióticas marcantes: o roteiro alternando contemplação e ação; e trilha de áudio como  imersão emocional na narrativa.

A influência do budismo e do confucionismo também pode ser observada, não apenas no conteúdo, mas na necessidade de oferecer uma narrativa mais contemplativa e menos ansiosa. Além de um ritmo de edição mais calmo, há inserção de clips musicais com cenas de alto impacto visuais (o primeiro dia da neve, o florescer das cerejeiras, o luar em um lago, etc). E não se trata apenas de músicas, toda trilha de áudio é artificialmente adicionada nas imagens e mixado ao som direto durante a pós-produção. Assim, a sonoplastia é altamente narrativa e mantém o telespectador emocionalmente ligado à história.

 

Referências

CAMPBELL, J. O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990.

GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1976.

PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Tradução de Jasna Paravich Sarhan. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

OLIVEIRA, Felipe Moura de; STEFENON, Eduarda; ABREU, Júlia Ozorio de. O dorama como texto da cultura: a mulher nas séries sul-coreanas mais vistas entre janeiro e junho de 2020. Semeiosis - Semiótica e Transdisciplinaridade em revista. V.9 N2 2021.