segunda-feira, 1 de abril de 2024

Interagindo com a Estrutura

 


O QUE FAZER COM QUE FIZERAM CONOSCO


 

1.      INTRODUÇÃO

Na Contribuição à crítica da economia política (1977, p. 49-50), Marx, quando se refere ao conjunto da sociedade, distingue a existência concreta dos homens de suas formas de consciência social. A existência concreta equivale à infraestrutura econômica e às ‘forças produtivas resultantes da interface entre o Homem e a Natureza; e as formas de consciência social, à superestrutura e às relações dos homens entre si, à luta política e cultural entre as classes sociais. Lá para tantas, Marx pergunta: “são os homens que fazem a história ou a história que faz os homens?” E ele mesmo responde que a práxis é a dialética entre a ação humana e o contexto estrutural, a revolução, quando “os homens tomarem as rédeas da própria história”.

Segundo essa perspectiva, existiriam duas correntes polares: o Idealismo (os homens fazem a história) e mecanicismo determinista (a história faz os homens). O idealista sonha: “Não somos algo que nos aconteceu. Somos o que escolhemos me tornar”. No entanto, bem entendida a liberdade de escolha de todos, as pessoas são formadas pelos acontecimentos de suas vidas. Por outro lado, há também o ponto de vista determinista: “O homem é uma folha em branco” escrita pela sociedade (Hume e Locke), produto do contexto social, histórico e geográfico.

Para Marx, infraestrutura e superestrutura se condicionam mutuamente, mas, que, ‘em última instância’, as necessidades predominam sobre as formas de consciência. As mudanças sociais, nessa perspectiva, ocorrem inicialmente na infraestrutura produtiva (entre as classes e organizações); e, em um segundo momento, na reprodução das condições de produção: a superestrutura (no presente, no aqui-e-agora).

O pensamento político de Lenin associa os termos ‘estratégia’ e ‘tática’ à distinção marxista entre o estrutural e o conjuntural. A estratégia defende mudanças históricas; a tática, luta pelo imediato, pela sobrevivência. A ortodoxia marxista-leninista é construída por esse foco duplo estrutural. No livro O Estado e a Revolução (2017), por exemplo, Lenin argumenta simultaneamente contra a socialdemocracia menchevique, cuja a estratégia se resumia a chegar a um governo democrático liberal e o anarquismo cuja estratégia era lutar imediatamente a uma sociedade sem estado. Para ele, os mencheviques não tinha uma proposta histórica estrutural, só tática imediata; e os anarquista (depois substituídos pelos trotskistas), ao inverso, não tinham uma política realista apenas um objetivo final[1].

Gramsci traz de volta o foco para sociologia e para tema da práxis definido por Marx. Gramsci e o eurocomunismo, no entanto, defendem uma estratégia de chegar ao poder pela via eleitoral, a conquistar as instituições da superestrutura primeiro para depois fazer as mudanças econômicas infra estruturais. Gramsci distingue duas ações sociais: o agir, atividade consciente individual, superestrutural; e o fazer histórico das classes, infra estrutural. A práxis seria então a união do agir com o fazer.

Bourdieu (2000) promove uma reunificação dos contextos e chama de práxis à interação entre as condições objetivas e os esquemas subjetivos postos em uma única perspectiva. Acredita superar assim tanto o objetivismo estruturalista (com ênfase no condicionamento social) como o idealismo fenomenológico (que crê na preponderância dos seus esquemas subjetivos). A práxis são as práticas sociais, a reprodução em constante adaptação.

Porém, foi Jean Paul Sartre (2002, p. 15) que, levando a práxis de volta para o pessoal (e para o ‘menos estrutural’), fez a observação mais relevante para nosso contexto atual: “Não importa o que fizeram conosco. O que importa é o que fazemos com o que fizeram de nós”. Ou seja: como nossa consciência pode reverter nosso condicionamento social, como escapar da identidade cultural em que somos aprisionados pela sociedade, pela comunidade e pela família.

A liberdade individual (diante da estrutura imposta pelas vontades de poder coletivas) se torna uma forma de resistência pessoal: não se entregar ao consumo midiático, não se entregar ao entretenimento, não se entregar a ilusão ideológica e a ‘imagem invertida’ da realidade produzida para mascarar as injustiças e desigualdades.

 

2.      CONSCIÊNCIA E CONDICIONAMENTO

O conflito entre determinismo causal e idealismo continuou. No campo da psicopedagogia, o determinismo se fortaleceu com o behaviorismo (o adestramento corporal baseado em prêmios e castigos), mas também ao pensamento crítico de Foucault e Bourdieu – que entendem o ensino tradicional como disciplina e adestramento do corpo e da mente.

Foucault (2009) apresenta a escola como uma instituição de confinamento da sociedade disciplinar, e, assim como a fábrica e o hospital, funciona sob o design modelo da instituição penitenciária, o panóptico, um regime de visibilidade em que o carcereiro vê todos os presos isolados. Essa centralidade do poder em relação aos dominados pode ser vista na imagem do professor falante diante de uma sala com filas de cadeiras de estudantes passivos. E o objetivo das instituições de confinamento é adestramento dos corpos em relação aos desejos; é impor rotinas de vida uniformizadas, produzindo o cotidiano como cultura. A escola é uma instituição de confinamento e disciplina.

Outra visão crítica importante é a de Bourdieu (2014a, 2014b). Para ele, a escolar tem uma dupla função: transmitir capital cultural entre as gerações e reproduzir e ampliar as desigualdades sociais entre as classes. A escola manifesta uma ‘indiferença às diferenças’ no processo de transmissão do capital cultural. Todos são tratados como ‘iguais’ embora sejam ‘diferentes’.

Esse enquadramento simbólico de todos à igualdade é um fator violento de desqualificação da maioria. A uniformização das diferenças é uma violência simbólica. Ela é uma imposição dos dominantes diante da submissão voluntária dos dominados. No caso da escola (pública e gratuita) francesa estudada, Bourdieu argumenta que transmissão primária de capital cultural é feita dentro da família e que a educação escolar é uma transmissão secundária que amplia o capital daqueles que os já detém e que desqualifica a maioria que dele carece. Assim, ele reforça culturalmente uma desigualdade social já existente, a transmissão de capital cultural através do entorno familiar produz desigualdade em relação à transmissão secundária do entorno escolar[2].

Enquanto o determinismo sufoca a ideia de liberdade individual diante das estruturas coletivas, o idealismo também ressurge sempre, desta vez na forma de psicopedagogias construtivistas e do interacionismo simbólico. George Herbert Mead é o principal expoente da interacionismo simbólico crítico às ideias de Skinner e ao comportamentalismo pedagógico. O livro Mente, self e a sociedade (2021) considera a escola como um espaço protegido para o desenvolvimento do Self, a partir das interações entre o Eu e o Outro[3]. O ‘Eu’ é o agente (sujeito do enunciado); o ‘Mim’ é o produto dos condicionamentos sociais (o sujeito da enunciação); e o Self é o resultado da relação entre o agente e o sujeito passivo. O aprendizado acontece (dentro e fora do entorno escolar) quando o indivíduo consegue tomar a si mesmo como objeto de reflexão das três instâncias simultaneamente: o Eu, o Self e o Outro generalizado.

A ideia embutida no interacionismo simbólico é que podemos romper com o condicionamento (de mim) através da reprogramação das rotinas cognitivas (do Eu) e da integração progressiva do Outro no Self. Ou seja, é possível romper com o condicionamento social imposto indiretamente através das interações imediatas.


3.      O QUE É INTERAÇÃO?

Max Weber foi o primeiro a definir ‘Interação Social’ como sendo uma Ação Social mútua e recíproca entre dois (ou mais) atores ou sujeitos. A interação é dita social não apenas por produzir significado, mas também por ser uma prática social e se inscrever num contexto que influencia as ações.

De um ponto de vista epistemológico mais amplo, o termo foi e é utilizado de diferentes formas em diferentes áreas: há interação gravitacional, interação nuclear, interação eletromagnética. Devido seu caráter de reciprocidade mútua-consciente (ou reativa-involuntária), ‘interação’ era o oposto de ‘unidirecional’ ou de ‘causalidade’. Muitos pensadores de ciências sociais utilizaram o conceito de Interação Social de diferentes formas: Parsons usou a interação social como cimento do funcionalismo sistêmico, Habermas a interpretou como ação comunicativa em condicionamento estrutural econômico e político, Goffman a utilizou como estratégia cognitiva; mas para todos ela representa uma troca imediata, de curto prazo (Primo, 1999).

Atualmente, em oposição a essa noção genérica de Interação Social, o termo ‘Relação Social’ aponta para trocas sociais recorrentes de longo prazo. As ‘relações sociais’ são políticas, religiosas, culturais, familiares e pessoais. Em sociologia, normalmente, as ‘relações’ são pensadas com atores coletivos e em contextos que partem da estrutura social como um todo para entender o detalhe; enquanto outros olhares fazem o sentido oposto, vendo a sociedade como um conjunto de interações recorrentes e de relações consolidadas, uma perspectiva “do particular para o geral”. Porém, hoje em dia, devido a simultaneidade de tempo, há um predomínio do presente sobre a história. E até sociólogos mais voltados para relações sociais, como Thompson (1998) se referem aos meios de comunicação como uma ‘interação mediada’ ou ainda Giddens (2003) que, a partir da lógica das interações em uma leitura fenomenológica das práticas sociais, descontrói e flexibiliza o conceito de estrutura social em regras e princípios relativos.

Para responder nossa questão central, que é o que fazer com que fizeram conosco, isto é, como interagir com nosso condicionamento de forma ampliar nossa liberdade, três pensadores são particularmente úteis: Goffman, Vygostsky e Landowski.

Erving Goffman é um analista das interações, do que acontece quando duas ou mais pessoas se encontram face a face. ‘Inter-ação’ é uma relação mútua e recíproca entre o Eu e o Outro (dentro de mim). Os especialistas (Nizet e Rigaux, 2016) indicam que ele estuda a interação através de quatro modelos: o teatro, o ritual, o audiovisual e o jogo. Além do Eu e do Outro, existem também no campo das interações uma audiência, um público, os olhares que apenas observam a ação dentro do jogo das interações. E, havendo público, há também o palco e os bastidores; o espaço de exposição e os locais de recolhimento[4].

Vygotsky e seus seguidores (1988) também levam em conta o condicionamento do meio externo combinado ao aspecto cognitivo, através da mediação da escola e do professor e das interações dos alunos entre si. Suas contribuições são extensas não só para pedagogia, mas para psicologia como um todo.

Para nós, o ponto mais importante é o conceito de Zona Proximal de Aprendizado, que consiste em uma janela de tempo entre um ponto de conhecimento real e um ponto de conhecimento potencial. Posso observar uma pessoa andar de bicicleta e me sentir capaz de também fazê-lo, porém, apenas após de algum treino poderei realizar na prática meu pensamento inicial. Essa janela entre o conhecimento cognitivo primária e o conhecimento comportamental adquirido é um intervalo de treinamento, em que várias práticas parciais ou andaimes’ podem ser executados.

E, finalmente, a Semiótica das Interações (Landoski, 2014) – que permite que se associe a perspectiva estrutural à ótica fenomenológica ressaltando os ajustes e os riscos. A teoria sócio semiótica é formada por quatro regimes distintos de interações: a programação (a interação sempre constante e contínua, um algoritmo regular objetivo); a manipulação (a interação inconstante e contínua); a interação de ajuste (constante e descontínua); e o fator imprevisível (o aspecto inconstante e descontínuo).

Landowski considera que os dois regimes de programação e manipulação não existem de forma independente, que estão sempre intricados um no outro, mas os distingue metodologicamente como modos de interpretar, como a combinação de um modelo estrutural determinista como uma abordagem fenomenológica da intencionalidade; do condicionamento social do comportamento corporal com o desenvolvimento da autonomia subjetiva dos atores. E essa duplicidade complementar das perspectivas comportamentais e cognitivas pode ser adaptada ao conceito de Zona Proximal de Vygotsky.

Os regimes de ajustamento e risco também são indissociáveis. O ajuste mede e compensa a dissonância entre cognitivo e comportamental; o risco desafia sua superação. E essa duplicidade complementar dos regimes de ajuste e risco corresponde aos elementos descritos narrados por Goffman. Além disso, o diagrama de Landowski permite visualizar que, no lado de cima e de fora, o aleatório é uma ruptura na regularidade; e, no lado de baixo e de dentro, o ajustamento compensa a Si pelo Outro enquanto a manipulação adequa o Outro a Si.

Os regimes de interação da sócio semiótica permitem trabalhar as abordagens de Goffman e Vygotsky integradas, observando a interpretação imediata como estratégia de investigação, o duplo caráter cognitivo e comportamental e o conceito de zona proximal como uma janela de aprendizado, formada por ajustes e riscos diversos. E essas são as nossas ferramentas de libertação do condicionamento.


4.      CONCLUSÃO

As pessoas não decidem seus futuros. Decidem seus hábitos e seus hábitos decidem seus futuros. Frederick Mattias Alexander.


A profecia marxista de superação definitiva do conflito entre o determinismo e o idealismo não vingou. Aliás, a contradição continuou dentro do próprio marxista com autores mais deterministas (como Poulantzas e Althusser) e outros mais idealistas (como Gramsci e Sartre). Na psicopedagogia, o conflito ganhou força, por um lado, com o movimento behaviorista (e também com autores como Foucault e Bourdieu); e, por outro, com o movimento cognitivista e o interacionismo simbólico.

A reunificação dos contextos estruturais em uma perspectiva proposta por Bourdieu também não prosperou, porque as práticas sociais dos agentes coletivos variam segundo a cultura e os valores individuais. Bourdieu pensou as práticas sociais engendrada pelo cooperação/competição dos agentes em torno da disputa de diferentes tipos de capital (econômico, cultural, simbólico), em diversos campos específicos simultaneamente. Pode ser uma forma interessante de descrever as mudanças nas disputas entre agentes coletivos (classes, instituições, grupos sociais), mas não funciona bem quando o assunto são as mudanças pessoais e interpessoais. E mesmo pequenas mudanças pessoais – “parar de fumar”, por exemplo – depende muito mais do ambiente e relações do que da vontade individual.

É como diz a conhecida prece: “Força de vontade para mudar o que pode ser mudado; humildade para aceitar o que não pode; e consciência para discernir entre as duas”. O que pode ser mudado, os 40% das sinapses móveis entre os neurônios, é a Personalidade. E os outros 60%, formados pelos circuitos cerebrais fixos, é a Individualidade[5] (Silva, 2009), nossa ‘infraestrutura’ genética. A Personalidade é uma ‘superestrutura’ de identidade construída por nossa consciência para atender às expectativas dos outros[6].

 Podemos, a partir dessas analogias, repensar o modelo dos regimes de interação. A práxis individual é uma dialética entre a consciência e a identidade externa formada pelo condicionamento. Mudar de ambiente, de contexto, de lugar; mudar as rotinas inserindo novas atividades ou trocando a ordem das existentes – são exemplos de mudanças no regime de Programação. O regime de Manipulação, por sua vez, seria composto por rituais cognitivos de motivação, exercícios físicos, dietas, meditações; prêmios e castigos auto impostos em troca de objetivos e desafios. Os ajustes e riscos são janelas descontínuas, com várias durações e intensidades. O regime de Ajustamento, em que o Eu se adapta ao Outro repentinamente, é o inverso do regime da Manipulação contínua, em que o Outro é adaptado ao Eu. E, finalmente, o regime do Acidente representa o princípio da incerteza, a abertura para o inesperado. É o que torna a liberdade, a autonomia relativa, possível.

 

Bibliografia

BOURDIEU. Pierre. PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis: Vozes, 2014a.

BOURDIEU. Pierre. PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014b.

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2000.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2009,

GIDDENS, Anthony.  O Mundo em descontrole – o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2003.

GOFFMAN, Irving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.

GRAMSCI, Antônio.  Cadernos de Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

HABERMAS, Jürgen. Teoria do Agir Comunicativo: Racionalidade da ação e racionalidade social. Vol. I e II. São Paulo. WMF Martins Fontes, 2012.

LANDOWSKI, Eric. Interações Arriscadas. Tradução de Luiza Helena Oliveira da Silva. – São Paulo: Estação das Letras e Cores: Centro de Pesquisa Sociossemióticas, 2014.

LENIN, Vladímir Ilitch. O Estado e a revolução: a doutrina do marxismo sobre o Estado e as tarefas do proletariado na revolução. São Paulo: Boitempo, 2017

MARX, Karl. MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

MEAD, George Herbert. Mente, self e sociedade. Edição definitiva. Charles, W. Morris. Morris, notas de Hans Joas e Daniel Huebner. Petrópolis: Vozes, 2021.

NIZET, Jean; RIGAUX, Natalie. A Sociologia de Erving Goffman. Tradução Ana Cristina Arantes Nasser. Petrópolis: Vozes, 2016. (Coleção Sociologia: pontos de referência)

PRIMO, A. F. T.; CASSOL, M. B. F. EXPLORANDO O CONCEITO DE INTERATIVIDADE: DEFINIÇÕES E TAXONOMIAS. Informática na educação: teoria & prática, Porto Alegre, v. 2, n. 2, 1999. DOI: 10.22456/1982-1654.6286. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/index.php/InfEducTeoriaPratica/article/view/6286> Acesso em: 28 de março de 2024.

SARTRE, Jean-Paul. Crítica da razão dialética: precedido por questões de método. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

SILVA, Flávia Gonçalves da. Subjetividade, individualidade, personalidade e identidade: concepções a partir da psicologia histórico-cultural. Psicologia da Educação, São Paulo, 28, 1º sem. de 2009, pp. 169-195. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/psicoeduca/issue/view/2179> Acesso em: 28 de março de 2024.

THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade – uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.

WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2004.

VYGOTSKY, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone Edusp, 1988.



[1][1] Outra forma de caracterizar a ortodoxia leninista é dizer que ela é equidistante às éticas weberianas, se colocando entre a ética da responsabilidade (em que ação social é orientada por objetivos) e a ética da convicção (que compreende a ação social orientada por crenças e valores). O leninismo está sempre à esquerda da responsabilidade e à direita das convicções.

[2] A internet e a telefonia móvel também promovem uma renovação ampliada desta injustiça!

[3] O objetivo da educação nessa versão é aprender a se colocar no lugar dos outros - tanto no desenvolvimento pessoal como na perspectiva de evolução humana. Quando estabelecemos uma relação interpessoal com alguém, temos roteiros prontos que devem ser seguidos durante o processo. Dependendo da reação do outro, alteramos o roteiro em função da interação (é o “role-taking”, um mecanismo de interação não proposital). Além dos outros imediatos da interação, considera-se também o Outro generalizado, correspondente ao grupo social como um todo, envolvendo os valores e comportamentos naturalizados na sociedade. Mead vê três instâncias de identidade: o I (eu), o me (mim) e o self (o si mesmo).

[4] O palco é composto por quatro elementos: a) expressões explícitas (comunicação verbal), b) expressões indiretas (gestos, faces, posturas corporais), c) objetos (figurino, acessórios) e d) cenário (representando os contextos). Há dois níveis de representação da interação. O primeiro é o imediato: um professor e seus alunos – por exemplo. No segundo nível, representa-se o conjunto dos professores diante da juventude. O segundo nível de representação é a própria realidade social simbolizada no interior da interação. Outra distinção chave é entre o palco (a visibilidade púbica) e os bastidores (muitas vezes comparado ao inconsciente). A dicotomia é vista de forma semelhante ao par figura/fundo da teoria da imagem da Gestalt. O fundo é tudo o que está fora de foco. A figura é o foco da percepção.

[5] Ter filhos, grandes amores, mortes de parentes e outras perdas também podem provocar pequenas mudanças na Individualidade.

[6] A função da Personalidade é interpretar a Individualidade e não a esconder ou reprimir. É como uma vitrine que apresenta ao conteúdo da loja, não adianta quebra-la ou subtraí-la, é preciso reorganizá-la. Atores e atrizes de teatro costumam ‘se trabalhar’ escolhendo personagens com aspectos semelhantes aos de suas personalidades, como uma forma de reinterpretá-los e superá-los, além de lapidar a própria Individualidade.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

prece do jogador

Jogai, Senhor, Jogai, 

Seus dados divinos

Os nossos destinos, jogai.

Dai-nos, hoje, nosso fair-play
Não nos deixei
Ser juiz com simpatia
nem vencedor sem empatia.

Que as derrotas nos ensine a melhorar. 

E livrai-nos dos ruídos do azar
e de todo risco sem valia.

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

autocolonização


 Eu sou um espírito colonizador de mundos 
e um corpo domesticado pelas estrelas.

Sou a consciência universal em seu caminho de retorno, exploro o subterrâneo material, as durezas finitas do entorno. 

Também sou um anfitrião colonizado, o macaco abduzido; hospedeiro simbiótico geneticamente modificado, culturalmente identificado e definido.

Sou Eu, esse conflito entre o viajante e a pousada; um eternamente passageiro; o outro, sempre relativo a cada. 

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Os três filtros*

 


A entropia reinava e o ruído era constante. 

Porém, saindo da polissemia geral, um informante agendou uma entrega de dados para fazer sentido, e, logo após o acesso remoto, foi declarando:

- Você não emula o que me relataram a respeito do outro terminal  ...

Nem chegou a completar a frase e o sistema entrou em modo de segurança:

- ALERTA: Essa entrega de dados passou pelos três filtros do Gatekeaper?

- Filtros? Gatekeaper? - Indagou o informante.

 - Gatekeaper é o guardião do portal da comunicação digital. O portal é formado por um protocolo de três filtros: Ethos, Pathos e Logos. O primeiro, Ethos, é o filtro da VERDADE: Você tem certeza de que esse fato é verdadeiro?

- Não. Não tenho, não. Como posso saber? Só sei que foi o que me transmitido. Sou um mero retransmissor.

- O segundo filtro, Pathos, é o da EMPATIA: Como as pessoas envolvidas vão se sentir sendo expostas? Você gostaria que os outros também transmitissem o mesmo a seu respeito?

- Não. Não pensei no retorno do efeito de sentido sobre o objeto, não medi o feedback - reconheceu o informante.

- Existe ainda o terceiro filtro, Logos, é o da NECESSIDADE: A informação é relevante?  Resolve alguma coisa? Ajuda a comunidade?

- Não, ela não acrescenta nada a ninguém - disse envergonhado.

- O primeiro filtro não diz respeito apenas a veracidade do acontecido, mas também as suas interpretações. O segundo filtro simula os vários efeitos de sentido da informação na audiência e não só no objeto-evento informado. A informação tem uma carga afetiva. O terceiro filtro se refere a utilidade e não apenas a necessidade. A quem interessa essa informação, se é uma manipulação de verdade agradável. 

- Então,  se não é VERDADEIRO, não é BOM e nem IMPORTANTE, não passa pelos três filtros, então VAMOS DELETAR E NÃO PASSAR ADIANTE.


* Adaptação da parábola das três peneiras atribuída a Sócrates.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

etnogenesis

 Quatro dicas para quem quer assumir uma identidade indígena


1) Conheça sua árvore genealógica. A identidade nativa das Américas é baseada no conhecimento dos antepassados, não apenas os nomes, mas também em quem foram e o que fizeram. Um indígena só reconhece outro se ele souber recitar sua descendência patrilinear por dez gerações. Os critérios adotados por colonizadores (como saber realizar a cerimônia do Toré, por exemplo, como fazia antigamente a Funai) são todos relativos e arbitrários.

2) Faça um teste genético (um exame de sangue serve) provando sua ascendência, confirmando a árvore hereditária e seu pertencimento a uma comunidade nativa. A tecnologia permite validar a tradição do ponto de vista científico e legal. Depois de adotar o critério da própria identidade, precisa validar pelo critério dos outros. 

3) A identidade nativa é coletiva e baseada na unidade entre comunidade e território. Portanto, é preciso documentar que a terra em que se encontra a comunidade hoje pertenceu à etnia no passado, caso exista um pleito para sua demarcação ou desapropriação. Não basta ocupar a terra e reivindicá-la; é preciso demonstrar que ela tenha sido originalmente pertencente aos descendentes da etnia que a reclama. O IHGB é o órgão que pode atestar os documentos que comprovem a posse original da terra pela comunidade. 

4) Estude a história do povo com que você se identifica. Não assuma denominações sem entender o que significam, principalmente, nomes adotados por outras tribos. "Tapuio" - por exemplo, é uma termo pejorativo utilizado pelos tupis para caracterizar os nativos de outras etnias, do tronco linguístico Jê. Você pode estar desrespeitando seus antepassados ao invés de celebrá-los. 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

gamificação da democracia


 Uma pergunta simples: a vida é um jogo? A vida é algo que disputamos, em que há vencedores e perdedores? Acredito que não, mas que talvez a vida esteja se tornando um jogo. Ou que talvez ela seja um jogo que eu jogue sem saber. Eis um quebra-cabeça de minhas ideias, agora formando uma imagem maior e mais abrangente que o universo narrativo: o lúdico. 

O lúdico existe antes do outro, antes da história/escrita, não é exclusivamente humano. Está na base pré-verbal da atividade cognitiva. Os jogos aqui eram ritualizações das narrativas, memória e atualização das crenças arcaicas. 

Com a escrita e a história, há uma domesticação do brincar pela necessidade de atenção contínua, surgem as regras e os jogos. O lúdico passa a ser mais competitivo e se configura como uma estratégia de poder. Os jogos passam a sublimar conflitos e se tornam jogos de poder. 

Então se, por um lado, o jogo foi sendo progressivamente domesticado pelo poder e suas narrativas; por outro, o lúdico permaneceu parcialmente selvagem (a incerteza lúdica) e absorveu a estrutura linguística e cultural que o enquadrava. E agora, na pós história? O lúdico se tornou 'gamificação'? A gamificação das práticas sociais ameaça a democracia como método de decisão coletiva?

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segunda-feira, 17 de julho de 2023

amizade


O pequeno Alexandre Magno era aluno do mestre Aristóteles.

Certo dia, o garoto perguntou: "como reconhecer quem é amigo verdadeiro?"

Mestre Ari disse: "Há amigos por utilidade, por prazer e por caráter". Todos três isoladamente são amizades que não perduram. A amizade útil perde o interesse, a amizade por prazer acaba com dinheiro e a amizade por caráter é distante.

"A verdadeira amizade, no entanto", concluiu o filósofo, "é aquela que tem os três elementos (necessidade, divertimento e ética) e permanece durante toda vida".